sábado, 27 de junho de 2020

“Yeelen” ( A Luz), Mali, 1987, direção Souleymane Cissé




Sobre a experiência ímpar de acompanhar uma mostra de filmes africanos e ter acesso a uma visada totalmente nova das coisas, da vida, dos lugares e das pessoas, eu sempre falei bastante. Mas quando li aqui as palavras de Janína Oliveira (pesquisadora do Instituto Federal do Rio de Janeiro IFRJ) sobre o que, na verdade,  seria o Cinema Africano, tudo de encaixou: “um cinema feito por africanos, com temas africanos, para um público africano”, diferenciando-se de cinemas apenas rodados em África, ou mesmo uma versão tortamente exterior de africanos ou mesmo daquele continente. Segundo Oliveira, alguns cineastas se enquadraram nesse objetivo inicial da cinematografia africana e até conseguiram assinar uma escola própria de cinema em África, que retratava e propunha questões políticas do continente no cinema, como é o caso do senegalês Ousmane Sembène   do mauritano Med Hondo e até das primeiras obras do maliano Souleymane Cissé. Como outros cienastas africanos, Cissé também foi estudar cinema fora da África, na antiga União Soviética, como mandava o contexto da Guerra Fria e toda a discussão anti colonial

Na cinematografia de Souleymane Cissé , “Yeelen” marca um momento de virada de chave, quando ele deixa um pouco de lado as questões político- sociais e volta-se à temática mais local, filmando a adaptação de uma antiga lenda oral do século XIII. O filme conta a história do jovem Niankoro, interpretado pelo belo bailarino Issiaka Kane:


Sua missão é escapar da maldição lançada pelo seu próprio pai Soma em uma disputa ferrenha, baseada na cosmologia e nas crenças Bambarra. Na história,  Niankoro também tem poderes visionários e na sua busca pelo enfrentamento o pai, consegue salvar uma aldeia, na qual ganha do rei uma esposa, Attou, mas não pode se esconder do enfrentamento final com Soma, o qual resulta um encerramento, mas também em uma semente de futuro. Na imagem vemos a então rainha mais jovem Attou sendo tratada pelo Niankoro por causa de sua infertilidade:

O filme não é tão solar como as aldeias do Senegal de Sembène, até porque ele retrata vários povos e locais, desde regiões mais escuras, como o lugar onde  Niankoro vive com a mãe no começo do filme, lugar menos seco, onde sua mãe se banha no leite, conversando em oração com a “grande mãe” em um ritual belíssimo, onde podemos ver algo que acontece em todo o filme: os corpos negros nus, mas sem erotização, em num contextos ritualísticos ou não, aqueles corpos não são objetificados, apenas são eles mesmos apensa sendo:


 

 Além disso, os lugares do filme apresentam pedreiras douradas, até lugares mais íngremes, como os chãos secos pelos quais viaja até chegar ao reino. Em uma das mais belas cenas do filme,  Em belas cenas de luta é de se observar as pinturas na pele do rosto em laranja, branco e  azul, tornando a cena mais bonita:


No curto período em que Niankoro viveu no reino que ajudou a salvar, reparei que o rei e a sua esposa mais jovem se vestem de panos laranja, como se essa fosse a vestimenta real. Muito bonito. Esta é Attou, uma bela africana:


Na live com Janaína Oliveira, em 27 de junho, foram abordadas algumas questões relevantes, como o fato de, até pelo fato de que Cisé desejava, a partir desta obra, não ser mais visto como cineasta político e não mais apresentar claramente questões graves como o histórico colonizador, mas flertar com a possibilidade de contar outras histórias,  tentar outras formas de resistência, como apresentar mais o “o de dentro” , voltar-se para a cultura Bambará  e, com isso, tentar descolonizar nossa percepção. Isso seria uma outra forma de abordar tema político, mas que para os olhos ocidentais, não trariam questões tão relevantes, afinal ficaria tudo inserido na categoria exótica: África ancestral e bonita,na qual o ocidental não vê maiores significados. No entanto o filme é repleto de símbolos e significados opacos aos olhos de quem não conhece a tradição malinesa, que nunca é explicada no filme, é apenas sutilmente apresentada, compondo uma história que rompe com as conexões necessárias na forma de narrar ocidentais. Não deve ter sido à toa que, desde que comecei a ver o filme, lembrei de Guimarães Rosa: não importa se não entendeu alguma passagem, porque não vou entender muita coisa mesmo,  o importante é continuar a assistir, uma hora alguma coisa ou tudo faz sentido.

 

Com essa montagem que recusa a se explicar, que renega a transparência ocidental, o filme aborda uma questão de fundamental importância local : quando o pai não quer abrir mão do seu poder para deixar ao filho estamos tratando da luta pelo poder entre gerações que, na verdade, significa uma luta para não extinguir as tradições, mas um esforço pela continuidade daquela cultura antiquíssima.

Nesse belo e poético filme vemos ser questionado, o tempo todo, nosso olhar estanque sobre a África tradicional e a ancestralidade, pois ele mostra que existem outras formas de se contar histórias, formas que não precisam, necessariamente, passar pelo filtro colonizador.

 

Eu, pandêmica, na ocasião 


quinta-feira, 25 de junho de 2020

"A Noite da espera" e minha espera por um romance desafiador de Milton Hatoum



Terminei de ler o primeiro volume da trilogia “O Lugar mais sombrio”, o chamado “A noite da espera”. Como fui infectada pelo mosquito do Hatoum, estou lendo tudo o que ele escreve e me  ficou disponível, mas é claro para mim que a cada leitura iniciada eu ainda procuro aquela sensação que tive ao entrar em contato com os dois primeiros romances (“Dois irmãos” e principalmente “Relato de um certo oriente”), que pensei: putz, que livro! Mas nunca mais cheguei ao resultado almejado.  No entanto a busca continua e a longa noite da espera por um romance desafiador não tem fim.

 

 Isso tem a ver comigo como leitora, as coisas que eu procuro em um livro: Sou mais analítica, me interessa o como está escrito, o grau de poeticidade, as questões propostas pelo enredo. Não sou crítica literária, só gosto de literatura, inclusive a brasileira, e o Hatoum chama muito a minha atenção desde sempre, especialmente porque mesmo que nem todos os livros sejam maravilhosos, ele tem um ou dois que devem ficar na história da literatura nacional.


Em um dos seus depoimentos esclarecedores no Youtube, Hatoum disse que o “romance nasce com fome de forma” e é interessante observar como ele passeia nisso.  Falando no “A noite da espera”, propriamente dito, desde o início ele foi o que eu menos gostei de Hatoum. Não queria ler sobre o tema do livro, que é o golpe civil militar de 1964 sentido em Brasília por uma turma de estudantes. Não agora. Não nunca mais? Não sei.  O que sei é que não desse jeito que está ali: em forma de um diário em datas diversas, que reavivam memórias de 1968 até 1972, escrito por um personagem só, o Martim, que é um estudante tão normalzinho, parece muito um dos meus ex, mais do que eu suportaria, e ler sobre  sua vida universitária me incomoda muito. Literatura também serve para perturbar.  Sobre essa questão da identificação Hatoum escreve :

“quando alguém se identifica com uma personagem, parece que não consegue se livrar dela. É como se você quisesse se livrar de uma mentira em que você acredita.” p. 218

 Mas o fato é que o  Hatoum está escrevendo a história da sua geração, ou melhor, um romance de formação na sua geração. Eu, como representante de uma futura, não me agrado tanto por ela, é muito longe para eu me identificar, e muito perto para eu me achar algo tão diferente nela. Sou uma péssima leitora desse livro.

Posto isso, é fato que Martim é um jovem homem que sofre pela ausência de mulheres em alguns momentos. Não uma ausência total (isso me incomodou, porque eu sei o que é ausência total e absoluta , eu e a maior parte da população brasileira, que sempre foi separada, dividida, fragmentada: para mim  é difícil ser empática com Martim, que sofre como um jovem francês que lê Proust). Mas Hatoum sabe que está escrevendo no Brasil, sobre o Brasil e por isso eu ainda confio nele e sigo lendo a trilogia.

Martim é um personagem em formação naquele período, se forma no teatro, nos livros , trabalha numa livraria, assiste filmes clandestinos, que publica num jornal também clandestino, traduz poesia e tem um mestre - o embaixador Faisão, pai de um de seus amigos, que é aposentado da cerreira diplomática e amargurado, porque sua geração de sonhadores, “progressistas”, foi afastada,  agora sente que não serve mais - , então ele “adota” Martim, que lê e traduz os livros indicados, mais do que seu próprio filho, que só lê os livros de direito e é incapaz de entender que a saída, se houver, está nas artes, nesses oxigênios que a  gente respira.

A história de Martim e o embaixador Faisão foi a minha parte favorita do romance. No apartamento de Faisão, que é mineiro e vive mineiramente em  Brasília, come comida mineira, oferece queijo minas com goiabada aos hóspedes e na primeira vez que Martim lá esteve, em 20 de março de 1970, ele viu alguns quadros na parede: Um Di Cavalcanti e um busto de uma moça de um pintor que ele desconhecia, mas que tinha (me deixe lamber as palavras saborosas de Hatoum):

pinceladas leves, com tinta diluída, davam uma textura meio difusa ao rosto, que parecia animado pelo desejo. Os lábios ensaiavam um sorriso. O decote sem contornos claros revelava o volume dos seios, e o pescoço alongado tinha a mesma altivez da cabeça, do busto e das mãos.O olhar era de festa: talvez uma noite junina, pois no fundo da pintura um balãozinho subia no escuro, como se  fosse escapar da tela sem moldura. Notei alguns traços desse rosto jovem nas feições da embaixatriz, sentada diante de mim. Quem seria o pintor?” P. 87    

Pois bem, algumas coisas vão acontecer no romance e a formação do “herói” Martim vai se moldando, sempre sob a tutela de Faisão e o retrato em seu apartamento vai saindo da condição de questionamento sobre quem seria o pintor, ou mesmo quem seria a modelo, para ao final  de 1972 , quando ele comenta:

“O olhar do retrato feminino me atraiu: olhar atento e ambíguo, para dentro e pra fora. E um sorriso quase imperceptível. Guignard pintara com tons um pouco escuros o rosto da futura embaixatriz, o branco dos olhos vibrava na tela, e no canto direito superior a figura de um balãozinho ocre subia na noite junina” p. 220

Ouvindo Hatoum em gravações do Youtube, me lembro que ele disse que o mais importante no romance não é propriamente se a história aconteceu, mas qual a possibilidade dela ter acontecido. Por isso o livro começa com uma foto de uma rodoviária, de um ônibus Brasília – São Paulo, mostrando que essas viagens eram e ainda são possíveis. Por que não aquela? 

Também a figura de Faisão é , e foi, possível de ter existido. Fui atrás de um retrato feminino feito por Guignard e encontrei um de uma embaixatriz na década de 1960

  Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) é um pintor mineiro, e ele também pintou a embaixatriz mineira Lucia Flecha de Lima em sua juventude na década de 1960, quadro leiloado em 2019 com lance inicial de R$ 119 mil. É claro que o  quadro não é o mesmo descrito ficcionalmente  no romance, que o embaixador Faisão não é o embaixador mineiro Paulo Tarso Flecha de Lima, esposo da embaixatriz Lucia, apesar do pintor retratista ser igual. Mas tudo isso dá uma sensação forte de que a história de Martim e Faisão poderia, mesmo, ter acontecido.

Isso é uma das graças da literatura de Hatoum. A outra são as incontáveis perguntas sem resposta, que dá mais a sensação de que podia ser vida real, não é mesmo?  

domingo, 14 de junho de 2020

A NOITE DA ESPERA : impressões de leitura



A capa do meu é aquela amarela, linda, mas acho que essa outra azul e preta está mais parecida com o que estou encontrando no livro. Ontem continuei a leitura, agora um pouco menos seduzida pela escrita deliciosa da qual já estava com saudades, mas já fiquei um tanto entediada com a forma de diário. Sorte que ele vai jogando as informações e personagens e se a gente não presta a atenção e jogar junto , se perde, isso é mais divertido. Mas não é um livro para ser devorado, como os primeiros dele que eu li. Sei lá o que não está me agradando tanto, talvez o tema ditadura, Brasilia, adolescentes (esses são o ó)... mas tenho que lembrar que esse é só o primeiro volume de uma trilogia, tem muita narrativa pela frente. Espero que ainda nesse livro as memórias de adolescentes acabem ...Confio em Hatoum, vamos seguir lendo.

sábado, 13 de junho de 2020

“Inxeba”(Os Iniciados), África do Sul, 2017, direção John Trengove


O filme conta a história de três homens que participam de um ritual tradicional africano  nas montanhas  de  Cabo Oriental, África do Sul, que acontece anualmente.  O personagem principal é Xolani, um operário solitário que viaja todo ano para participar do rito  de Ulwaluko, que consiste na circuncisão de adolescentes de origem Xhosa para que eles ingressem finalmente na vida adulta.  Na época do filme, ele vai com recomendação  de um pai do jovem Kwada, percebendo que ele não se enquadrava no projeto de masculinidade aceito, paga Xonali para ser responsável´pelo rapaz da cidade  e tentar evitar que ele se torne homossexual. O problema é que esse jovem, que é gay,  e é bastante questionador e acaba descobrindo um segredo entre seu instrutor e Xolani, acabando com a paz na local. O trailer

Os  três homens em conflito  na montanha, local mostrado como uma selva deslumbrante, seguram uma tensão sexual mútua o filme todo e o final, realmente é surpreendente.

As cenas de sexo entre os personagens são quase  sempre gravadas no escuro, com os corpos negros camuflados, exceto no final, quando as verdades começam ser reveladas a olhos nus e não é mais preciso esconder nada.  Interessante observar que, no começo do filme, as cenas sexuais se confundem as com as cenas da circuncisão – ambiente escuro, corpos negros  gemidos de dor ou prazer - , como se fossem metáfora da dor e do prazer do crescer?

É sabido que, ao contrário de muitos países africanos, a África do Sul tem uma boa relação com o tema da homossexualidade, mas no filme a tensão se coloca porque a questão é trazida para um ambiente tradicional, apresentando um enredo original que mescla costumes e modernidades.


Na live de debate sobre o filme com o doutor em letras Lecco Fraça,que estava ótima, falando sobre a delicada questão da sexualidade retratada no cinema africano e fazendo belas leituras do filme, até que foi interrompida por estar violando as regras do Youtube : por que, gente? 


No trecho que  pudemos companhar da live, o filme começou a ser abordado de diversas formas, como a partir dos seus cartazes no Brasil (Os Iniciados); na África (Indexa- Ferida) e em espalho (La Herida)
cartazes:


 Depois foi sugerida uma comparação com o  belo  filme queniano Rafik dirigido Wanuri Kahiu, sobre o amor entre duas garotas num lugar onde o homossexualidade é crime, tanto que o premiado filme não pôde ser exibido em seu próprio país, mas ai a tranmissão foi cortada. 
Realmente foi uma pena termos ficado sem essa contribuição completa, de qualquer modo, recomendo assitir ao filme e pensar sobre masculinidade, masculinidade negra e mais, masculidade negra africana, porque, como apontou Juciele Oliveira,  mediadora do debete , o cinema pode constrir contra narrativas de reação à opressão em assunto polêmicos, como a sexualidade e o afeto em África.

Enfim, é um filme sobre Masculinidades. Masculinidades negras. Masculinidades negras em África. Bem tenso.


Não nesse dia, mas nessa época 

quinta-feira, 11 de junho de 2020

“Ar-condicionado” , Angola, 2020, direção Fradique


O filme angolano “Ar condicionado” (2020), dirigido por Fradique e produzido pela Geração 80, uma produtora audio visual angolana interessante que, segundo Jorge Cohen, preocupa-se em interagir com imagens e sons de produções do "sul do mundo", que certamente devem diferir do norte do mundo, referências com as quais estamos acostumados. Abaixo um momento da live sobre o filme, acontecida em 10 de junho de 2020, da direita para a esquerda, no alto Ana Camila (mediadora da Mostra), Saymor (jornalista da Mostra), abaixo Fradique e Jorge Cohen (da Geração 80):


O filme conta a história misteriosa de quando muitos aparelhos de ar condicionado começam a cair dos apartamentos na cidade de Luanda e Matacedo e Zezinha, empregados dos prédios, recebem do chefe a missão de recuperarem os aparelhos e com isso chegam até Kota Mino, o proprietário de uma loja de eletrônicos que está montando, secretamente, uma máquina de recuperar memórias.

No início lemos a seguinte explicação sobre que ar e que condicionamento iremos tratar


Alguns pontos me chamaram a atenção no filme, como a figura autoritária do chefe, que ao mesmo tempo em que diz ser o presidente do prédio e é a ele  que os empregados devem respeito, obedece à ordem de uma mulher que o acompanha,  deixando claro que seu domínio vale para alguns.

Sobre Matacedo, que o diretor comentou que é um nome fictício, inventado por causa do seu passado de soldado de guerra, como todos os seguranças dos prédios de Luanda, e refere-se aos que acordavam cedo para comer o “mata bicho” (café da manhã) nos batalhões,  já grisalho e muito magro, e depois ficamos sabendo mais sobre ele quando ele registra suas memórias, mas no começo só sabemos que ele tem problema de audição, certamente consequências da guerra,  tem momentos em que não ouve (e nós também não ouvimos, embora a legenda embutida em inglês nos conte o que estão falando para ele). Ele fica muito ligado nas informações da televisão, que leva para comentar com Zezinha. Dela sabemos alguns fragmentos de história, que veio com a família de perto do mar. Fala muito do pai, da importância do vento que aprendeu com ele, o vento natural, não esse do AC.

Em cenas gravadas na parte superior do prédio, o segurança Matacedo observa algumas manifestações de rappers pensando criticamente sobre heranças e perdas, como se fosse um meta-comentário do próprio filme. Outro comentário pertinente e poético é feito pelo Kota Mino ao comentar a queda dos ACs  lembrar que eles caem, assim como nas árvores, frutos maduros soltam-se dos galhos. Isso é interessante vindo deste personagem, que arma toda uma ligação entre os ACs e os registros de memórias, lembrando inclusive que “sem som não há memórias”.

Além das cenas do prédio, que os realizadores contaram que existe de verdade e fica perto da Geração 80,  é  enorme e velho e, segundo os realizadores, existem aos montes em Luanda, são prédios invisíveis, não saem nas fotos dos postais de Luanda, assim como seus moradores  funcionários, então o filme escolheu registrá-los.

Por muito tempo no filme, a câmera vai andando atrás das personagens, daí vermos claramente suas costas em contraste com o entorno de  uma Luanda feia, em ruínas mesmo, com aparelhos enferrujados nas ruas, como em um futuro diatópico? O que os realizadores negaram, afirmando que aquela é mesmo a Luanda de 2020. Na oficina do Kota Mino, quando este fala da possibilidade de sua máquina reter as memórias através dos ACs, Zezinha duvida, pois no bairro onde mora ninguém tem AC, como retriam as memórias deles? Então Mino explica que as deles “caíram com as árvores”, agora só restaram as dos ACs.  Daí  ele explica que sua máquina de memória é construída com  AC, mas é fundamental que ela esteja preservada e “funcione” em meio às plantas. E aquelas eram as últimas da cidade. Realmente o filme não mostra nenhum verde, só ruínas, fragmentos de vida na metrópole e referências às mídias como televisão e rádio, onde as personagens se “informam” sobre a tragédia que está ocorrendo.  Isso me remeteu aos curtas de afro futurismo que assisti no ano passado.

No mais belo momento do filme, Zezinha e Kota Mino deixam Matacedo sozinho na máquina da memória, que funciona com um AC ligado a um carro, muito ao modo de De volta para o futuro, flerte confirmado pelo diretor Fradique,  e Matacedo fecha os olhos e vamos vendo o carro passear por uma Luanda bonita, de dia, de noite, na chuva, com prédios novos com a seguinte canção, cantada por Aline Frazão, de forma muito sincopada, assim como o filme, a música dá um passo e volta dois, como é o ritmo da memória de Matacedo, mas também uma fala da própria Angola:

quando eu fecho os olhos imagino um país novo

quando eu fecho os olhos eu me lembro de novo

para não me dissolver no cassino da lembrança aperto passo na dança, obstinada dos dias

tudo era bem melhor no tempo em que ainda me vias

tempo tempo tempo, tempo, tempo

de  noite adormece o meu corpo antigo

enferrujado e doído, como um sobrado em ruínas

Sonho para não esquecer e esqueço ao amanhecer

Segundo Fradique, o filme apresenta três lados principais : Matacedo  e seu passado de guerra/ Zezinha e sua praticidade em resolver as coisas apontando para um futuro/ Kota Mino e sua peocupação em salvar o que resta das memórias. Essas três personagens seriam testemunhas daquilo que, nesse momento, se está a perder em Luanda e está sintetizado na imagem dos  aparelhos de ar condicionado que absorveriam as memórias e ficam cheios e pesados, por isso caem. E é importante resgatar as memórias , não deixar que elas se percam. Filme maravilhoso, confiram o trailer:


 

 Para terminar, vale destacar uma história: Quando assisti achei legal o filme, moderrno, intrigante e até divertido. Mas não sei se foi simples assim. Sonhei com ele, um sonho incômodo, acordei com o "ar condicionado", literalmente. Como é solitário assistir a esses filmes e nem poder comentar na hora! Esse filme mexeu  muito comigo, nesses tempos de pandemia.

 

 

 

 

 


quarta-feira, 10 de junho de 2020

Lendo "A noite da espera" de Milton Hatoum


Esperei tanto a chegada do livro, mas quando ele enfim chegou, estava ocupada com o trabalho na Revista e a Mostra de Cinemas Africanos que fui adiando a leitura. Mas ela aconteceu no dia que eu tive que ir ao hospital com minha mãe, como no ano passado.
Quando abri o volume, comprado na Estante Virtual, confirmei que ele vinha com uma dedicatória carinhosa do autor. Não era no meu nome, mas a tal Denize, por algum motivo, o colocou à venda no sebo e ele veio parar nas minhas mãos, então a dedicatória já é para mim. Posso estar forçando, mas a letra de Hatoum me lembrou a escrita árabe 
 
Em seguida me chamou  a atenção as mensagens no livro mesmo, como a opinião da Leila Perrone-Moisés

Depois as epígrafes que me relembravam que estava lendo um autor de ascendência árabe. E como toda leitura, temperada de solidão


Esse começo é tão bonito, tão sonoro e imagético. Na voz dele fica ainda mais melodioso.
Me lembro de quando comecei a ler o romance, em pé para não me sentar em lugar nenhum e não me contaminar, afastada de todo mundo, em frente ao ICESP, no  dia 10 de junho, enquanto  esperava minha mãe sair do exame de sangue naquela tarde tarde fria de quarta feira.
Me sentia segura e aquela  narrativa tão gostosa  me envolveu e eu quase esqueci a exposição ao Corona vírus. Graças à melodia do texto, o tempo passou rápido e sem dor.
Mas na voz serena do autor, fica muito melhor! No 3 vídeos a seguir lê as primeiras páginas  do romance:



Continuo gostando muito de morar na toada da narrativa de Hatoum. Só tenho a agradecer a oportunidade de ser sua contemporânea, nesse Brasil lamentável desses tempos!

sábado, 6 de junho de 2020

"Kmêdeus", Cabo Verde, 2020, direção Nuno Miranda



No dia 06 de junho de 2020 foi realizada uma live com os produtores do documentário cabo-verdiano Kmêdeus, 2020. Foi uma experiência ímpar ouvir ao vivo realizadores do cinema africano atual.

O documentário  é sobre um sem-teto lendário da ilha de  São Vicente, em Cabo Verde  chamado Kmêdeus ("Comer Deus"). Como lembrou Morgana Gama, uma das organizadoras da mostra, a figura de Kmêdeus fazia lembrar a do brasileiro Arthur Bispo do Rosário. O documentário centra-se nesta figura que é um mistério para as pessoas daquele lugar, entre um lunático e um artista. Além de entrevistas com cabo verdianos, o filme aborda seu personagem principal a partir da interpretação dele  desenvolvida pelo dançarino de Cabo Verde  António Tavares. Com esta perspectiva, viajamos por sua cidade natal, Mindelo, as músicas e filmes da ilha e a celebração de seu carnaval anual, traçando um retrato cultural de São Vicente.

Além da figura de Kmêdeus, simbolizado pela imagem contraditória  de  estrela de Davi acompanhada por uma cruz, como no  quadro "Kmê Deus" by Tchalé Figueira, que aparece no filme aos 47':


É preciso reforçar que o  filme é belíssimo, mostra imagens deslumbrantes, especialmente as da Ilha de São Vicente. O diretor comentou que seu desafio é sempre o de tentar descobrir como filmar Cabo Verde? Existiria um jeito certo? Isso ele está tentando sempre descobrir, mas nesse filme, ele conseguiu uma bela forma, o que me fez lamentar ter assistido na tela do celular por causa da quarentena, porque ele foi feio para a tela grande do cinema. Inclusive, sobre o cinema de Cabo Verde, nos lembrou  o Pedro Soulé que ele é muito incipiente, quando começaram a filmar, ele praticamente não existia, só se lembravam de realizadores de fora, mas de lá mesmo, não havia nada, o que é lamentável, porque o país possui uma grande beleza e diversidade física e humana que o cinema deveria poder contar e agora estavam contando.    

As belas  performances de Tavares são lindamente filmadas e a gente se sente parte do filme . Em  outro momento Nuno elencou alguns filmes nos quais ele teria se inspirado de alguma forma, entre eles um dos meus favoritos, o  belíssimo documentário Pina, de Win Wenders, que também é  sobre uma dançarina que, inclusive, já dançou com Tavares.


Na discussão, mediada pelo jornalista Saymon Nascimento, tivemos a  participação do personagem/ tema António Tavares, do diretor Nuno Miranda e do produtor Pedro Soulé e foi muito rica, pois Tavares começou reforçando que Cabo Verde estaria na origem da mestiçagem, local do sincretismo, na roda dos tempos, seria um polo mediador entre África/Europa/Américas desde há muito. Já o diretor Nuno explicou que o filme se sustentava entre três eixos principais que cercavam a figura de Kmêdeus em Cabo Verde: a música, o carnaval e o cinema. Ou seja, como lembrou Syamon,  Kmêdeus apareceria no filme como um símbolo que transformaria os traumas históricos em arte.

Eu fiz uma pergunta e Antonio Tavares  :


E ele respondeu : o carnaval para ele, desde criança,  era sempre o laboratório criativo, o lugar de encontrar coisas que o provocam, mesmo que e le não entrasse no carnaval, só assistia aquela louca vontade de ingerir o corpo, de “comer deus”.

Nos créditos finais do filme nós ouvimos uma deliciosa coladeira. Sobre isso eu conhecia, pois fui banca de um trabalho sobre danças tradicionais de Cabo Verde e essa é uma das que se realiza em pares:  “vem, vem dançar, nova coladeira...”