sábado, 30 de janeiro de 2021

"Mil Nações moldaram minha cara" : Resultado do meu teste de ancestralidade


 Quem me conhece um pouco mais sabe que a questão da minha origem é meio que um assunto tabu para mim, sobre ele não falo, não procuro, muito ao contrário, por muito tempo até cheguei a fugir dele, quando ele se apresentava em minha frente.

Daí que sempre achei que essa fosse a grande busca de minha vida, minha missão e eu a rejeitava rejeitei toda a vida.

 

É um caso muito delicado, é mexer naquele primeiro abandono, que é uma ferida que nunca cicatriza, nem casca protetora cresce nela, está sempre à flor da pele. Pouca gente entende quando eu digo, por isso eu parei de me justificar, porque eu sei que é um assunto que eu tenho que resolver comigo mesma. Por isso :

“Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi,não é, não fica sendo!" Guimarães Rosa,  GS:V

 

Mas a verdade tem sua própria força e, eventualmente, alguns fragmentos chegaram até mim, fiquei sempre muito assustada, em pânico mesmo. Mas um dia a gente tem que dar um passo em direção a essa origem. Não estava nos meus planos, claro, mas ganhei um dinheiro de presente de Natal, nada demais, mas com um pouquinho mais que eu tinha  guardado e quase não gasto nada na quarentena, então  dava para eu comprar um teste de DNA Global no Genera.


Na virada do ano essa ideia me passou pela cabeça e eu senti que era a grande oportunidade. Será que eu teria outra chance depois? Pensei muito nisso e, num rompante, como se estivesse fazendo a maior coisa da vida, fui lá e comprei já nos primeiros dias de 2021. No caderno da minha história e da minha ancestralidade, essa página em branco ia receber seus primeiros traços. Minha ideia era não falar disso nunca com ninguém, se não narro, não é.

 

Achei que ia ser fácil, que ia passar logo e que não ia ficar ansiosa. Mas não foi.Perdi o sono várias  vezes, me senti culpada por estar indo atrás dessa informação, como se fosse uma traição à minha família adotiva, chorei.

 

Não tinha muita ideia do que ia sair, mas apostava que era muita mistura e desejei muito, muito (mas jurava que era impossível) que saísse Etiópia. Imagina se não saísse a África? Como minha intuição, meu sentimento de pertencimento, meu espiritual iria ficar? Quase enlouqueci!

 

Assisti a vários vídeos no Youtube de pessoas que tinham feito em laboratórios no Brasil e no exterior, cada um tinha um motivo: conseguir visto europeu ; curiosidade, no caso dos asiáticos ; no caso dos negros aproveitar a oportunidade para saber um pouco mais da história dos antessados, coisa que  a maioria não teve, não tem.Para esses últimos o caso parecia mais sério, todos relataram estresse e uma vontade de relatar aos outros a sensação de ter, enfim, parte de de seu passado desvendado e com isso me identifiquei demais: Na hora da coleta da saliva, achava que eu tinha feito errado que não iam conseguir fazer  o exame. Como demorou exatas três semanas (tinha visto gente relatar que saiu bem antes), tinha certeza que tinha dado erro. Mas não deu erro. 

Enfim recebi o resultado em 29 de janeiro de 2021.

Antes de falar do resultado, devo alertar para uma questão que eu vi desenvolvida no Youtube em vídeos como esse e esse  e  fiquei pensando que o laboratório faz o exame e comparam com os dados que eles têm, certamente deve haver lugares que eles podem não ter os dados. Por esse tipo de detalhe que digo que os resultados são inquestionáveis, mas a interpretação eu, como historiadora, posso fazer outra, como vou fazer aqui.  

Eu sou mestiça, sei disso, e já imaginava que a maior parte do meu DNA fosse proveniente da Europa (tinha visto muitos casos assim no Youtube, com pessoas com traços negros mais evidentes do que eu,mas com ancestralidade européia, como esse,) minha curiosidade e tensão era sobre a África mesmo.

O Lab Genera responde resumidamente  que 53% da minha ancestralidade  é proveniente da Europa e 33% da África, num total de 86% dessas regiões. Para eles essa informação está ok. Para mim não.

Ainda no geral, o resultado final foi assim(gosto de ver a marca colorida da minha linhagem no mapa mundi):


E agora com mais detalhes :


É muito lugar, né? Para o recorte do Genera, as pelo menos 5 gerações analisadas teriam passado por dezesseis regiões! Isso é que é GLOBAL! Confesso que fiquei feliz ter aparecido tanta África, quase tudo do centro para o norte, inclusive o Chifre da África, região da minha amada Etiópia! Sim, eu tenho a Etiópia do meu DNA, 3% do total, mas tenho: AMEI!

Mas gostaria de separar um pouco mais, vejamos os lugares que “pontuaram” melhor:

25% Ibéria (Portugal Espanha)

13% Europa Ocidental (França,Áustria,Inglaterra, Alemanha, Suíça, Bélgica)

12% Oeste da África (Angola, Camarões, Gabão, Congo, Guiné Equatorial)

11% Costa da Mina (Nigéria, Gana, Togo e Benin : forte de São Jorge)

8% Itália

7% Leste da África (Tanzânia, Quenia, Malawi, Moçambique, Zimbabue, Zâmbia,parte da África do Sul)

4% Amazônia (Equador, Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela e norte do Brasil)

3% Basco(extremo da Espanha); Volga-Ural (Rússia);

     Leste Europeu(Estônia, Lituania, Polônia, Eslovaquia, Hungria, Ucrânia);

    Chifre da África (Eriteia, Etiópia, Somália)

    América Andina (Cordielheira dos Andes)

    Ásia (Japão/Coreia)

    Megrabe (Argélia, Libia, Marrocos, Tunísia, Mauritania)

2% Patagônia (extremo sul da América Latina)

Europa 5 regiões

África  5 regiões

Agora a gente volta a dividir o geral: Meu DNA é dividido a entre Europa e África, mais especificamente entre a Ibéria e Oeste da África (de onde vieram pessoas para serem escravizadas). Sim, meu DNA é um retrato da colonização no Brasil, eu vi esses dados e pensei nos tantos estupros, explorações, roubos e toda arbitrariedade que os colonizadores promoveram por aqui e que esses também fazem parte da minha ancestralidade e talvez esse passado de abuso e violência explique tanta fragmentação! Não sei!

Eu posso entrar em contato com pessoas que compartilham meu DNA, que lindo, mas no meu caso os possíveis “parentes” mais próximos seriam no máximo primos de terceiro grau. Será porque sou muito “dividida”? Será porque a maioria dos descendentes de africanos não teve ainda acesso a esse tipo de teste e, como sabemos, tiveram sua história apagada. Acho que  as duas coisas.  

O mais bacana de tudo é que agora é certeza: TENHO SANGUE AFRICANO, SIM , e não é pouco! Eu não sou paquistanesa,nem indiana, nem afegã, meu Dna é mestiço europeu/africano e essa revelação  foi um grande presente que meus orixás me deram.

Agora já sei que não vim do nada, que tenho mesmo ANCESTRALIDADE, como eu sentia desde sempre! Isso é lindo, vocês não acham?

Para concluir: carecia de ter coragem e eu tive, passei pela travessia da busca da verdade, não foi fácil, mas me deu força suficiente para narrar aqui no blog (imagina a ousadia) sobre um tema tabu! Agora superei!

Me sinto uma nova mulher, mais

CAMILA (nome que evoca a história do meu nascimento) ZAHABE (nome que eu escolhi para mim e agora foi legitimado, pois tenho um pouco de  DNA etíope sim, e por fim RODRIGUES  (herança ibérica que ganhei da minha família adotiva!)
Termino citando a dedicatória de um livro infantil sobre qual comento aqui depois e é tudo o que eu queria falar aos meus antepassados agora:

“Aos meus  ancestrais que me convocaram a

esta viagem incrível à Grande Mãe Terra,

com o propósito de divulgar seus maravilhosos feitos” (Kiussam de Oliveira)

 

 

 

 




sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Ler os clássicos: companheiros na vida e as palvras- cantiga de Rosa

 


COM LICENÇA ÍTALO CALVINO - O seu "Porque ler os clássicos" é mesmo estupendo, mas eu apostaria numa definição mais enxuta: Ler um clássico é ter com quem contar na vida. Na hora que vida se apresenta inteira pra gente, que exige que a gente se mostre como a gente é , que a gente fica "bêbado de eu" etemos que nos posicionar e nunca estamos prontos... é dele que a gente lembra, que nos ajuda. É na hora que o demo (nos crespos do Homem) não queria existir, não vem, mas a gente sente que ele nos ouviu, a hora que a gente vai passar de um rio calmo para o São Francismo e não sabe nadar, mas carece de ter coragem... é assim!

Obrigada pela vida toda Guimarães Rosa



"PALAVRAS-CANTIGAS"- Em geral, minha leitura de Guimarães Rosa (seja das obras, seja dos manuscritos), tudo está centrado no lúdico , no ouvir e no cantar, ou como diz um personagem de "Cara de Bronze"(novela toda rendada de  cantigas sertanejas), a viagem da obra rosiana é para "buscar palavras-cantigas" . Desde sempre Rosa foi para mim como uma cantiga de ninar, até mais que o escritor eruditismo por quem me apaixonei depois, ainda muito nova ele já  era Joãozito, que "cantava" comigo. Pesquiso, independentemente, a escrita de Rosa desde 2001, quando assisti meu primeiro curso sobre na USP, por isso ainda antes de entrar no mestrado em 2005, eu já tinha ministrado uma oficina sobre ele para crianças na Escola Lumiar, na qual a ideia era justamente a de "brincar" com Rosa. Ideia que aquelas crianças (iletradas ou em fase de alfabetização) aceitaram de cara. Quando eu mostrei o Léxico de Guimarães Rosa uma delas perguntou : "Como ele pôde criar tantas  palavras? Deixaram ele fazer isso?"  rs
Eu espero mesmo que, depois, quando Rosa aparecer como obrigação em suas vidas escolares, elas pelo menos se lembrem que brincávamos com ele nas tardes de quarta feira entre 2004 e 2005.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O livro certo: Expectativas pré leitura

 Tinha comprado dois livros na Estante Virtual, ambos chegaram entre ontem e hoje. Um deles veio errado 😔

Esperava uma capa com as princesas Iabás, que viraram divindades
 e recebi essa aldeia de filme de Sembéne. Nada é por acaso!

Comprei o infantil  "Omo-oba:histórias de princesas" de Kiussam Oliveira, mas recebi "Igbo e as princesas" de Marcos Caje! Achei que tinha comprado errado, mas foi o vendedor se enganou. Disse a ele que  gostei de "Igbo" também, mas queria mesmo o "Omo-oba", que comprei.  Aí ele disse que enviará um motorista com o meu livro e que levará o que veio errado. A ver. Antes dele vir vou ler esse livrinho Igbo e se achar interessante, em tempo, comento ele aqui. 😉


Mas ontem recebi outro livro, esse o romance da vez: A linda edição de "Hibisco Roxo", da nigeriana  Chimamanda Ngizi Afichie. Escolhi ler esse livro mas sem muita expectativa. Queria ler algo diferente, pensei num autor coreano, japonês... Fiz até pesquisa e tudo (adoro os canais literários no YouTube), mas me dei conta que, apesar do mergulho nos cinemas, ainda não leio literatura africana, por enquanto. Outro ponto que me levou a essa escolha foi o básico: nem tanto por querer, mas quase nunca animo de ler autoras. Tenho  que mudar isso. Então quis ler não apenas um autor africano. Eu poderia ter escolhido um romance de Sembéne, ou o próprio José Luandino Vieira -queria ler o romance que inspirou o filme Sambizanga, que tanto amo - , mas ai seriam vozes masculinas, só que africanas. E as mulheres?

Chimamanda Ngozi Adichie  

Então, para começar, escolhi ler a bela Chimamanda, nessa edição lindíssima, que conheci pelos discursos "O perigo de uma história única", que assisti no curso sobre cinemas africanos ano passado ou mesmo o "Nós deveríamos ser todos feministas", que é muito comentado e até inspirou a canção Flawless, da cantora Beyoncé (que não me atrai musicalmente, enfim). Eu conheço, inclusive, a crítica de alguns africanos sobre tantas colocações dos afro americanos, não é qualquer coisa que passa na minha garganta, mas Chimamada é africana, não afro americana, e isso deve fazer muita diferença (espero). Então até sei quem é a autora, sei que ela é engajada e tal, mas antes de começar a ler o livro, destaco que minha expectativa é literária, então eu ESPERO QUE ELA ME CONTE UMA HISTÓRIA, que seu livro não seja mais uma Palestrinha. A ver...

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Marcas de "Relato de um certo oriente"

 

Tenho um grande amor pelo primeiro romance publicado por Milton Hatoum, talvez o mais poético deles, e fico muito emocionada quando, nos contos ou crônicas, percebo alguma marca que me remetem a "Relato de um certo oriente", seja uma personagem, seja uma história paralela, seja o que for.

O segundo livro que leio em 2021 está sendo o seu enorme volume  de crônicas "Um solitário à espreita" e estou gostando, como sempre é uma leitura muito apetitosa, mas como gostaria que me contassem uma história, estou intercalando, demoradamente,  com outras narrativas.

Como suspeitei que viria, ontem li uma crônica que  com uma referência direta à escritura de "Relato..."

"Que distração: em abril de 1989 publiquei meu primeiro romance, cujo esboço inicial foi feito em dezembro de 1980 e nos primeiros meses de 1981. O relato seria um conto, mas foi crescendo com o calor da viagem sinuosa e atropelada da escrita.

Às vezes, quando essa viagem é interrompida, você diz a si mesmo que é uma pausa provisória, mas há textos que ficam no meio do caminho e são abandonados ou esquecidos: assuntos morrem nas primeiras páginas. Na verdade não é o tema que morre, e sim a forma, a arquitetura, o projeto que não vinga. Mas aquele conto expandiu-se, uma voz  puxava a outra, vozes tão intrometidas que nem sei de onde vinham. Quando me dei conta, já tinha escrito mais de cem páginas ..." Milton Hatoum. Tantos anos depois, Paris parece tão distante.... In "Um solitário a espreita", p. 33 

Trocando ideias sobre a escrita de Hatoum no Instagram encontrei um leitor que, como eu, estava se deliciando com o "Relato...", eu disse que talvez a base da obra de Hatoum já estivesse esboçado ali, de uma forma fantástica, muito bonito de ver. Sabem que ele foi escrito há cerca de 40 anos (tem mais ou menos a minha idade), em um quartinho alugado em Paris, me deixa alegre de alguma forma: talvez eu também possa ser mais do que um projeto menor (no caso um conto) que não foi abortado e virou algo muito importante para outras pessoas.

Enfim... relatos de leitora"

 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

NÃO À NORMALIZAÇÃO DO RACISMO , por Paulo Scott

 


NÃO À NORMALIZAÇÃO DO RACISMO - "... ao longo de mais de 30 anos eu tinha sido um inferno que tornava todos os outros infernos eventuais do cotidiano meras fagulhinhas na normalidade geral, que o meu olhar, MEU MODO DE LER A VIDA, RECUSAVA A NORMALIDADE ENGESSADA PELO DISTÚRBIO QUE AS PESSOAS CHAMAVAM DE RACISMO, pela devastação psíquica por ele causada, não importa o que os outros dissessem para tentar me convencer de que não estava tão ruim assim de que o ódio contra os pretos e o nojo em relação aos pretos estavam menores, de que no passado a coisa tinha sido muito pior... " "Marrom e Amarelo", Paulo Scott, p. 60

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Jorge Ben : 50 anos de "Negro é lindo" (1971), por Mauro Ferreira




 "MEMÓRIA – Oitavo álbum de estúdio de Jorge Ben Jor, lançado em novembro de 1971 pela gravadora Philips, Negro é lindo é fruto dos movimentos sociais que institucionalizaram o black power nos Estados Unidos ao longo dos anos 1960 e, por isso mesmo, o disco completa 50 anos em 2021 conectado e afinado com o grito pela reafirmação da importância de vidas negras que ecoa forte no mundo em tempos atuais. Nos Estados Unidos, os movimentos sociais dos anos 1960 tiveram como trilha sonora sobretudo o soul e o funk que reverberaram no Brasil a partir do fim dos anos 1960, projetando artistas como Tim Maia (1942 – 1998) e Tony Tornado no início da década seguinte. Ben, que já vinha pavimentando obra autoral desde 1962 com orgulho negro e boa dose de soul no toque do violão (mas sem se prender ao gênero norte-americano), explicitou o brado do movimento racial, em bom português, no titulo desde disco lançado no mesmo ano em que Elis Regina (1945 – 1982) popularizou o soul Black is beautiful (1971), marco da adesão dos irmãos compositores Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle ao movimento pela valorização do povo negro. “Negro é lindo / Negro é amor / Negro é amigo”, reforçou Ben Jor em versos da letra da pacifista música-título Negro é lindo (Jorge Ben Jor, 1971), formatada no estúdio com cordas orquestradas pelo maestro Arthur Verocai – cordas também proeminentes também na faixa Porque é proibido pisar na grama (Jorge Ben Jor, 1971) e na regravação de Que maravilha (1969), parceria de Jorge Ben com Toquinho apresentada há então dois anos e revivida por Jorge no disco de 1971 em registro também pontuado pela leveza do toque de um piano. Em que pesem as cordas, o motor do álbum Negro é lindo é o violão de Ben Jor. Com toque alquimista que sintetiza ritmos negros do Brasil e dos Estados Unidos, criados a partir de matrizes africanas, o violão do músico carioca é a veloz máquina de ritmo que eletriza Cassius Marcelo Clay (1971). Outra parceria de Jorge com Toquinho, Cassius Marcelo Clay é tributo dos compositores ao engajado pugilista norte-americano Cassius Marcellus Clay Jr. (1942 – 2016), rebatizado como Muhammad Ali desde que se converteu ao islamismo com o incentivo de Malcom X (1925 – 1965), líder norte-americano do movimento negro nacionalista que mobilizou os Estados Unidos nos anos 1960. A homenagem de Ben Jor a Cassius Clay mostra como o álbum Negro é lindo está impregnado do poder negro importado dos EUA, mas adaptado, inclusive musicalmente, à realidade brasileira. Tanto que o disco é o terceiro de trilogia fonográfica em que Ben Jor é acompanhado pelo balanço singular e brasileiríssimo do Trio Mocotó, grupo de samba-rock formado em 1968 por Fritz Escovão (cuíca), João Parahyba (bateria) e Nereu Gargalo (pandeiro). É no balanço do Trio Mocotó que Ben Jor cai no suingue de Rita Jeep (Jorge Ben Jor, 1971), samba-rock que abre o disco com homenagem a Rita Lee (“Sujeita, você é um barato / Terrivelmente feminina / Com você, eu faço um trato / Um trato de comunhão de bem”), com quem Ben convivia nos estúdios paulistanos em que gravou o álbum, muitas vezes voltando para casa de carona no carro da cantora. Com capa que expõe Jorge Ben em foto de Wilney, enquadrada na arte de Aldo Luiz, o álbum Negro é lindo foi produzido em estúdio sob direção do compositor e violonista Paulinho Tapajós (1945 – 2013), hábil ao organizar e harmonizar os elementos de disco composto e gravado com fidelidade ao universo de Jorge Ben. Como o título já explicita, Negro é lindo é disco político, mas Jorge faz política com a sintaxe peculiar de cancioneiro pautado mais pelo ritmo do que pela letras, escritas a serviço desse ritmo. Celebrar o baterista do Trio Mocotó João Parahyba em Comanche (Jorge Ben Jor, 1971) e exaltar a beleza negra em Zula (Jorge Ben Jor, 1971) são armas usadas por Ben para entrar na luta e ostentar orgulho negro sem fazer letras explicitamente engajadas. Coerente com a própria ideologia, o compositor celebra musas em Maria Domingas (Jorge Ben Jor, 1971) e Cigana (Jorge Ben Jor, 1971) – outra faixa em que foram destacadas as cordas orquestradas por Arthur Verocai. No fecho do disco, Palomaris (Jorge Ben Jor, 1971) esboça certa sofrência indicada pelo tom melancólico dos versos, mas logo diluída pelo ritmo, motor da obra do artista. Negro é lindo está longe de ser o álbum comercialmente mais bem-sucedido de Jorge Ben Jor. O disco tampouco rendeu um grande sucesso para o repertório do cantor e compositor. Contudo, Negro é lindo conserva frescor musical e, por estar embebido em orgulho negro, faz 50 anos em 2021 com forte conexão com o atual e oportuno movimento que propaga a importância das vidas negras."

 por Mauro Ferreira

#OMelhorDoBrasilÉJorgeBen  

domingo, 17 de janeiro de 2021

Vacina contra Covid 19 chegou ao Brasil

Viva a ciência no Brasil! No dia 17 de janeiro de 2021 a profissional de saúde a enfermeira Monica Calazans , do instituto de infectologia Emílio Ribas, foi a primeira pessoa a ser vacinada contra a Covid 19 no Brasil. Viva a ciência! Há luz no fim do túnel!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

"Um livro de poucos respiros" "Marrom e Amarelo" de Paulo Scott

Quando acabei de ler: sem oxigênio!


    Contando a história de dois irmãos gaúchos, o narrador Federico -  que é um negro claro e militante da causa racial, e o seu irmão retinto Lourenço, embora não militante, está mais sujeito ao racismo brasileiro. Filhos de uma família composta por um pai negro e mãe branca, não são gêmeos, Lourenço é o caçula e é ainda mais retinto que o pai, é o marrom; enquanto que Federico é o amarelo,  irmão mais velho e mais claro, o grande protetor de seu maninho.

    Logo nas primeiras palavras fui arrebatada pelo ritmo do livro: se trata de uma narrativa (oral) brutal e dela ecoa uma fusão de palavras ansiosas e até cansada sobre aquela vida pontuada pela questão  racial desde o início. A escrita dialógica não é novidade para mim que estudei Guimarães Rosa e Saramago (quando comecei ler, o modo de escrita me remeteu mais ao Saramago, mas uma versão pós moderna dele, talvez), de qualquer forma, poesia pura. Ponto para Scott. Como tinha visto alguns vídeos resenhas eu já sabia que o texto seria sobre dois irmãos negros, um claro e um retinto, e que seria duro e cheio de cólera, mas não imaginava que fosse expressa como é: o conflito não é dos irmãos entre si, mas deles diante dessa sociedade racista em que vivemos. Comecei lendo/ouvindo Federico e escolhi logo uma canção como trilha sonora, como eu gosto: pensei logo em Herói do Caetano música complexa sobre a questão racial no Brasil. Não porque fiz qualquer relação direta entre o conteúdo dos discursos (estava apenas começando, não sabia mesmo qual era a do Federico), mas mais pelo tom da fala, que mesmo cheia de rispidez, não me chegou como um RAP dos Racionais MC’s (embora Federico use  uma camisa deles), mas porque achei o ritmo ali outro. Depois, no decorrer da leitura, percebi que as reflexões auto contrastantes do eu lírico de “herói” ,durante toda a canção de Caetano, tratam do mesmo problema proposto pela narrativa de Federico e algumas vezes elas se acolhem ou se contestam, sem nunca chegar a nenhuma conclusão definitiva.

Belas capas 

     Além de uma vivência pessoal e da preocupação com a causa racial de Scott como brasileiro, esse livro é fruto de uma pesquisa de anos (acho que cinco) e de uma escrita prolongada (acho que de seis anos) e o resultado foi que narrador protagonista Federico, um mestiço

“educado sob a ideia de ser duma família negra, ideia que virou minha identidade, moldado num fenótipo brutalmente destoante daquela identidade, dois fatores que, combinados, me expulsaram para sempre das generalizações do jogo esse é preto esse é branco, me dando um imenso NÃO LUGAR PARA GERENCIAR” (p.15), tanto que cheguei a pensar que me demorava na sua leitura ,horizontalmente enxuta (apenas 155 páginas),  porque achei que as letras são ligeiramente menores do que o normal, o que me chamou a atenção porque  leio a noite, antes de dormir e tal, cheguei até a reclamar da Editora Alfaguara,  responsável por essa edição lindíssima,  mas na verdade as letras nem são tão menores quanto comentei, era a densidade da narrativa (leitura vertical) mesmo que impedia que eu devorasse a obra rapidamente. Como disse Scott na entrevista para o canal LiteraTamy, “é um livro de poucos respiros”. Nesse sentido, ao contrário de outros autores que também dizem ter inspiração direta na obra de Graciliano Ramos, foi só na leitura desse livro que eu tive a sensação de asfixia que me dava ao ler Vidas Secas, por exemplo.Se eu tivesse que escolher uma palavra para definir aquela escrita eu pediria mais uma e escolheria ÓDIO e ANGUSTIA.

    Para variar, não sei como falar desse livro. Reparem que até agora, nesse texto,  já tentei fugir para Caetano, para o LiteraTamy e até para a Angústia do Graciliano Ramos: Não sei lidar com esse livro, porque também não sei lidar  com o jeito que ele foi escrito,  porque não lido bem com o tema que ele aborda na vida, essa é que é a verdade.

    Vou tentar um jeito mais  tradicional, a partir do narrador protagonista Federico, um mestiço, que não tem lugar para gerenciar seu não lugar. Me vi muito nessa angustia, durante a  leitura, tive que desabafar 


    A história que “Derico” narra começa a ser contada em 2016, quando ele, militante das causas raciais,  passa a integrar uma comissão instaurada pelo recém empossado governo federal em Brasília, para discutir o preenchimento das cotas raciais na universidade, a  partir da articulação de um software que pudesse distinguir exatamente quem é negro, quem é branco, quem é indígena e acabar com as fraudes. Sim, justo ele, que vivia nesse não lugar de não ser nem branco nem preto, inclusive em família.  Será mesmo que o problema do “colorismo” poderia ser resolvido por um soft, ou por um app? Ou este serviria apenas para enfraquecer a grande conquista das cotas raciais (o que estaria de pleno acordo com o ideal do “novo governo”? )

    No texto apenas o ano e o contexto do “novo governo no Brasil” é citado, daí sabermos que ele está falando do governo Temer, que a partir de um golpe de direita, começou a instaurar um posicionamento retrógrado em várias áreas, inclusive a racial e que abriu caminho para que se instalasse na precedência um governo de extrema direita, sob o qual vivemos hoje.

    Nas discussões burocráticas da comissão vamos ouvindo diversos posicionamentos e a impressão é a de que não se vai se chegar a lugar algum.

    Ao mesmo tempo, Federico é chamado para voltar a Porto Alegre, sua terra Natal, por conta de uma complicação que seu irmão Lourenço está passando, e esse problema o faz ter que revisitar momentos do passado naquela cidade, que o faz pensar se quando deixou Poa para estabelecer sua ONG sobre temas raciais, talvez, ele não estivesse numa fuga contra aquele passado. Scott alerta que aqueles acontecimentos ocorridos há anos, são narrados no presente, porque tratam de um fluxo que não se interrompe na cabeça do protagonista. Quem já presenciou ou viveu algum acontecimento relacionado ao racismo sabe do que se está falando, aquilo nunca passa. Eu sempre digo que é um assassinato, pois cada vez que acontece, cada vez que a gente presencia (no caso do Federico), um pedaço de nós morre um pouco.  

    Sobre Lourenço,o retinto, sabemos poucas coisas, apenas que parece ter tido vida, escolaridade e amigos diferentes do irmão e tem com eles uma relação de companheirismo que Derico sabe, mas não compartilha ou compreende. São mundos diferentes, na mesma família, no mesmo bairro. Um dos poucos momentos em que os irmãos conversam, o marrom  diz algo muito interessante :

“tu deve ter herdado algum tipo de dor dos nossos antepassados escravizados, uma dor que eu não herdei (...) minha visão da vida é outra, minhas armas são outras, eu tiro onda com a cara dos racistas que cruzam o meu caminho” (p.144)

    E Federico diz que nunca teve essa capacidade... 

Eu também nunca tive, mesmo que nem sempre tivesse voz para responder na hora ( é assassinato, lembra?), mas onda nunca tirei.

   Acho que posso parar o comentário por aqui, estou emocionalmente cansada por falar desse assunto, ainda mais  nos termos em que ele aparece nesse livro, mas deixo com vocês as palavras do Paulo Scott, vejam se ele também não tem o mesmo incômodo de Frederico, o meu incômodo,o incomodo que todo brasileiro deveria ter com o racismo.


      Ia acabar esse post aqui, mas acho que é preciso dizer que ele não é um livro só sobre o problema racial no Brasil, ele tem "poucos respiros", mas tem algum e em meio a tudo isso, se fala muito de uma certa educação sentimental "torta" de Frederico que, bem ou mal, namora muito como era na “nossa” época, lembra de quando “gravava fitas K7” para a namorada no passado, agora, já os 49 anos, ainda troca afagos em forma de mensagens com a paquera de 39 anos que está em outra cidade,  tipo “pensou em mim ontem a noite?” Por que é que a gente é assim?

Se puder, leia esse livro!

Um plus: texto de orelha por Paulo Lins

No Instagram do Paulo Scott alguém publicou uma foto de alguém segurando o livro. Lembrei que tinha uma parecida, mas com esmalte rosa. Os dedos de vir marrom segundo este baita romance é uma imagem significativa




terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Viajando a Etópia: Terra das Zahabes

 Sou apaixonada pela Etiópia. Por isso inventei que sou descendente de etíopes. Como não sei nada sobre minha ancestralidade, eu invento o que eu quiser. Mas olha que lugar MARAVILHOSO, Todo cheio de "tesouros escondidos", como em Minas, mas mais antigo! Trago dois vídeos para a gente saber um pouquinho sobre :APAIXONANTE





domingo, 10 de janeiro de 2021

Torto Arado: Servidão - Ancestralidade - Mulher

 

À esquerda, a capa de Torto Arado, por Linoca Souza
À direita, a foto de Giovanni Marrozzini em Nouvelle (2010)

Venho dizendo que é muito difícil falar desse livro, mas é impossível não falar. Como sei que nunca vou conseguir escrever sobre como ele merece, então vou tentar  pontuar algumas questões que julgo importantes e , evitando dar spoiler, pelo menos não muito, mas é que tem coisas que acho que preciso comentar. Quis muito que esse livro fosse bom, fosse mágico, fosse arrebatador, mas como quase nunca meu desejo é realizado, comecei a ler sem expectativas. Planejava ler até a virada do ano e se fosse preciso, no começo de janeiro, mas comprei na primeira semana, dia 8 de dezembro, mas só recebi dez dias depois, comecei a ler dia 18  e terminei dia 26: o Livro de dezembro! Presente de Natal!

Durante a leitura já fui sentindo essa dificuldade de falar sobre ele, é tão mágico, não dá para comentar muito, mas é urgente recomendá-lo. Na hora que terminei, no final de um ano apocalíptico como foi 2020, não sabendo o que dizer, disse apenas: Que tiro foi esse?

Como demorou um pouco para chegar (os pedidos ultrapassaram o previsto em dezembro e foram precisas novas edições), eu assisti as resenhas no Youtube, todas eram unânimes : se trata de um livro que nasceu clássico.   Um dos Youtubers disse que tem tantas coisas nesse livro que é impossível comentar. Não foi só eu. Estou tentando escrever sobre faz tempo, mas é tão enorme, que eu acho um pecado profanar. Vou tentar ler a partir de três tópicos que mais me chamaram a atenção  porque se ampliam  e podem meio que sintetizar o romance. Avisando que avisando  estes não são os únicos que julgo  importantes do livro, nem os  únicos que eu gostei, mas são os que mais me tocaram e sobre eles me sinto ligeiramente confortável para comentar: 1 Terra – Escravidão- Servidão;  2 Brincadeiras de Jarê- Encantaria  - Ancestralidade ;3-  Mulheres fortes e unidas;

1 Terra – Escravidão- Servidão
O livro é sobre  uma comunidade rural, a partir da história da família do curador Zeca Chapéu Grande, sua esposa a parteira Salu e seus quatro filhos, que passaram a viver de “morada” na fazenda Água Negra com o fim da escravidão, no interior da Bahia, e foram trabalhar em regime de servidão. Quem narra são as duas irmãs mais velhas, Bibiana e Belonisia (cada uma narra um capítulo). Em tempo, fala-se de pessoas que saíram da escravidão e passaram à servidão, até o surgimento de novos tempos com lutas sociais.

A epígrafe do romance é só TODO o capítulo 28 de Lavoura Arcaica de Raduam Nassar (livro que reli imediatamente  após terminar Torto, ainda em 2020)  

capítulo 28 de Lavoura Arcaica, de Raduam Nassar

Nesta entrevista Itamar conta que o arado torto que aparece no romance é um instrumento de trabalho arcaico, que veio dos antepassados de Belonísia e que "se deformou com o tempo, mas ainda continua rasgando a terra para semear a vida”. Itamar diz  também que a ideia do título foi retirado de um trecho de Marília de Dirceu, de Thomás Antonio Gonzaga, e todo o imaginário do trabalho com a terra na literatura brasileira é pontuado no romance. Foi fácil encontrar na internet:

“A devorante mão da negra Morte

Acaba de roubar o bem que temos;

Até na triste campa não podemos

Zombar do braço da inconstante sorte:

Qual fica no sepulcro,

Que seus avós ergueram, descansado;

Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos

Ferro do torto arado.”  (Marília de Dirceu)

 

Percebe-se de  cara que é uma história de gente que tem a terra como parte de si, do seu corpo , e seu habitat, afinal  como os donos da fazenda não os permitia ter nenhum bem durável,  não tinham casas de alvenaria,e até  vivem em casas feitas de barro (terra). Segundo conta a filha de Zeca Chapéu Grande,  Belonísia, a mais ligada ao pai:

Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer,onde avançar, onde recuar.

Como um médico à procura do coração." p.100

Além de Belonísia, que não se via separada da terra, para todos eles a terra  também era tudo, mas embora nela labutassem dia a dia para dar a terça parte da produção ao seu dono (tipo na idade média mesmo) e ainda agradecendo-lhes pela chance de poder trabalhar naquele chão, a vida que levavam ao cultivar para alimentação própria, sem dinheiro, quase sem autonomia não era justa, como conta Bebiana:

“se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à terra onde plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos da fazenda carregando nossos próprios pertences. Se não pudéssemos trabalhar, seríamos convidados a deixar Água Negra, terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores haviam nascido. Aquele sistema de exploração já estava claro para mim.”p.83

Isso tudo me lembrava o tempo todo a canção Estrela Maga dos ciganos, do Elomar Figueira Melo:

"É tanta coisa pur dever tanto pagar

Sem receber tanto que dar

Chega! Já num guento mais não

 (...)

E inquanto na face da terra havê tiranos,

Vassalos e susseranos

Sinhorio e servidão

Fico lá incima hospedado com os Reis Mago

Nos camim de São Tiago

Num boto os pé nesse chã"


Nada é exposto diretamente pelas narradoras, nenhuma das três, mas a narrativa vai nos fazendo ver, cada vez mais claramente, a realidade daquele povo, juntamente com o momento em que eles mesmos vão se enxergando como são : escravos não são mais, não recebem mais açoite (embora a mãe de Zeca narre lembranças dessa época sofrida na tal fazenda Caxangá ), mas às vezes se dizem índios porque sabem que há lei para protegê-los; sabem que são trabalhadores, mas a qualquer hora os donos podem chegar e tomar-lhes o plantio, sem dó. É uma vida muito “análoga à da escravidão”. Demora um pouco, no tempo e na narrativa, para que os irmão mais jovens das protagonistas e netos de Zeca Chapéu Grande  passem a falar em termos  como “quilombolas”, que poderia inseri-los  sob a proteção legal:

“Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas” p.187

Nada acontece por acaso, mas não posso deixar de tomar como curioso que, ao mesmo tempo em que lia,  fico sabendo da história do resgate de Madalena Gordiano (46 anos), essa mulher tão bonita, que viveu 38 em regime análogo à escravidão na casa de uma família, em Patos de Minas (MG). Escrava em pleno século XXI? Pois é. Como no romance, a historia não  para nela , mas  possivelmente se estende a sua família ,sua  irmã . É muito ter a "nossa saga" brasileira jogada na cara. Como prosseguir?

Do outro lado dessa vida de trabalho braçal  sem fim na roça, temos um dos trechos mais bonitos do livro em minha opinião, quando Bibiana conta  

“Meu pai não era alfabetizado, assinava com o dedo de cortes e calos de colher frutos e espinhos da mata. Escondia as mãos com a tinta escura quando precisava deixar as digitais em algum documento. De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a leitura dos filhos o que perseguia com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram os bens maiores de sua existência.Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho qe sentia dos filhos aprendendo a ler e o valor que davam ao ensino, saberiam que era o bem que mais queria poder nos legar.”P. 66

Emocionou-me muito essa parte porque ele me remeteu, de alguma forma,  ao meu pai, que não era analfabeto, mas estudou menos do que gostaria, só que  gostava dos livros e do saber e, segundo minha mãe conta, quando casou levou duas malas, uma de roupas e outra de livros para nova vida. Já idoso e começando a ter esquecimentos, lia todo dia, o dia todo, uma cópia impressa com erros da minha dissertação  que ficava no quartinho dele. Certamente tinha orgulho de mim, e eu dele tenho muito.

2 Brincadeiras de Jarê- Encantaria  - Ancestralidade

Outra das maiores belezas de Torto Arado é todo seu caráter mágico. Muitas vezes, lendo sobre a infância de Bebiana e Belonísia, pensei que estivesse lendo estórias mágicas das crianças de Guimarães Rosa (minha especialidade), ou mesmo em outras descrições do decorrer do livo, parecia que  estava lendo algum texto de realismo fantástico. Isso porque, junto às personagens, estão sempre seus ancestrais, encantados, santos,espíritos e outras manifestações mágicas, o que é muito bonito e importante.
Zeca Chapéu Grande é um curador de Jaré, pai espiritual de toda a comunidade, que o procurava para curar males do corpo (já que medicina estava distante), mas especialmente da alma. Quando apareciam doentes assim, ficavam alguns dias em sua casa, conta Bebiana

“Não eram hóspedes, visitas ou convidados. Eram pessoas desconectadas de seu eu, desconectadas de parentes e de si. Eram pessoas com encosto ruim, conhecidos e também desconhecidos de todos. (...) O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartadas  do seu próprio eu” P. 33 e 39  

Religião daquele povo, as “brincadeiras de jarê” tratam-se de

“uma religião de matriz africana, mais especificamente um candomblé de caboclo, que existe exclusivamente em cidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina (...)Uma de suas principais particularidades é o grande sincretismo religioso, com influência do catolicismo, da umbanda e do espiritismo kardecista. Pode ser considerado um amálgama das nações bantu e nagô, as quais se uniram o culto aos caboclos.” (Wikipédia)

 Nada mais brasileiro e bonito. Nessas práticas, no romance, quem comanda as festas e as homenagens é o curador Zeca Chapéu Grande, mas ele também recebe a ajuda, incorporado  ou não, de Encantados,que, diferentemente das entidades da umbanda,

não são necessariamente de origem afro-brasileira e não morreram, e sim, se "encantaram", ou seja, desapareceram misteriosamente, tornaram-se invisíveis ou se transformaram em um animal, planta, pedra, ou até mesmo em seres mitológicos e do folclore brasileiro como sereias, botos e curupiras. Na Encantaria, as entidades estão agrupados em famílias e  possuem nome, sobrenome e geralmente sabem contar a sua história de quando viveram na terra antes de se encantarem.” (Wikipédia)

A confiança nessas forças e energias, ao que parece, está sustentada na presença constante dos ancestrais para dar apoio e proteção em todos os momentos da vida. Os encantados e encantadas, que viveram desde antes, sabem de tudo, conheceram os ancestrais mais longínquos, sabiam quais das coisas que acontecem agora são repetições de acontecidos com ancestrais nessa terra. Saber (não apensas acreditar) da sua importância  como guias para  a vida das personagens é o que me parece dar a sentido àquelas vidas tão sofrida que levam.  Eis  o verdadeiro tesouro do povo preto. Muito emocionante.

3-  Mulheres fortes e unidas  

O último tópico, mas não menos importante (muito ao contrário, talvez o mais importante mesmo) seja a união das mulheres nessa saga toda. Além das duas irmãs narradoras, que possuem uma ligação muito íntima, que os acontecimentos da trama só reforçam e que, mesmo quando elas se afastam, nunca morre, também temos as suas  ancestrais e até mesmo as encantadas são a marca feminina desse romance. Na entrevista do autor, citada acima, ele lembra que no cenário rural do sertão da Bahia as mulheres têm protagonismo muito forte na família e na comunidade, porque elas sobrevivem mais tempo, guardam as memórias.

Encerro este texto com outro trecho que muito me tocou:

Amigas, afeto

O afeto que Belonísia ganha, sem querer, de sua amiga Maria Cabocla e nunca vai saber como lhe agradecer. Eu não tenho os cabelos crespos, mas é cacheado e, como cresci numa família branca, de gente de cabelo liso, eu também demorei muito para receber um carinho na cabeça, e foi fora da família, como se aquele meu cabelo diferente não tivesse o direito de receber um carinho, não por maldade, mas porque , inconscientemente, funciona assim. Eu sei como é e só agradeço aos meus orixás e encantados por, ainda que tarde, tenha tido essa oportunidade na vida. E mais de uma vez.

Que livro, gente! Que livro!