Depois que reli "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", de Clarice Lispector, aquela leitura forte e cheia de esperanças que se faz aos vinte anos e percebi que o que realmente me importava eram mesmo aquiles trechos dos quais me lembrava, não achei nada além daquilo e fiquei um pouco decepcionada com a RELEITURA.
Era questão de honra reler "Alice e Ulisses", que para a leitora que era , na época, tinha relação muito direta com o livro de Clarice, muito além de serem livros sobre um amor entre professoras primárias e um Ulisses. Teria mesmo? Fui reler.
Assim como o livro de Clarice, o grosso do prazer da leitura já habitava minha memória, mas nesse caso ainda consegui outras impressões novas, como quando me encantei com o prólogo cheio de brincadeiras com as palavras e significados de Alice e Ulisses...
Em geral, acabei afastando maiores proximidades entre os livros. Se aquele é uma jornada de aprendizado, construção de amor e fenomenologia, este é a história de uma louca paixão, banhada nos textos clássicos da Odisséia de Ulisses e da Alice de Carroll.
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| Primeira edição, 1983. Minha edição. |
Vejamos algumas poucas publicações que resgatei no processo de releitura:
9 junho
ALICE E ULISSES : Terminada a releitura de "Uma aprendizagem..." da Clarice, senti vontade de reler "Alice e Ulisses" da Ana Maria Machado (uma das minhas autoras favoritas na infância). Quando li esse livro adulto dela, publicado nos anos 80, eu tinha meus vinte e poucos anos e estava ainda muito impactada com a leitura de "uma aprendizagem", tanto que não passou pela minha cabeça que não fosse uma referência direta e ele: dois romances sobre a busca de um encontro erótico/amoroso entre Ulisses com uma professora primária! Só isso já me bastava para ligar as duas obras. Mas será mesmo que existem mais ligações entre os dois livros? Só relendo pra saber. Vou devorar o livrinho (amo a escrita de Machado), depois lhes conto 😍
10 junho
ALICE E ULISSES: Como um cineasta ouve o "canto de sereia"?
"Ulisses ouvia vagamente a história comprida que a moça contava em palavras que fluíam tranquilas e seguras em cima de um leito de hesitação. Prestava atenção era na voz dela. O canto das sereias devia ser assim. Não era só um timbre agradável, uma modulação harmônica. Eram as qualidades não auditivas que o envolviam. Uma voz quente, macia, temperada. Dava vontade de pegar. De ver, filmar, fotografar. Tinha que conseguir um dia botar em imagens essa voz visual, plástica." (P.17-8)
Está aí um momento interessante do livro. Tal qual o da Odisseia, esse Ulisses também ouve o canto da sereia que pode matá-lo. Mas esse não resiste: acaba doente (de paixão)
17 junho
COMEÇA ASSIM: Primeiro livro para adultos de Ana Maria Machado (a dama da nossa literatura infantil), Alice e Ulisses (1983) começa com uma introdução muito saborosa, onde a autora vai mesclando as referências centrais : as personagens Alice de Carroll e Ulisses, de Homero. Ao mostrar que vai contar uma história de amor na mescla desses dois universos (ALUCINADA LUCIDEZ), Machado começa trabalhando as palavras (destaquei algumas evidentes em caps), depois cita os universos de espelhos, maravilhas, a odisséia, o pathos e o logos,etc. Adorei a introdução, especialmente porque o livro não será todo escrito assim, o que acharia soberbo, tolo e desnecessário, mas a título de introdução serve muito pra entrar no clima do romance. Vejamos:
"ALICIADA, ela foi, vá lá. Mas porque quis, das DELÍCIAS ao SUPLÍCIO. Vai ver que achou que tinha ALICERCE. E tanto tinha que não perdeu a ALUCINADA LUCIDEZ, nem mesmo na alegria inicial do cio, por mais variados que tenham sido os desvairados desvãos e os deslizantes desvios.
Claro,teve clima de vertigem, de JOGO DE ESPELHOS, cada um mergulhando no outro e se reencontrando filtrado ao inverso. Explorando verso e reverso nas palavras tontas e nas levras tantas, pavanas livres ou nirvanas parvos, rolando na cama e fodendo feito sapo, como dizia, que dispara e não para mesmo que lhe curtem a perna. Descobrindo salgados garimpos do corpo e lambendo versos de Salinas no fundo do ouvido,resfolegados, entre um espasmo novo e um orgasmo seco.
Só que não dava mesmo. Ilícito e não solicitante não podia ser mesmo esquema de Ulisses, enredado na roda que se deslancha e retece, sem despachar ou retesar. Escolhendo o tear e encolhendo o tentar. Pré -ferindo, preferindo fugir espantado do "pathos" e se amparando no "logos" como desculpa para se paralisar. Fingindo razões éticas como ilusões óticas para não enxergar o mascar mesquinho da ruminante da ODISSÉIA, do ramerrão que rema para longe do PAÍS DAS MARAVILHAS, ou que teme a desarrumação do OUTRO LADO DO ESPELHO. Avesso que para Alice acabava sendo uma revelação, rebelde a cada novo véu, clareando a intriga, separando o trigo do jogo verbal."
No final
Agora encerrei o ciclo com os Ulisses.
Ao final, nem a narrativa amorosa de Clarice, nem a passional de Machado combinam com essa mulher de meus idade que sou hoje . Sou muito mais a menina de Felicidade Clandestina, meu livro favorito de Clarice.
FELICIDADE CLANDESTINA: Postei um registo da releitura de "Uma aprendizagem..." concluindo que, embora seja um livro bonito, ainda prefiro os contos de "Felicidade Clandestina". Quando li o romance aos vinte anos, comecinho da vida , é claro que eu acreditava que poderia um dia viver aquela plenitude do amor à primeira vista e ao mesmo tempo aprendido de Lóri e Ulisses . Agora já não acho. Hoje já sei que sou uma leitora e meu melhor amante será sempre um livro, ainda que emprestado de biblioteca, ainda que seja de outra pessoa, será meu e eu o lerei com "orgulho e pudor":
"A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia."
Ave, Clarice ...
Momentos...