sábado, 30 de janeiro de 2021

"Mil Nações moldaram minha cara" : Resultado do meu teste de ancestralidade


 Quem me conhece um pouco mais sabe que a questão da minha origem é meio que um assunto tabu para mim, sobre ele não falo, não procuro, muito ao contrário, por muito tempo até cheguei a fugir dele, quando ele se apresentava em minha frente.

Daí que sempre achei que essa fosse a grande busca de minha vida, minha missão e eu a rejeitava rejeitei toda a vida.

 

É um caso muito delicado, é mexer naquele primeiro abandono, que é uma ferida que nunca cicatriza, nem casca protetora cresce nela, está sempre à flor da pele. Pouca gente entende quando eu digo, por isso eu parei de me justificar, porque eu sei que é um assunto que eu tenho que resolver comigo mesma. Por isso :

“Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi,não é, não fica sendo!" Guimarães Rosa,  GS:V

 

Mas a verdade tem sua própria força e, eventualmente, alguns fragmentos chegaram até mim, fiquei sempre muito assustada, em pânico mesmo. Mas um dia a gente tem que dar um passo em direção a essa origem. Não estava nos meus planos, claro, mas ganhei um dinheiro de presente de Natal, nada demais, mas com um pouquinho mais que eu tinha  guardado pois  quase não gasto nada na quarentena, então  dava para eu comprar um teste de DNA Global no Genera.


Na virada do ano essa ideia me passou pela cabeça e eu senti que era a grande oportunidade. Será que eu teria outra chance depois? Pensei muito nisso e, num rompante, como se estivesse fazendo a maior coisa da vida, fui lá e comprei já nos primeiros dias de 2021. No caderno da minha história e da minha ancestralidade, essa página em branco ia receber seus primeiros traços. Minha ideia era não falar disso nunca com ninguém, se não narro, não é.

 

Achei que ia ser fácil, que ia passar logo e que não ia ficar ansiosa. Mas não foi.Perdi o sono várias  vezes, me senti culpada por estar indo atrás dessa informação, como se fosse uma traição à minha família adotiva, chorei.

 

Não tinha muita ideia do que ia sair, mas apostava que era muita mistura e desejei muito, muito (mas jurava que era impossível) que saísse Etiópia. Imagina se não saísse a África? Como minha intuição, meu sentimento de pertencimento, meu espiritual iria ficar? Quase enlouqueci!

 

Assisti a vários vídeos no Youtube de pessoas que tinham feito em laboratórios no Brasil e no exterior, cada um tinha um motivo: conseguir visto europeu ; curiosidade, no caso dos asiáticos ; no caso dos negros aproveitar a oportunidade para saber um pouco mais da história dos antepassados, coisa que  a maioria não teve, não tem. Para esses últimos o caso parecia mais sério, todos relataram estresse e uma vontade de relatar aos outros a sensação de ter, enfim, parte de de seu passado desvendado e com isso me identifiquei demais: Na hora da coleta da saliva, achava que eu tinha feito errado que não iam conseguir fazer  o exame. Como demorou exatas três semanas (tinha visto gente relatar que saiu bem antes), tinha certeza que tinha dado erro. Mas não deu erro. 

Enfim recebi o resultado em 29 de janeiro de 2021.

Antes de falar do resultado, devo alertar para uma questão que eu vi desenvolvida no Youtube em vídeos como esse e esse  e  fiquei pensando que o laboratório faz o exame e comparam com os dados que eles têm, certamente deve haver lugares que eles podem não ter os dados. Por esse tipo de detalhe que digo que os resultados são inquestionáveis, mas a interpretação eu, como historiadora, posso fazer outra, como vou fazer aqui.  

Eu sou mestiça, sei disso, e já imaginava que a maior parte do meu DNA fosse proveniente da Europa (tinha visto muitos casos assim no Youtube, com pessoas com traços negros mais evidentes do que eu,mas com ancestralidade européia, como esse,) minha curiosidade e tensão era sobre a África mesmo.

O Lab Genera responde resumidamente  que 53% da minha ancestralidade  é proveniente da Europa e 33% da África, num total de 86% dessas regiões. Para eles essa informação está ok. Para mim não.

Ainda no geral, o resultado final foi assim(gosto de ver a marca colorida da minha linhagem no mapa mundi):


E agora com mais detalhes :


É muito lugar, né? Para o recorte do Genera, as pelo menos 5 gerações analisadas teriam passado por dezesseis regiões! Isso é que é GLOBAL! Confesso que fiquei feliz ter aparecido tanta África, quase tudo do centro para o norte, inclusive o Chifre da África, região da minha amada Etiópia! Sim, eu tenho a Etiópia do meu DNA, 3% do total, mas tenho: AMEI!

Mas gostaria de separar um pouco mais, vejamos os lugares que “pontuaram” melhor:

25% Ibéria (Portugal Espanha)

13% Europa Ocidental (França,Áustria,Inglaterra, Alemanha, Suíça, Bélgica)

12% Oeste da África (Angola, Camarões, Gabão, Congo, Guiné Equatorial)

11% Costa da Mina (Nigéria, Gana, Togo e Benin : forte de São Jorge)

8% Itália

7% Leste da África (Tanzânia, Quenia, Malawi, Moçambique, Zimbabue, Zâmbia,parte da África do Sul)

4% Amazônia (Equador, Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela e norte do Brasil)

3% Basco(extremo da Espanha); Volga-Ural (Rússia);

     Leste Europeu(Estônia, Lituania, Polônia, Eslovaquia, Hungria, Ucrânia);

    Chifre da África (Eriteia, Etiópia, Somália)

    América Andina (Cordielheira dos Andes)

    Ásia (Japão/Coreia)

    Megrabe (Argélia, Libia, Marrocos, Tunísia, Mauritania)

2% Patagônia (extremo sul da América Latina)

Europa 5 regiões

África  5 regiões

Agora a gente volta a dividir o geral: Meu DNA é dividido a entre Europa e África, mais especificamente entre a Ibéria e Oeste da África (de onde vieram pessoas para serem escravizadas). Sim, meu DNA é um retrato da colonização no Brasil, eu vi esses dados e pensei nos tantos estupros, explorações, roubos e toda arbitrariedade que os colonizadores promoveram por aqui e que esses também fazem parte da minha ancestralidade e talvez esse passado de abuso e violência explique tanta fragmentação! Não sei!

Eu posso entrar em contato com pessoas que compartilham meu DNA, que lindo, mas no meu caso os possíveis “parentes” mais próximos seriam no máximo primos de terceiro grau. Será porque sou muito “dividida”? Será porque a maioria dos descendentes de africanos não teve ainda acesso a esse tipo de teste e, como sabemos, tiveram sua história apagada. Acho que  as duas coisas.  

O mais bacana de tudo é que agora é certeza: TENHO SANGUE AFRICANO, SIM , e não é pouco! Eu não sou paquistanesa,nem indiana, nem afegã, meu Dna é mestiço europeu/africano e essa revelação  foi um grande presente que meus orixás me deram.

Agora já sei que não vim do nada, que tenho mesmo ANCESTRALIDADE, como eu sentia desde sempre! Isso é lindo, vocês não acham?

Para concluir: carecia de ter coragem e eu tive, passei pela travessia da busca da verdade, não foi fácil, mas me deu força suficiente para narrar aqui no blog (imagina a ousadia) sobre um tema tabu! Agora superei!

Me sinto uma nova mulher, mais

CAMILA (nome que evoca a história do meu nascimento) ZAHABE (nome que eu escolhi para mim e agora foi legitimado, pois tenho um pouco de  DNA etíope sim, e por fim RODRIGUES  (herança ibérica que ganhei da minha família adotiva!)
Termino citando a dedicatória de um livro infantil sobre qual comento aqui depois e é tudo o que eu queria falar aos meus antepassados agora:

“Aos meus  ancestrais que me convocaram a

esta viagem incrível à Grande Mãe Terra,

com o propósito de divulgar seus maravilhosos feitos” (Kiussam de Oliveira)

 

 

 

 




sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Ler os clássicos: companheiros na vida e as palvras- cantiga de Rosa

 


COM LICENÇA ÍTALO CALVINO - O seu "Porque ler os clássicos" é mesmo estupendo, mas eu apostaria numa definição mais enxuta: Ler um clássico é ter com quem contar na vida. Na hora que vida se apresenta inteira pra gente, que exige que a gente se mostre como a gente é , que a gente fica "bêbado de eu" etemos que nos posicionar e nunca estamos prontos... é dele que a gente lembra, que nos ajuda. É na hora que o demo (nos crespos do Homem) não queria existir, não vem, mas a gente sente que ele nos ouviu, a hora que a gente vai passar de um rio calmo para o São Francismo e não sabe nadar, mas carece de ter coragem... é assim!

Obrigada pela vida toda Guimarães Rosa



"PALAVRAS-CANTIGAS"- Em geral, minha leitura de Guimarães Rosa (seja das obras, seja dos manuscritos), tudo está centrado no lúdico , no ouvir e no cantar, ou como diz um personagem de "Cara de Bronze"(novela toda rendada de  cantigas sertanejas), a viagem da obra rosiana é para "buscar palavras-cantigas" . Desde sempre Rosa foi para mim como uma cantiga de ninar, até mais que o escritor eruditismo por quem me apaixonei depois, ainda muito nova ele já  era Joãozito, que "cantava" comigo. Pesquiso, independentemente, a escrita de Rosa desde 2001, quando assisti meu primeiro curso sobre na USP, por isso ainda antes de entrar no mestrado em 2005, eu já tinha ministrado uma oficina sobre ele para crianças na Escola Lumiar, na qual a ideia era justamente a de "brincar" com Rosa. Ideia que aquelas crianças (iletradas ou em fase de alfabetização) aceitaram de cara. Quando eu mostrei o Léxico de Guimarães Rosa uma delas perguntou : "Como ele pôde criar tantas  palavras? Deixaram ele fazer isso?"  rs
Eu espero mesmo que, depois, quando Rosa aparecer como obrigação em suas vidas escolares, elas pelo menos se lembrem que brincávamos com ele nas tardes de quarta feira entre 2004 e 2005.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O livro certo: Expectativas pré leitura

 Tinha comprado dois livros na Estante Virtual, ambos chegaram entre ontem e hoje. Um deles veio errado 😔

Esperava uma capa com as princesas Iabás, que viraram divindades
 e recebi essa aldeia de filme de Sembéne. Nada é por acaso!

Comprei o infantil  "Omo-oba:histórias de princesas" de Kiussam Oliveira, mas recebi "Igbo e as princesas" de Marcos Caje! Achei que tinha comprado errado, mas foi o vendedor se enganou. Disse a ele que  gostei de "Igbo" também, mas queria mesmo o "Omo-oba", que comprei.  Aí ele disse que enviará um motorista com o meu livro e que levará o que veio errado. A ver. Antes dele vir vou ler esse livrinho Igbo e se achar interessante, em tempo, comento ele aqui. 😉


Mas ontem recebi outro livro, esse o romance da vez: A linda edição de "Hibisco Roxo", da nigeriana  Chimamanda Ngizi Afichie. Escolhi ler esse livro mas sem muita expectativa. Queria ler algo diferente, pensei num autor coreano, japonês... Fiz até pesquisa e tudo (adoro os canais literários no YouTube), mas me dei conta que, apesar do mergulho nos cinemas, ainda não leio literatura africana, por enquanto. Outro ponto que me levou a essa escolha foi o básico: nem tanto por querer, mas quase nunca animo de ler autoras. Tenho  que mudar isso. Então quis ler não apenas um autor africano. Eu poderia ter escolhido um romance de Sembéne, ou o próprio José Luandino Vieira -queria ler o romance que inspirou o filme Sambizanga, que tanto amo - , mas ai seriam vozes masculinas, só que africanas. E as mulheres?

Chimamanda Ngozi Adichie  

Então, para começar, escolhi ler a bela Chimamanda, nessa edição lindíssima, que conheci pelos discursos "O perigo de uma história única", que assisti no curso sobre cinemas africanos ano passado ou mesmo o "Nós deveríamos ser todos feministas", que é muito comentado e até inspirou a canção Flawless, da cantora Beyoncé (que não me atrai musicalmente, enfim). Eu conheço, inclusive, a crítica de alguns africanos sobre tantas colocações dos afro americanos, não é qualquer coisa que passa na minha garganta, mas Chimamada é africana, não afro americana, e isso deve fazer muita diferença (espero). Então até sei quem é a autora, sei que ela é engajada e tal, mas antes de começar a ler o livro, destaco que minha expectativa é literária, então eu ESPERO QUE ELA ME CONTE UMA HISTÓRIA, que seu livro não seja mais uma Palestrinha. A ver...

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Marcas de "Relato de um certo oriente"

 

Tenho um grande amor pelo primeiro romance publicado por Milton Hatoum, talvez o mais poético deles, e fico muito emocionada quando, nos contos ou crônicas, percebo alguma marca que me remetem a "Relato de um certo oriente", seja uma personagem, seja uma história paralela, seja o que for.

O segundo livro que leio em 2021 está sendo o seu enorme volume  de crônicas "Um solitário à espreita" e estou gostando, como sempre é uma leitura muito apetitosa, mas como gostaria que me contassem uma história, estou intercalando, demoradamente,  com outras narrativas.

Como suspeitei que viria, ontem li uma crônica que  com uma referência direta à escritura de "Relato..."

"Que distração: em abril de 1989 publiquei meu primeiro romance, cujo esboço inicial foi feito em dezembro de 1980 e nos primeiros meses de 1981. O relato seria um conto, mas foi crescendo com o calor da viagem sinuosa e atropelada da escrita.

Às vezes, quando essa viagem é interrompida, você diz a si mesmo que é uma pausa provisória, mas há textos que ficam no meio do caminho e são abandonados ou esquecidos: assuntos morrem nas primeiras páginas. Na verdade não é o tema que morre, e sim a forma, a arquitetura, o projeto que não vinga. Mas aquele conto expandiu-se, uma voz  puxava a outra, vozes tão intrometidas que nem sei de onde vinham. Quando me dei conta, já tinha escrito mais de cem páginas ..." Milton Hatoum. Tantos anos depois, Paris parece tão distante.... In "Um solitário a espreita", p. 33 

Trocando ideias sobre a escrita de Hatoum no Instagram encontrei um leitor que, como eu, estava se deliciando com o "Relato...", eu disse que talvez a base da obra de Hatoum já estivesse esboçado ali, de uma forma fantástica, muito bonito de ver. Sabem que ele foi escrito há cerca de 40 anos (tem mais ou menos a minha idade), em um quartinho alugado em Paris, me deixa alegre de alguma forma: talvez eu também possa ser mais do que um projeto menor (no caso um conto) que não foi abortado e virou algo muito importante para outras pessoas.

Enfim... relatos de leitora"

 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

NÃO À NORMALIZAÇÃO DO RACISMO , por Paulo Scott

 


NÃO À NORMALIZAÇÃO DO RACISMO - "... ao longo de mais de 30 anos eu tinha sido um inferno que tornava todos os outros infernos eventuais do cotidiano meras fagulhinhas na normalidade geral, que o meu olhar, MEU MODO DE LER A VIDA, RECUSAVA A NORMALIDADE ENGESSADA PELO DISTÚRBIO QUE AS PESSOAS CHAMAVAM DE RACISMO, pela devastação psíquica por ele causada, não importa o que os outros dissessem para tentar me convencer de que não estava tão ruim assim de que o ódio contra os pretos e o nojo em relação aos pretos estavam menores, de que no passado a coisa tinha sido muito pior... " "Marrom e Amarelo", Paulo Scott, p. 60

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Jorge Ben : 50 anos de "Negro é lindo" (1971), por Mauro Ferreira




 "MEMÓRIA – Oitavo álbum de estúdio de Jorge Ben Jor, lançado em novembro de 1971 pela gravadora Philips, Negro é lindo é fruto dos movimentos sociais que institucionalizaram o black power nos Estados Unidos ao longo dos anos 1960 e, por isso mesmo, o disco completa 50 anos em 2021 conectado e afinado com o grito pela reafirmação da importância de vidas negras que ecoa forte no mundo em tempos atuais. Nos Estados Unidos, os movimentos sociais dos anos 1960 tiveram como trilha sonora sobretudo o soul e o funk que reverberaram no Brasil a partir do fim dos anos 1960, projetando artistas como Tim Maia (1942 – 1998) e Tony Tornado no início da década seguinte. Ben, que já vinha pavimentando obra autoral desde 1962 com orgulho negro e boa dose de soul no toque do violão (mas sem se prender ao gênero norte-americano), explicitou o brado do movimento racial, em bom português, no titulo desde disco lançado no mesmo ano em que Elis Regina (1945 – 1982) popularizou o soul Black is beautiful (1971), marco da adesão dos irmãos compositores Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle ao movimento pela valorização do povo negro. “Negro é lindo / Negro é amor / Negro é amigo”, reforçou Ben Jor em versos da letra da pacifista música-título Negro é lindo (Jorge Ben Jor, 1971), formatada no estúdio com cordas orquestradas pelo maestro Arthur Verocai – cordas também proeminentes também na faixa Porque é proibido pisar na grama (Jorge Ben Jor, 1971) e na regravação de Que maravilha (1969), parceria de Jorge Ben com Toquinho apresentada há então dois anos e revivida por Jorge no disco de 1971 em registro também pontuado pela leveza do toque de um piano. Em que pesem as cordas, o motor do álbum Negro é lindo é o violão de Ben Jor. Com toque alquimista que sintetiza ritmos negros do Brasil e dos Estados Unidos, criados a partir de matrizes africanas, o violão do músico carioca é a veloz máquina de ritmo que eletriza Cassius Marcelo Clay (1971). Outra parceria de Jorge com Toquinho, Cassius Marcelo Clay é tributo dos compositores ao engajado pugilista norte-americano Cassius Marcellus Clay Jr. (1942 – 2016), rebatizado como Muhammad Ali desde que se converteu ao islamismo com o incentivo de Malcom X (1925 – 1965), líder norte-americano do movimento negro nacionalista que mobilizou os Estados Unidos nos anos 1960. A homenagem de Ben Jor a Cassius Clay mostra como o álbum Negro é lindo está impregnado do poder negro importado dos EUA, mas adaptado, inclusive musicalmente, à realidade brasileira. Tanto que o disco é o terceiro de trilogia fonográfica em que Ben Jor é acompanhado pelo balanço singular e brasileiríssimo do Trio Mocotó, grupo de samba-rock formado em 1968 por Fritz Escovão (cuíca), João Parahyba (bateria) e Nereu Gargalo (pandeiro). É no balanço do Trio Mocotó que Ben Jor cai no suingue de Rita Jeep (Jorge Ben Jor, 1971), samba-rock que abre o disco com homenagem a Rita Lee (“Sujeita, você é um barato / Terrivelmente feminina / Com você, eu faço um trato / Um trato de comunhão de bem”), com quem Ben convivia nos estúdios paulistanos em que gravou o álbum, muitas vezes voltando para casa de carona no carro da cantora. Com capa que expõe Jorge Ben em foto de Wilney, enquadrada na arte de Aldo Luiz, o álbum Negro é lindo foi produzido em estúdio sob direção do compositor e violonista Paulinho Tapajós (1945 – 2013), hábil ao organizar e harmonizar os elementos de disco composto e gravado com fidelidade ao universo de Jorge Ben. Como o título já explicita, Negro é lindo é disco político, mas Jorge faz política com a sintaxe peculiar de cancioneiro pautado mais pelo ritmo do que pela letras, escritas a serviço desse ritmo. Celebrar o baterista do Trio Mocotó João Parahyba em Comanche (Jorge Ben Jor, 1971) e exaltar a beleza negra em Zula (Jorge Ben Jor, 1971) são armas usadas por Ben para entrar na luta e ostentar orgulho negro sem fazer letras explicitamente engajadas. Coerente com a própria ideologia, o compositor celebra musas em Maria Domingas (Jorge Ben Jor, 1971) e Cigana (Jorge Ben Jor, 1971) – outra faixa em que foram destacadas as cordas orquestradas por Arthur Verocai. No fecho do disco, Palomaris (Jorge Ben Jor, 1971) esboça certa sofrência indicada pelo tom melancólico dos versos, mas logo diluída pelo ritmo, motor da obra do artista. Negro é lindo está longe de ser o álbum comercialmente mais bem-sucedido de Jorge Ben Jor. O disco tampouco rendeu um grande sucesso para o repertório do cantor e compositor. Contudo, Negro é lindo conserva frescor musical e, por estar embebido em orgulho negro, faz 50 anos em 2021 com forte conexão com o atual e oportuno movimento que propaga a importância das vidas negras."

 por Mauro Ferreira

#OMelhorDoBrasilÉJorgeBen  

domingo, 17 de janeiro de 2021

Vacina contra Covid 19 chegou ao Brasil

Viva a ciência no Brasil! No dia 17 de janeiro de 2021 a profissional de saúde a enfermeira Monica Calazans , do instituto de infectologia Emílio Ribas, foi a primeira pessoa a ser vacinada contra a Covid 19 no Brasil. Viva a ciência! Há luz no fim do túnel!

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Viajando a Etópia: Terra das Zahabes

 Sou apaixonada pela Etiópia. Por isso inventei que sou descendente de etíopes. Como não sei nada sobre minha ancestralidade, eu invento o que eu quiser. Mas olha que lugar MARAVILHOSO, Todo cheio de "tesouros escondidos", como em Minas, mas mais antigo! Trago dois vídeos para a gente saber um pouquinho sobre :APAIXONANTE





domingo, 10 de janeiro de 2021

Torto Arado: Servidão - Ancestralidade - Mulher

 

À esquerda, a capa de Torto Arado, por Linoca Souza
À direita, a foto de Giovanni Marrozzini em Nouvelle (2010)

Venho dizendo que é muito difícil falar desse livro, mas é impossível não falar. Como sei que nunca vou conseguir escrever sobre como ele merece, então vou tentar  pontuar algumas questões que julgo importantes e , evitando dar spoiler, pelo menos não muito, mas é que tem coisas que acho que preciso comentar. Quis muito que esse livro fosse bom, fosse mágico, fosse arrebatador, mas como quase nunca meu desejo é realizado, comecei a ler sem expectativas. Planejava ler até a virada do ano e se fosse preciso, no começo de janeiro, mas comprei na primeira semana, dia 8 de dezembro, mas só recebi dez dias depois, comecei a ler dia 18  e terminei dia 26: o Livro de dezembro! Presente de Natal!

Durante a leitura já fui sentindo essa dificuldade de falar sobre ele, é tão mágico, não dá para comentar muito, mas é urgente recomendá-lo. Na hora que terminei, no final de um ano apocalíptico como foi 2020, não sabendo o que dizer, disse apenas: Que tiro foi esse?

Como demorou um pouco para chegar (os pedidos ultrapassaram o previsto em dezembro e foram precisas novas edições), eu assisti as resenhas no Youtube, todas eram unânimes : se trata de um livro que nasceu clássico.   Um dos Youtubers disse que tem tantas coisas nesse livro que é impossível comentar. Não foi só eu. Estou tentando escrever sobre faz tempo, mas é tão enorme, que eu acho um pecado profanar. Vou tentar ler a partir de três tópicos que mais me chamaram a atenção  porque se ampliam  e podem meio que sintetizar o romance. Avisando que avisando  estes não são os únicos que julgo  importantes do livro, nem os  únicos que eu gostei, mas são os que mais me tocaram e sobre eles me sinto ligeiramente confortável para comentar: 1 Terra – Escravidão- Servidão;  2 Brincadeiras de Jarê- Encantaria  - Ancestralidade ;3-  Mulheres fortes e unidas;

1 Terra – Escravidão- Servidão
O livro é sobre  uma comunidade rural, a partir da história da família do curador Zeca Chapéu Grande, sua esposa a parteira Salu e seus quatro filhos, que passaram a viver de “morada” na fazenda Água Negra com o fim da escravidão, no interior da Bahia, e foram trabalhar em regime de servidão. Quem narra são as duas irmãs mais velhas, Bibiana e Belonisia (cada uma narra um capítulo). Em tempo, fala-se de pessoas que saíram da escravidão e passaram à servidão, até o surgimento de novos tempos com lutas sociais.

A epígrafe do romance é só TODO o capítulo 28 de Lavoura Arcaica de Raduam Nassar (livro que reli imediatamente  após terminar Torto, ainda em 2020)  

capítulo 28 de Lavoura Arcaica, de Raduam Nassar

Nesta entrevista Itamar conta que o arado torto que aparece no romance é um instrumento de trabalho arcaico, que veio dos antepassados de Belonísia e que "se deformou com o tempo, mas ainda continua rasgando a terra para semear a vida”. Itamar diz  também que a ideia do título foi retirado de um trecho de Marília de Dirceu, de Thomás Antonio Gonzaga, e todo o imaginário do trabalho com a terra na literatura brasileira é pontuado no romance. Foi fácil encontrar na internet:

“A devorante mão da negra Morte

Acaba de roubar o bem que temos;

Até na triste campa não podemos

Zombar do braço da inconstante sorte:

Qual fica no sepulcro,

Que seus avós ergueram, descansado;

Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos

Ferro do torto arado.”  (Marília de Dirceu)

 

Percebe-se de  cara que é uma história de gente que tem a terra como parte de si, do seu corpo , e seu habitat, afinal  como os donos da fazenda não os permitia ter nenhum bem durável,  não tinham casas de alvenaria,e até  vivem em casas feitas de barro (terra). Segundo conta a filha de Zeca Chapéu Grande,  Belonísia, a mais ligada ao pai:

Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer,onde avançar, onde recuar.

Como um médico à procura do coração." p.100

Além de Belonísia, que não se via separada da terra, para todos eles a terra  também era tudo, mas embora nela labutassem dia a dia para dar a terça parte da produção ao seu dono (tipo na idade média mesmo) e ainda agradecendo-lhes pela chance de poder trabalhar naquele chão, a vida que levavam ao cultivar para alimentação própria, sem dinheiro, quase sem autonomia não era justa, como conta Bebiana:

“se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à terra onde plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos da fazenda carregando nossos próprios pertences. Se não pudéssemos trabalhar, seríamos convidados a deixar Água Negra, terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores haviam nascido. Aquele sistema de exploração já estava claro para mim.”p.83

Isso tudo me lembrava o tempo todo a canção Estrela Maga dos ciganos, do Elomar Figueira Melo:

"É tanta coisa pur dever tanto pagar

Sem receber tanto que dar

Chega! Já num guento mais não

 (...)

E inquanto na face da terra havê tiranos,

Vassalos e susseranos

Sinhorio e servidão

Fico lá incima hospedado com os Reis Mago

Nos camim de São Tiago

Num boto os pé nesse chã"


Nada é exposto diretamente pelas narradoras, nenhuma das três, mas a narrativa vai nos fazendo ver, cada vez mais claramente, a realidade daquele povo, juntamente com o momento em que eles mesmos vão se enxergando como são : escravos não são mais, não recebem mais açoite (embora a mãe de Zeca narre lembranças dessa época sofrida na tal fazenda Caxangá ), mas às vezes se dizem índios porque sabem que há lei para protegê-los; sabem que são trabalhadores, mas a qualquer hora os donos podem chegar e tomar-lhes o plantio, sem dó. É uma vida muito “análoga à da escravidão”. Demora um pouco, no tempo e na narrativa, para que os irmão mais jovens das protagonistas e netos de Zeca Chapéu Grande  passem a falar em termos  como “quilombolas”, que poderia inseri-los  sob a proteção legal:

“Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas” p.187

Nada acontece por acaso, mas não posso deixar de tomar como curioso que, ao mesmo tempo em que lia,  fico sabendo da história do resgate de Madalena Gordiano (46 anos), essa mulher tão bonita, que viveu 38 em regime análogo à escravidão na casa de uma família, em Patos de Minas (MG). Escrava em pleno século XXI? Pois é. Como no romance, a historia não  para nela , mas  possivelmente se estende a sua família ,sua  irmã . É muito ter a "nossa saga" brasileira jogada na cara. Como prosseguir?

Do outro lado dessa vida de trabalho braçal  sem fim na roça, temos um dos trechos mais bonitos do livro em minha opinião, quando Bibiana conta  

“Meu pai não era alfabetizado, assinava com o dedo de cortes e calos de colher frutos e espinhos da mata. Escondia as mãos com a tinta escura quando precisava deixar as digitais em algum documento. De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a leitura dos filhos o que perseguia com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram os bens maiores de sua existência.Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho qe sentia dos filhos aprendendo a ler e o valor que davam ao ensino, saberiam que era o bem que mais queria poder nos legar.”P. 66

Emocionou-me muito essa parte porque ele me remeteu, de alguma forma,  ao meu pai, que não era analfabeto, mas estudou menos do que gostaria, só que  gostava dos livros e do saber e, segundo minha mãe conta, quando casou levou duas malas, uma de roupas e outra de livros para nova vida. Já idoso e começando a ter esquecimentos, lia todo dia, o dia todo, uma cópia impressa com erros da minha dissertação  que ficava no quartinho dele. Certamente tinha orgulho de mim, e eu dele tenho muito.

2 Brincadeiras de Jarê- Encantaria  - Ancestralidade

Outra das maiores belezas de Torto Arado é todo seu caráter mágico. Muitas vezes, lendo sobre a infância de Bebiana e Belonísia, pensei que estivesse lendo estórias mágicas das crianças de Guimarães Rosa (minha especialidade), ou mesmo em outras descrições do decorrer do livo, parecia que  estava lendo algum texto de realismo fantástico. Isso porque, junto às personagens, estão sempre seus ancestrais, encantados, santos,espíritos e outras manifestações mágicas, o que é muito bonito e importante.
Zeca Chapéu Grande é um curador de Jaré, pai espiritual de toda a comunidade, que o procurava para curar males do corpo (já que medicina estava distante), mas especialmente da alma. Quando apareciam doentes assim, ficavam alguns dias em sua casa, conta Bebiana

“Não eram hóspedes, visitas ou convidados. Eram pessoas desconectadas de seu eu, desconectadas de parentes e de si. Eram pessoas com encosto ruim, conhecidos e também desconhecidos de todos. (...) O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartadas  do seu próprio eu” P. 33 e 39  

Religião daquele povo, as “brincadeiras de jarê” tratam-se de

“uma religião de matriz africana, mais especificamente um candomblé de caboclo, que existe exclusivamente em cidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina (...)Uma de suas principais particularidades é o grande sincretismo religioso, com influência do catolicismo, da umbanda e do espiritismo kardecista. Pode ser considerado um amálgama das nações bantu e nagô, as quais se uniram o culto aos caboclos.” (Wikipédia)

 Nada mais brasileiro e bonito. Nessas práticas, no romance, quem comanda as festas e as homenagens é o curador Zeca Chapéu Grande, mas ele também recebe a ajuda, incorporado  ou não, de Encantados,que, diferentemente das entidades da umbanda,

não são necessariamente de origem afro-brasileira e não morreram, e sim, se "encantaram", ou seja, desapareceram misteriosamente, tornaram-se invisíveis ou se transformaram em um animal, planta, pedra, ou até mesmo em seres mitológicos e do folclore brasileiro como sereias, botos e curupiras. Na Encantaria, as entidades estão agrupados em famílias e  possuem nome, sobrenome e geralmente sabem contar a sua história de quando viveram na terra antes de se encantarem.” (Wikipédia)

A confiança nessas forças e energias, ao que parece, está sustentada na presença constante dos ancestrais para dar apoio e proteção em todos os momentos da vida. Os encantados e encantadas, que viveram desde antes, sabem de tudo, conheceram os ancestrais mais longínquos, sabiam quais das coisas que acontecem agora são repetições de acontecidos com ancestrais nessa terra. Saber (não apensas acreditar) da sua importância  como guias para  a vida das personagens é o que me parece dar a sentido àquelas vidas tão sofrida que levam.  Eis  o verdadeiro tesouro do povo preto. Muito emocionante.

3-  Mulheres fortes e unidas  

O último tópico, mas não menos importante (muito ao contrário, talvez o mais importante mesmo) seja a união das mulheres nessa saga toda. Além das duas irmãs narradoras, que possuem uma ligação muito íntima, que os acontecimentos da trama só reforçam e que, mesmo quando elas se afastam, nunca morre, também temos as suas  ancestrais e até mesmo as encantadas são a marca feminina desse romance. Na entrevista do autor, citada acima, ele lembra que no cenário rural do sertão da Bahia as mulheres têm protagonismo muito forte na família e na comunidade, porque elas sobrevivem mais tempo, guardam as memórias.

Encerro este texto com outro trecho que muito me tocou:

Amigas, afeto

O afeto que Belonísia ganha, sem querer, de sua amiga Maria Cabocla e nunca vai saber como lhe agradecer. Eu não tenho os cabelos crespos, mas é cacheado e, como cresci numa família branca, de gente de cabelo liso, eu também demorei muito para receber um carinho na cabeça, e foi fora da família, como se aquele meu cabelo diferente não tivesse o direito de receber um carinho, não por maldade, mas porque , inconscientemente, funciona assim. Eu sei como é e só agradeço aos meus orixás e encantados por, ainda que tarde, tenha tido essa oportunidade na vida. E mais de uma vez.

Que livro, gente! Que livro! 

 

 

 


sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

O QUE SALTA AOS OLHOS, by Milton Hatoum



ESSE TEXTO É UMA DAS COISAS COISAS MAIS A MINHA CARA QUE EU JÁ LI. Não só porque foi escrito por Milton Hatoum (adoro, vocês sabem); não só porque, ocasionalmente, sublinha perfil de um mau leitor de Guimarães que não consegue identificar Grande Sertão: Veredas como uma obra prima; nem porque cita meu rosiano favorito Willi Bolle, minha banca e interlocutor para assuntos rosianos na vida, mas porque o faz associando todos esses pontos a uma leitura desse inferno negacionista e bolsonarista que estamos vivendo. Vale muito ler

 

(Publicado originalmente neste link no Caderno 2, Estadão, 8/01/2021)

“Durante o clima insuportável que precedeu as eleições de 2018, meu amigo desdenhou da minha apreensão.

Esse amigo era um liberal entusiasmado com o Estado mínimo. Certo, mas a implantação autoritária desse Estado-formiga pode resultar em estado de sítio e guerra fratricida. Ia dizer a ele que o Estado-elefante é nocivo, e que o tamanho do Estado deve adequar-se à construção da plena cidadania numa sociedade verdadeiramente democrática. Mas não falei nada: sabia que a ingenuidade dele ia de par com a aversão a qualquer política pública de inclusão social.

Mas era ingenuidade ou ideologia extremista? Ele falava em mérito, em esforço individual, e citava cinco ou sete homens e mulheres que, vindos do deserto da vida, tinham construído uma floresta de fortunas. Esses poucos exemplos o confortavam; 80 milhões de pobres e miseráveis não o inquietavam. E ele mesmo não era exemplo de nada. Levava uma vida de Brás Cubas do século 21: um parasita esnobe e herdeiro improdutivo. Usava sua erudição com uma soberba que, talvez à revelia dele, rebaixava os outros. Gostava de recitar “par cœur” e em francês passagens dos “Ensaios” de Montaigne. Admito que nem mesmo sua pronúncia pedante – promessa do mais ridículo – matava a beleza dos “Ensaios”. Mas às vezes ele era possuído por uma ignorância desavergonhada. Certa vez disse, sem hesitar, que não havia personagens complexas no “Grande sertão: veredas”.

Não quis confrontá-lo. Melhor divertir-se com equívocos aberrantes. E, convenhamos, não se rompe uma amizade por causa de um livro, nem mesmo de uma obra-prima.

Usei os verbos no imperfeito porque só agora meu amigo mudou. O péssimo, o desastrado leitor de Guimarães Rosa está angustiado com a perda de um parente, vitimado pela Covid-19. E arrependeu-se de ter votado num sujeito despreparado, mentiroso e manipulador até o vil populismo, atributos comuns de não poucos políticos. Em todo caso, não há lugar no palácio para os escrupulosos demais. Mas só agora ele assentiu que o palácio foi ocupado por um homem de caráter infame, e que durante o trágico 2020, esse presidente, seus filhos – e bajuladores fardados e à paisana – não pararam de bradar “Vida longa à morte!”.

Não sei se o meu amigo é um caso clínico. De algum modo, todos nós somos. Mas dois anos longuíssimos não é muito tempo para perceber que o ex-militar e ex-deputado federal pratica a mesma vilania há três décadas? Quando esse sujeito fala, anuncia uma mentira criminosa; quando fica em silêncio, pressente-se um malefício.

Minha aversão a polêmicas é tão profunda que ignorei as palavras do meu amigo, mescla de confissão e desabafo. Por que um homem de 58 anos, diplomado por uma famosa universidade estrangeira, não adquirira um naco de discernimento político? Às vezes um diploma é apenas o belo papel timbrado da vaidade.

Ouvi por telefone as palavras do enlutado, que só agora despertou para a infâmia. E despertou com uma severa autocrítica, que me surpreendeu: “Eu não era um verdadeiro liberal, e este governo não tem nada de liberal”.

Não usou essas palavras, e sim uma explosão de injúrias, que escutei com deleite. Depois lhe disse que a autocrítica era uma virtude, e até mencionei, com ironia, nosso amado Montaigne: “Também nos corrigimos tolamente com frequência, assim como corrigimos os outros”.

Desliguei o telefone, abri o livro “Romance de formação” e terminei de ler um ótimo ensaio de Willi Bolle sobre “Berlin Alexanderplatz”. O professor Bolle cita trechos do discurso “Sobre a burrice”, proferido em Viena por Robert Musil, em março de 1937. Um desses trechos é:

“O homem público atuante, desde que está com o poder, diz […] que foi escolhido por Deus e destinado a atuar na História. Isso se mostra sobretudo quando certa camada inferior da classe média – em termos intelectuais e morais – se manifesta protegida por um partido, uma nação ou uma seita e se sente autorizada a dizer ‘nós’ em vez de ‘eu’”.

Era uma alusão ao partido de Hitler, que, em março de 1938, anexou a Áustria ao Reich alemão. Claro, não se deve comparar o nazismo com a destruição que está em curso no Brasil. Mas essas e outras frases de Musil, ditas numa época tenebrosa, talvez nos ajudem a refletir sobre o tempo presente:

“A burrice ocasional de um indivíduo pode facilmente se transformar numa burrice constitucional de todos […] Os exemplos para essa situação saltam aos olhos”.

E como saltam, meu amigo!”

* * *

Milton Hatoum é autor dos romances Dois irmãos, Cinzas do Norte e A noite da espera, entre outros.

 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

METAS 2021

 


 

2020 acabou e  só isso já é motivo para tentar escrever metas para esse período pós 2020. Como já é tradição neste blog, as metas do ano são traçadas nos primeiros dias do ano. Como resumiu Sakamoto no final de dezembro:


 
  Verdade, né? Mas em  um ano regido por  Oxum como 2021, tenho fé que teremos mais gentileza e doçura, por isso isso não vou tomar isso como meta.  Sobre as metas mesmo, vamos considerar apenas 5 desta vez:

 1 - CONTINUAR VIVA: Essa é a meta de todos os anos, mas no meio de um pandemia que está conosco há cerca de um ano,  ela é A GRANDE META DE TODOS. No meu caso, é preciso recuperar dia a dia a  alegria de viver, porque, eventualmente, surge o questionamento, sem resposta, sobre  de qual a importância de continuar viva. Mas depois de sobreviver a 2020, espero que me questione bem menos que isso.

2 - ACHAR UM MOZÃO : Meta que aparece todos os anos, nunca é cumprida, então  estou mesmo quase achando que não é para mim esse presente. Mas exatamente por isso que já penso que estou na vida para procurar isso, mas sinto que estou um tanto longe de alcançar. Como começamos o ano em quarentena, não dá muito para pensar em metas, mas talvez manter as esperanças de que isso melhore, pois é uma das poucas coisas que eu ainda posso fazer e vou. Vai saber se Oxum muda tudo e me manda um mozão , porque eu também mereço, né?

 3- TRABALHAR MAIS: Faz tempo que tem essa meta nos anos, mas em 2020, quando  tantos perderam emprego, empresas faliram e muita coisa, não posso nem falar muito. De qualquer  forma vou falar como estou: desde 2017 terminei o pós-doc  e não achei lugar no mundo profissional, fui cuidar da saúde da minha mãe, ia ser coisa rápida, mas ainda está se estendendo até agora (ela não consegue concluir o tratamento porque não podemos frequentar o hospital por causa da pandemia). Mas o importante é que ela está bem, que bom! Só que depois de tanto tempo me anulando, passei a sentir tão fortemente  que meu tempo profissional estava passando, até passou, foi tenso e então entramos em quarentena,  e tudo estava sendo cancelado, adiado, tudo ia mal. Só que eu fui surpreendida para o bem: fui lembrada como não era fazia tempo e tive oportunidades! Que isso continue acontecendo e melhore. Que 2021 seja um ano de trabalho e o começo da minha tão sonhada autonomia.

4- TREINAR O MÁXIMO POSSÍVEL: Espero que eu consiga me vacinar o quanto antes e volte a poder frequentar a academia, pois depois de um ano  sem, estou fraca e gorda! Eu mantenho as caminhadas e  essa é minha única saída atualmente,  é o melhor momento do dia (o que eu saio de casa e me exponho ao sol), mas  elas já não estão segurando o tranco, não aguentam por tanto tempo. Mas a vacina vai me ajudar a voltar aos poucos como eu estava em 2019. Oxalá, pois continuo querendo cuidar de mim, porque eu mereço, até mesmo para manter a EM bem quietinha na gaveta do criado mudo, como se manteve durante todo  2020.

5- BUSCAR OS SENTIDOS DA VIDA : Essa meta era um plus ano passado, mas em 2020 ela virou uma das coisas que eu mais fiz pois, com a quarentena de 2020,  uma  luz muito  intensa sobre tudo mostrou coisas que eu mantinha ocultas para manter minha sobrevivência emocional, podia achar que essa meta estava concluída para a vida, mas não está.  Meu caminho em direção a ancestralidade continua  aberto e  meta é continuar a trilha-lo em 2021 .  

Venha 2021,  e espero (acredito ) que será melhor que 2020, vamos ver como será!