Quando acabei de ler: sem oxigênio! |
Contando a história de dois irmãos gaúchos, o narrador Federico - que é um negro claro e militante da causa racial, e o seu irmão retinto Lourenço, embora não militante, está mais sujeito ao racismo brasileiro. Filhos de uma família composta por um pai negro e mãe branca, não são gêmeos, Lourenço é o caçula e é ainda mais retinto que o pai, é o marrom; enquanto que Federico é o amarelo, irmão mais velho e mais claro, o grande protetor de seu maninho.
Logo nas primeiras palavras fui arrebatada pelo ritmo do livro: se trata de uma narrativa (oral) brutal e dela ecoa uma fusão de palavras ansiosas e até cansada sobre aquela vida pontuada pela questão racial desde o início. A escrita dialógica não é novidade para mim que estudei Guimarães Rosa e Saramago (quando comecei ler, o modo de escrita me remeteu mais ao Saramago, mas uma versão pós moderna dele, talvez), de qualquer forma, poesia pura. Ponto para Scott. Como tinha visto alguns vídeos resenhas eu já sabia que o texto seria sobre dois irmãos negros, um claro e um retinto, e que seria duro e cheio de cólera, mas não imaginava que fosse expressa como é: o conflito não é dos irmãos entre si, mas deles diante dessa sociedade racista em que vivemos. Comecei lendo/ouvindo Federico e escolhi logo uma canção como trilha sonora, como eu gosto: pensei logo em Herói do Caetano música complexa sobre a questão racial no Brasil. Não porque fiz qualquer relação direta entre o conteúdo dos discursos (estava apenas começando, não sabia mesmo qual era a do Federico), mas mais pelo tom da fala, que mesmo cheia de rispidez, não me chegou como um RAP dos Racionais MC’s (embora Federico use uma camisa deles), mas porque achei o ritmo ali outro. Depois, no decorrer da leitura, percebi que as reflexões auto contrastantes do eu lírico de “herói” ,durante toda a canção de Caetano, tratam do mesmo problema proposto pela narrativa de Federico e algumas vezes elas se acolhem ou se contestam, sem nunca chegar a nenhuma conclusão definitiva.
Belas capas |
Além de uma vivência pessoal e da preocupação com a causa racial de Scott como brasileiro, esse livro é fruto de uma pesquisa de anos (acho que cinco) e de uma escrita prolongada (acho que de seis anos) e o resultado foi que narrador protagonista Federico, um mestiço
“educado sob a ideia de ser duma família negra, ideia que virou minha identidade, moldado num fenótipo brutalmente destoante daquela identidade, dois fatores que, combinados, me expulsaram para sempre das generalizações do jogo esse é preto esse é branco, me dando um imenso NÃO LUGAR PARA GERENCIAR” (p.15), tanto que cheguei a pensar que me demorava na sua leitura ,horizontalmente enxuta (apenas 155 páginas), porque achei que as letras são ligeiramente menores do que o normal, o que me chamou a atenção porque leio a noite, antes de dormir e tal, cheguei até a reclamar da Editora Alfaguara, responsável por essa edição lindíssima, mas na verdade as letras nem são tão menores quanto comentei, era a densidade da narrativa (leitura vertical) mesmo que impedia que eu devorasse a obra rapidamente. Como disse Scott na entrevista para o canal LiteraTamy, “é um livro de poucos respiros”. Nesse sentido, ao contrário de outros autores que também dizem ter inspiração direta na obra de Graciliano Ramos, foi só na leitura desse livro que eu tive a sensação de asfixia que me dava ao ler Vidas Secas, por exemplo.Se eu tivesse que escolher uma palavra para definir aquela escrita eu pediria mais uma e escolheria ÓDIO e ANGUSTIA.
Para variar, não sei como falar desse livro. Reparem que até agora, nesse texto, já tentei fugir para Caetano, para o LiteraTamy e até para a Angústia do Graciliano Ramos: Não sei lidar com esse livro, porque também não sei lidar com o jeito que ele foi escrito, porque não lido bem com o tema que ele aborda na vida, essa é que é a verdade.
Vou tentar um jeito mais tradicional, a partir do narrador protagonista Federico, um mestiço, que não tem lugar para gerenciar seu não lugar. Me vi muito nessa angustia, durante a leitura, tive que desabafar
A história que “Derico” narra começa a ser contada em 2016, quando ele, militante das causas raciais, passa a integrar uma comissão instaurada pelo recém empossado governo federal em Brasília, para discutir o preenchimento das cotas raciais na universidade, a partir da articulação de um software que pudesse distinguir exatamente quem é negro, quem é branco, quem é indígena e acabar com as fraudes. Sim, justo ele, que vivia nesse não lugar de não ser nem branco nem preto, inclusive em família. Será mesmo que o problema do “colorismo” poderia ser resolvido por um soft, ou por um app? Ou este serviria apenas para enfraquecer a grande conquista das cotas raciais (o que estaria de pleno acordo com o ideal do “novo governo”? )
No texto apenas o ano e o contexto do “novo governo no Brasil” é citado, daí sabermos que ele está falando do governo Temer, que a partir de um golpe de direita, começou a instaurar um posicionamento retrógrado em várias áreas, inclusive a racial e que abriu caminho para que se instalasse na precedência um governo de extrema direita, sob o qual vivemos hoje.
Nas discussões burocráticas da comissão vamos ouvindo diversos posicionamentos e a impressão é a de que não se vai se chegar a lugar algum.
Ao mesmo tempo, Federico é chamado para voltar a Porto Alegre, sua terra Natal, por conta de uma complicação que seu irmão Lourenço está passando, e esse problema o faz ter que revisitar momentos do passado naquela cidade, que o faz pensar se quando deixou Poa para estabelecer sua ONG sobre temas raciais, talvez, ele não estivesse numa fuga contra aquele passado. Scott alerta que aqueles acontecimentos ocorridos há anos, são narrados no presente, porque tratam de um fluxo que não se interrompe na cabeça do protagonista. Quem já presenciou ou viveu algum acontecimento relacionado ao racismo sabe do que se está falando, aquilo nunca passa. Eu sempre digo que é um assassinato, pois cada vez que acontece, cada vez que a gente presencia (no caso do Federico), um pedaço de nós morre um pouco.
Sobre Lourenço,o retinto, sabemos poucas coisas, apenas que
parece ter tido vida, escolaridade e amigos diferentes do irmão e tem com eles
uma relação de companheirismo que Derico sabe, mas não compartilha ou
compreende. São mundos diferentes, na mesma família, no mesmo bairro. Um dos
poucos momentos em que os irmãos conversam, o marrom diz algo muito interessante :
“tu deve ter herdado algum
tipo de dor dos nossos antepassados escravizados, uma dor que eu não herdei
(...) minha visão da vida é outra, minhas armas são outras, eu tiro onda com a
cara dos racistas que cruzam o meu caminho” (p.144)
E Federico diz que nunca teve essa capacidade...
Eu
também nunca tive, mesmo que nem sempre tivesse voz para responder na hora ( é
assassinato, lembra?), mas onda nunca tirei.
Acho que posso parar o comentário por aqui, estou emocionalmente cansada por falar desse assunto, ainda mais nos termos em que ele aparece nesse livro, mas deixo com vocês as palavras do Paulo Scott, vejam se ele também não tem o mesmo incômodo de Frederico, o meu incômodo,o incomodo que todo brasileiro deveria ter com o racismo.
Ia
acabar esse post aqui, mas acho que é preciso dizer que ele não é um livro só
sobre o problema racial no Brasil, ele tem "poucos respiros", mas tem algum e em meio a tudo isso, se fala muito de uma
certa educação sentimental "torta" de Frederico que, bem ou mal, namora muito
como era na “nossa” época, lembra de quando “gravava fitas K7” para a namorada
no passado, agora, já os 49 anos, ainda troca afagos em forma de mensagens com
a paquera de 39 anos que está em outra cidade, tipo “pensou em mim ontem a noite?” Por que é que
a gente é assim?
No Instagram do Paulo Scott alguém publicou uma foto de alguém segurando o livro. Lembrei que tinha uma parecida, mas com esmalte rosa. Os dedos de vir marrom segundo este baita romance é uma imagem significativa
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