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sábado, 29 de maio de 2021

Literatura salva: Um trecho de "O avesso da pele", de Jeferson Tenório

 Para Fernanda Duarte e Fábio Flora


Terminei de ler O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, um livro impactante, com tantas belezas e dores que ainda  não tenho tempo ou condições para falar dele,  aguardem. Então separei um trecho que acho sublime. Para que fique inteligível, aviso que o livro trata de uma família de negros que mora em Porto Alegre, uma cidade assumidamente racista, e todos os problemas que isso pode significar. A trama começa quando, após a morte de seu pai, o narrador Pedro, tal como o príncipe Hamlet, começa a contar (e às vezes inventar mesmo) a vida de seus pais, para o espectro do pai morto, na intenção de ultrapassar o luto.  Neste trecho Pedro conta uma das tantas abordagens policiais ao seu pai:

Um dia você ouviu o professor Oliveira falar sobre um livro, sobre um certo personagem russo, Raskólnikov. E foi como uma iluminação ouvir o professor lendo aquelas páginas de Crime e Castigo. Você não sabia que aquele seria um livro que te acompanharia até o fim da sua vida. Embora não entendesse metade das coisas que eram ditas ali, quando você resolveu ler aquela história, você queria descobrir mais sobre aquele estudante miserável que morava num minúsculo apartamento em São Petersburgo. Queria saber mais como aquela mente criminosa funcionava. Aquela arqueologia da culpa te fascinava e por isso você andava com aquele livro-tijolo para cima e para baixo. Ficava feliz quando pegava algum engarrafamento e podia ficar lendo mais um pouco no ônibus, ou então quando não tinha muita coisa para fazer no escritório e colocava o livro estrategicamente na gaveta para poder ler sempre que o Bruno Fragoso (chefe) não estivesse por perto. E, mesmo quando o ônibus estava lotado, você dava um jeito de segurar e continuar lendo. Às vezes alguém se compadecia de você e oferecia para segurar sua mochila de modo que você pudesse ter mais equilíbrio. Às vezes também, quando  você ficava até mais tarde no escritório, voltava nos ônibus mais vazios e podia ir sentado. Foi num desses dias em que você estava na parte de trás do ônibus mergulhado em Raskólnikov que, sem que você percebesse, surgiu um policial bem na sua frente. Na verdade, eram três ou quatro. Eles mandaram todos descerem. Era uma blitz. Mas você custou a entender, porque sua cabeça estava lá em São Petersburgo. O policial pediu com mais ênfase que você descesse do ônibus. Você obedeceu, estava cansado, estava com preguiça, mas tudo o que você queria era terminar Crime e Castigo. Um rapaz, branco, sentado ao seu lado, também fez menção de levantar para descer do ônibus, mas o policial disse que ele não precisava descer. Você desceu e foi para a parede ainda segurando o livro. Ao olhar para o lado, percebeu que havia mais cinco homens negros na parede sendo revistados e questionados sobre para onde estavam indo, o que faziam da vida. O policial que te abordou pegou seu livro e, depois de te revistar, perguntou que livro era aquele. Você disse que era um livro de literatura. Ele folheou o livro, perguntou se era poesia. Você até pensou em dizer que era um romance, mas não queria parecer arrogante nem dar uma de sabichão com o policial armado atrás de você, então disse que era um livro sobre o arrependimento. O policial pareceu ter gostado. E disse que costumava ir à igreja rezar. É bom os jovens lerem poesias e a Bíblia também. Você já leu a Bíblia?, ele perguntou. Você disse que sim e acrescentou que o personagem do livro virava um católico. O policial ficou feliz. Te pediu desculpas pelo incômodo, mas é que era o trabalho dele, porque Porto Alegre está cheio de vagabundo, ele disse. Você e os outros homens subiram no ônibus. O rapaz que não precisou descer, ao ver você chegar, trocou de lugar e foi sentar mais à frente. O ônibus partiu e você voltou para São Petersburgo.

 “O avesso da pele”, Jeferson Terório, p.147-9.


Esta é a primeira  das tantas vezes que, no livro,   o clássico russo aparece associado ao racismo da policia e, para mim, ela é elucidativa para "explicar" que também  diante da covardia e crueldade do racismo, a literatura pode ser sua arma salvadora. Acredito muito nisso e fico feliz em conhecer um autor como Tenório reverberando esta ideia!