sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

“Afro é todo o Brasil e está dentro da gente”: Os Afro sambas de Baden Powell (1990)


 “Afro é todo o Brasil e está dentro da gente”: Os Afro sambas de Baden Powell (1990)
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 16.10.2018)

Conforme havíamos lembrado no final do texto sobre os Afro-Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, de 1966, em 1990,  dez anos depois da morte de Vinicius em 1980, Baden Powell regravou as oito faixas do álbum original e acrescentando mais três músicas ainda inéditas, inaugurando uma outra fase na história do disco. Inicialmente a ideia da nova gravação surgiu do convite de um banco a Baden Powell, pois  gostaria de presentear seus clientes com uma peça original e então gravada com toda sorte de tecnologia já disponível, coisa que falta na primeira gravação do álbum tido como dos mais importantes da história da música brasileira. Dois anos depois o disco foi lançado na França e posteriormente no Brasil pela gravadora Bicoito Fino.  Nesta continuação do legado dos Afro-sambas, além do violonista Baden Powell participando como compositor, arranjador, diretor musical e vocalista, o disco também contou com os vocais do Quarteto em Cy,  um time de músicos reconhecidos como Ernesto Gonçalves no contrabaixo;Paulo Guimães na flauta; Sutinho na bateria, tamborim e agogô; Flávio Neves no afoxé; Alfredo Bessa no ganzá, cuíca atabaque, tamborim  e berimbau; Flavio Neves no atabaque, no banzá, no surdo  no berimbau.

O disco contém onze faixas, dez de autoria dividida entre Baden e Vinicius e uma canção que abre o trabalho, Abertura, apenas composta pelo violonista. Além das oito músicas já gravadas na primeira versão, agora dispostas em ordem diferente, a obra conta com as canções inéditas, a terceira faixa, Labareda, e Variações sobre Berimbau. Como já destacamos a herança afro do primeiro disco, aqui comentaremos brevemente uma ou outra alteração percebida na comparação entre as gravações originais e as novas, mas nos debruçaremos  sobre esta tríade de faixas inéditas, comentando mais detalhadamente suas ligações com o legado cultural afro.

As  regravações do primeiro álbum começam a partir da segunda faixa, com a canção sobre a peleja dos orixás contra a divindade das folhas no  Canto de Ossanha ,  na qual as cordas dos violão de Baden brilham na contestação “do homem que cai no canto de Ossanha traidor”, com o vocal de fundo do Quarteto em Cy. Na quarta faixa retomamos ao tema de Tristeza e Solidão de forma bastante melancólica e na quinta faixa, Canto de Pedra Preta, assim como na versão original, a entidade volta a ser louvada com uma marcação percussiva forte, remetendo ao Samba de Roda. Na sexta faixa retoma-se o sofrido  Canto de Xangô, com uma percussão bem marcada, mas unida ao som delicado das flautas  que combinam com o vocal do quarteto de vozes femininas que clamam ao orixá para, enfim, morrer de amar. Nas faixas seis e sete, Bocochê e Canto de Iemanjá, ouvimos com uma maior qualidade de gravação, os dois belos afro-sambas amplamente conhecidos. Na penúltima faixa do disco, Tempo de amor, destaca-se o ritmo mais acelerado da disputa entre o violão de Baden e a percussão fortemente marcada, que vem sempre pontuada pelo canto das Cys, no belo louvor contra o amor em paz. Mas a regravação que mais impressiona é mesmo a da última canção, o Lamento de Exu, que na versão original era uma peça instrumental, caracterizada como um lamento vocal, agora já  ressalta fortemente a percussão atuando junto ao violão de Baden, e mesmo continuando sem letra, a canção é pontuada com chamamento ao orixá iorubano Exu em suas diversas manifestações como Tiriri, Marabô, Lalu, e na sequencia o violão dá lugar a percussão, como se a divindade convocada já estivesse presente, ouvem-se palmas de louvor ao orixá mais conhecido e considerado como mais próximo do ser humano.

Sobre as três canções inéditas do álbum, a canção instrumental, Abertura, é o que poderíamos chamar de uma síntese sonora dos Afro-sambas, aquele samba mais nego sobre o qual falamos no texto sobre o primeiro disco, e não sendo nenhuma das cantigas conhecidas como Afro-Sambas, nos traz um um ambiente sonoro, legitimando os Afro como um estilo musical próprio. Nesse álbum tudo é muito melhor trabalhado, expondo aos nossos ouvidos a presença de outros instrumentos antes ocultados pelo protagonismo do sensacional violão de Baden. Na segunda música inédita, a terceira faixa Larareda, novamente um samba de roda tão utilizado em rituais religiosos afro-brasileiros,  surge uma figura feminina, remetendo a  entidade Pomba-Gira do mesmo nome que a canção e que, no afro samba,  é caracterizada assim:

Labareda
O teu nome é mulher
Quem te quer
Quer perder o coração
Rosa ardente
Bailarina da ilusão
Mata a gente
Mata de paixão

reforçando a educação sentimental de Vinicius de Moraes, na qual viver é amar e amar é sofrer. Como nos lembra o artigo de Ricardo de Paula, se nos terreiros, entre outras coisas, a figura da Pomba-Gira é a responsável por fornecer aconselhamentos de toda a ordem, mas especialmente nos assuntos afetivos, a presença desta canção no disco experimenta novamente a exposição do tema a partir do imaginário afro-religioso.

Na nona faixa do álbum, a inédita Variações sobre Berimbau, vamos encontrar uma ligação mais direta com a história do primeiro disco, quando nos deparamos com o resultado musical da influência sofrida por Baden Powell, depois de ouvir pela primeira vez na Bahia ainda na década de 1960, o som do instrumento de percussão chamado berimbau. Conforme nos conta o músico e pesquisador musical Carlos Sandroni,

O beribaum se tornou a principal referencia musical da capoeira, embora também fosse ‘usado pelos afro-brasileiros em suas festas e sobretudo no samba de roda, como até hoje ainda se vê, se bem que muito raro e como não deixa de alertar o historiador Mauricio de Barros Castro, em sua tese Rosa do mundo: Mestre João Grande: entre a Bahia e Nova York, o berimbau fazia parte da cultura baiana, tendo sido apropriado pela vadiação não apenas para cantar e tocar, mas também para avisar a chegada da polícia desde a época em que jogar capoeira era proibido, o que sublinha a importância desse som para a história do negro brasileiro. Ainda que já na década de 1950 o compositor baiano Oscar da Pena, O Batatinha, tivesse utilizado o repertório da capoeira em suas composições, foi mesmo com as canções de Baden e Vinicius da década seguinte que o tema ganhou notabilidade. Segundo depoimento do etnólogo baiano Waldeloir Rego sobre nosso compositor, em seu Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico :

Aproveitando sua estada na Bahia, tive a oportunidade de conhecê-lo e trocar ideias sobre a música popular brasileira no presente. Baden não perdeu um só instante,às voltas com o capoeirista Canjiquinha (Washington Bruno da Silva), de quem recolheu muitos toques de berimbau e suas respectivas cantigas .

Algumas dessas cantigas são entoadas por Baden na faixa nove do disco, como:

menino quem foi teu mestre?
Meu mestre foi Salomão
A ele eu devo dinheiro, saber e obrigação
Quando  o segredo de São Cosme quem sabe é São Damião
Ê ê Camará
Paranauê, paranauê Camará

ou assumindo a alusão ao mundo da capoeira: “Capoeira é pra valer/Joga bonito que eu quero aprender”.    Segundo a tese de Mauricio B. Castro citada acima,  embora pouco se fale disso, em meados do século XX a capoeira, “não apenas sua temática, mas também sua musicalidade e linguagem” foram absorvidas por uma geração de  compositores brasileiros. Musicalmente esta influência estava sintetizada no som do berimbau, que além da capoeira, também fazia referência  e nesse contexto que ela contribui na composição nos Afro-sambas pois,segundo Castro,em 1963, um ano antes do golpe militar, Baden Powell e Vinicius de Morais lançaram a primeira música de uma série de Afro-sambas,como ficariam conhecidas as canções da dupla que remetiam à cultura afro-brasileira. A música se chamava Berimbau, instrumento de capoeirista que Baden imitava ao violão.

Sobre os afro-sambas, é preciso lembrar um acontecimento posterior a sua última gravação , já perto de sua morte em 2000 Baden se converte ao  culto evangélico, este que costuma considerar como errados posicionamentos diferentes ao seu, e passa a repreendê-los  duramente,  o que o levou nosso compositor  a renegar alguns afro-sambas, como podemos ler em entrevista dada em 1999, na qual afirma que:

Afro é todo o Brasil. Está dentro da gente. Eu e Vinicius gostávamos.(…)  Os caras pensam que fizemos música para macumba, candomblé. Não tem nada disso, não. É coisa de cultura.(…) Sou evangélico. Minha religião é Cristo. A briga dos evangélicos é com o Candomblé mesmo, não com a música. Você pode tocar o que quiser.(…) Não posso louvar, mas posso falar sobre o caso e tudo. Está entendido? “Berimbau” e “Consolação” são afro-sambas, posso fazer. “Canto de Iemanjá”, não, estaria contribuindo para uma coisa errada. A música, se existe, ela existe, não tem problema. Posso tocar no violão, mas não é o caso. Não é proibido, interditado, nada disso. Posso até falar muito bem, mas não louvo.

Independente do posicionamento evangélico extremista de Baden, sobrevoamos os afro-sambas em busca de marcas da herança africana naquelas composições, as encontramos bem fortes, tanto no registro da década de 1960 quanto no da década de 1990, lembrando que, ainda tenhamos esporádicas tentativas anteriores, de fato foi com esse álbum que se deu a popularização do uso dos elementos da cultura e religião afro na canção brasileira, e até hoje, ao ouvi-lo, os negros brasileiros saúdam uma identificação ali presente, como podemos observar nesse interessante comentário de Izaías de Oliveira no vídeo do disco de Baden no Youtube :

“Toda vez que escuto este disco tenho a certeza que DEUS me fez negro por um motivo ser melhor! (sem ofensa racista), Toda melodia deste maravilhoso disco foi baseado na cultura, etnia e religião africana. Baden Powell usou de toda sua performance de excelente violonista e musico para esta que uma obra de inspiração única!”

Encantados, nos despedimos dos afro-sambas, destacando tantas questões por eles levantadas que foram e ainda não importantes para se pensar a presença da cultura afro na música nacional e, mais uma vez, convidamos os leitores a para compartilhar e comentar estes discos sensacionais, bem como as questões por eles levantadas.

Refências

POWELL, Baden. Os Afro Sambas . Rio de Janeiro (Acesso 29 jul 2018)
BESOURO Anêmico (blog). Os Afro-sambas de Baden Powell (1990). 10 de agosto de 2015.
Os Afro-sambas (1990).

Bibliografia

BARROS, Mariana Leal de. Labareda, teu nome é mulher: análise etnopsicológica do feminino à luz de pombagiras.392 f. Tese (Doutorado em Psicologia)- Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010
CASTRO, Mauricio Barros de. Rosa do mundo: Mestre João Grande: entre a Bahia e Nova Yourk. 2010. 277 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
PAULA, Ricardo de. A figura da pomba-gira. In: Blog Loja Axé.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
REGO, Vandeloir. Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico. Editora Itapuã, 1968
SANCHES, Pedro Alexandre. Evangélico, músico não diz mais “saravá”.In:  Folha de São Paulo, São Paulo 13 de julho de 1999.
SANDRONI, Carlos. ANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. In: Berenice Cavalcanti; Heloísa Starling; José Eisenberg. (Org.). Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. v. 1 Outras conversas sobre os jeitos dacanção. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 23-35.
SILVA, Isabela Martins de Morais. É,não sou : Ensaios sobre os afro-sambas no tempo e no espaço.2013. 290f.Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara.
Versão recente melhora clássico de Baden. Folha de São Paulo. 29 fevereiro, 2008. Disponível em : (Acesso 29 jul 2018).

Um samba mais negro : Os Afro Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1966)



Um samba mais negro : Os Afro Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1966)
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 5 de outubro de 2018)
“Tem sete cores sua cor
Sete dias para a gente amar”
(Canto de Xangô – Baden Powell e Vinicius de Moraes)

Ainda que já tenhamos abordado outros artistas na coluna História Cultural, é neste texto que trataremos daquele que é reconhecido oficialmente na história da canção brasileira como o álbum que introduziu a cultura negra na canção nacional, que é o disco ”Afro-Sambas”, do violonista Baden Powell e do poeta e diplomata  Vinicius de Moraes, primeiro gravado em 1966. Desde o início a ideia dos compositores  era a de gravarem um álbum conceitual, ou seja, que se propusesse a ser mais do que um simples  disco  musical, pois também abordaria, de forma bastante clara, pela sonoridade, o que  Isabela Silva (UNESP) chamou de questões “poético-políticas” importantes : o conteúdo conceitual dos Afro-Sambas versava sobre a  questão racial.

Mesmo que as historinhas sobre o nascimento deste álbum sejam marcadas por uma zona de penumbra, é o próprio Baden Powell quem, na entrevista para o programa Ensaio (TV Cultura), nos conta que seu encontro com Vinicius de Moraes se deu em meados da década de 1950, quando ele trabalhava como músico em uma boate  em Copacabana (RJ) e esta era frequentada por artistas como Vinicius de Moraes e seu então parceiro musical da Bossa Nova Tom Jobim, que estavam compondo para a  trilha sonora da peça teatral  Orfeu da Conceição (1954), escrita por Vinicius, o que faz desta peça um pano de fundo  para a própria ideia dos Afro Sambas.

Nesta peça, Vinicius transpõe a tragédia passional  grega de Orfeu à realidade das favelas cariocas. Segundo o blog Efemérides do éfemello, que apresenta algumas imagens de época, durante a exibição uma declaração de Vinicius era exposta ao público :

            Esta peça é, pois, uma homenagem do seu autor e    empresário, e de cada um dos      elementos que a          montaram, ao negro brasileiro, pelo muito que já     deu ao Brasil mesmo         dentro das condições mais     precárias de existência.– Vinicius de Moraes.”

Embora pouco conhecido atualmente, cabe lembrar que aquele espetáculo marcou a primeira vez que  todo o elenco de uma peça teatral, que era composto em sua totalidade de atores negros, pisava no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, causando reações encantadas mas também polêmicas por conta do racismo.  Vinicius parecia querer enfrentar a controvérsia usando a favor disso toda a visibilidade que seu nome de poeta e compositor lhe garantiam. Em 1959  a peça teatral, que Vinicius demorou doze anos para concluir, inspirou o francês Marcel Camus para escrever o roteiro de seu filme Orfeu Negro, que foi gravado no Brasil, contendo apenas atores negros e que depois ganhou uma série de prêmios como a Palma de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Em 2018, quando a questão da representatividade negra virou assunto capital pelo sucesso do filme de herói da Marvel, Pantera Negra, com seu elenco todo negro,  é interessante resgatar e problematizar a antiga película que conta a história de Orfeu nos morros cariocas .  Dizemos isso porque, ainda que estivesse ciente de que seu olhar para o negro residente no morro era externo, nos conta  Marina Malka, que  o próprio Vinicius, só assistiu ao filme de Camus quando ele estava pronto e o detestou por completo, alegando que o filme mostrava uma imagem estereotipada do brasileiro  como pobre alegre e alienado, o que não se encontraria em sua peça, ou seja, não bastava apresentar os negros, era preciso atentar para a forma como os representava. Trazemos tudo isso para começar a sublinhar o interesse de Vinicius na cultura negra e, consequentemente, em sua musicalidade.

Foi neste contexto que ocorreu a aproximação entre os parceiros musicais Vinicius e Baden, o que o instrumentista  explica  em um depoimento disponível no Youtube:

 (certa vez) nós conversamos sobre a Bahia, que eu também já conhecia e um pouco essa coisa de Candomblé, Vinicius também,  e eu por outro lado tinha mais acesso a isso porque eu era do subúrbio, Vinicius era diplomata e eu sabia dos negócios de Candomblé, essas coisas.

Conta-se que a dupla de músicos ficou internada no apartamento de Vinicius no Rio  por cerca de três meses até terminarem de compor as faixas que seriam gravadas de forma ainda muito rudimentar pelo Selo Forma, de Roberto Quatin resultando em uma sonoridade  cheia de ruídos para nossos ouvidos no seculo XXI.

O disco contém oito faixas em LP e por isso dividido em duas partes, ou lados, com quatro músicas cada um e embora não  possamos  recriar exatamente o impacto daquele álbum para um ouvinte na década de 1960,  na leitura do álbum  feita por Isabela  Silva (UNESP), considerar a  divisão dos dois lados pode nos ajudar a sintetizar e conceber uma opinião geral sobre o disco. Segundo ela o lado A nos apresentaria uma sonoridade muito ligada a referências e musicalidades mais baianas e o lado B mais cariocas.

O disco começa com “Canto de Ossanha”, sua faixa mais famosa, regravada por outros interpretes e bastante conhecida , sua letra  faz referência a lendas do orixá Ossanha,  que segundo a Mitologia dos Orixás, era  invejado por conhecer todos os segredos das folhas e que no samba  aparece como alguém cujo canto se deve temer :

Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha, traidor
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor

Na faixa seguinte, “Canto de Xangô”, ouvimos uma das mais fortes representações de negro na canção popular,aquele  que carrega em si uma rica ancestralidade:

Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou
Eu sou negro de cor
Mas tudo é só amor em mim

Também nesta canção somos introduzidos à ideia que vai sustentar as letras dos Afro-sambas em geral, a de que a vida é amar e  amar é sofrer :

Mas amar é sofrer
Mas amar é morrer de dor

Nas duas últimas canções do primeiro lado do LP entramos diretamente nas referências ao tema marítimo do cancioneiro de Dorival Caymmi, mais especialmente o desenvolvido em seu álbum Canções Praieiras (1954), no qual Caymmi revoluciona a forma de tocar violão pela influência sutil de formas refinadas da musicalidade popular como o jazz, aliada a canções inspiradas nas cantigas de trabalho dos pescadores baianos, que certamente influenciaram muito nosso violonista fluminense. Porém cabe lembrar que, apesar de reconhecido como grande músico popular brasileiro, Baden Powell estudou muito os compositores clássicos e esse tema era um dos que o uniu  a Vinicius de Moraes, conforme ele mesmo conta na sua entrevista para o programa Ensaio. Mas no que se refere ao repertório popular, um diálogo com o imaginário marítimo da Bahia de Caymmi nas Canções Praieiras se faz presente ali. No belo tema “Bocochê”, sofrendo de amor, uma moça busca reencontrar  seu perdido amado, nos braços da morte, no fundo do mar:

Menina bonita, pra onde é “qu’ocê” vai
Menina bonita, pra onde é “qu’ocê” vai
Vou procurar o meu lindo amor
No fundo do mar

Podendo responder diretamente à narrativa de tantas letras do disco Canções Praieiras (1954) de Caymmi, nas quais muitas vezes se narra o desaparecimento  de pescadores no fundo do mar. Na canção dos  Afro-sambas, além da letra, também a melodia nos leva ao fundo do mar quando entoa :

nhem nhem nhem
é a onda que vai
nhem nhem nhem
é a onda que vem,

remetendo ao vai e vem das ondas do mar. Como já estávamos no fundo do mar , a última canção do lado A é o belo  “Canto de Iemanjá”, um lamento de amor e morte:

Se você quiser amar
Se você quiser amor
Vem comigo a Salvador
Para ouvir lemanjá
A cantar, na maré que vai
E na maré que vem
Do fim, mais do fim, do mar/
Bem mais além
Do que o fim do mar
Bem mais além

Mas para além das influências baianas e considerando que todo samba tem em si uma raiz afro, é preciso destacar que o som que Baden estava instituindo ali era um tipo que ele chamou de “afro-brasileiros” e que, em depoimento disponível no Youtube,  assumiu ter sido ele  quem começou  a criar, numa interpretação de fora a respeito da cultura do negro:

fui até eu que dei uma levantada no tipo de samba, porque tem um samba mais escuro, mais negro, que tem raízes mais negras. Tem um tipo de samba que é assim, é um samba lamento, esse samba é que tem as raízes mais próximas ao afro.

E reforçando que estava falando de negros brasileiros, conclui com uma referência a História do Brasil ao afirmar que o afro samba é um lamento especial devido ao estilo do cântico, que vem dos cantos gregorianos, que quem trouxe para o Brasil foi os Jesuítas, quando vieram catequizar os índios aqui. Tudo isso tem uma ligação.

Musicalmente, além de Caymmi, os compositores dos Afro-Sambas também foram diretamente afetados pelo LP  Sambas de Roda e Candomblés da Bahia (196?), que hoje está disponível na íntegra no Youtube, e que na época Vinicius havia ganho de um amigo baiano  e mostrou a Baden, encantando- o com a beleza da sonoridade daquele som tão próximo ao que se ouve em rituais e festas do Candomblé e também da Umbanda.

Como já apontamos, nas faixas do lado B vemos aparecer mais referências  ligadas ao cenário afro-brasileiro do Rio de Janeiro. Na primeira faixa temos uma das mais sofridas canções do álbum, “Tempo de amor”, onde ressurge a ideia de que amar é sofrer, que perpassa todo o álbum, e aqui ressurge com toda força:

Ah, bem melhor seria
Poder viver em paz
Sem ter que sofrer
Sem ter que chorar
Sem ter que querer
Sem ter que se dar
Mas tem que sofrer
Mas tem que chorar
Mas tem que querer
Pra poder amar
Ah, mundo enganador
Paz não quer mais dizer amor

Para o professor de literatura José Miguel Wisnik (USP), na década de 1960 o então poeta de livro Vinicius de Moraes devassou a fronteira entre a poesia escrita e a cantada, gerando gerações de poetas letrista.  Nós lembramos que este compositor também inaugurou uma espécie de educação sentimental que aposta na vida como uma experiência de amor e paixão, com suas alegrias e sofrimentos, o que é uma característica das composições populares de Vinicius de Moraes e certamente conversava bastante com o ideário poético de autores como o  poeta chileno Pablo Neruda, que era seu amigo.

A segunda música do lado B, “Canto do Caboclo Pedra Preta” traz à tona uma experiência que teria sido recolhida num terreiro carioca, cujo pai de santo era o polêmico Joãozinho da Goméia, sendo o Pedra Preta a entidade que este incorporava. Segundo a leitura de Isabela Silva (UNESP),

A canção começa com a voz de Vinicius de Moraes cantando solo “Olô Pandeiro”, e então ouvimos o soar dos atabaques, e então “Olô Viola”, quando ouvimos o dedilhar do violão de Baden, numa relação direta entre a evocação do instrumento percussivo e som do atabaque, e do instrumento de cordas, e o violão de Baden,

remetendo a todo um imaginário musical popular brasileiro. Segundo levantamento do IPHAN lembrado por Silva, o samba de roda e também  a viola são muito utilizados nos cultos aos caboclos de todo o Brasil. Na terceira faixa deste lado, “Tristeza e Solidão” canta-se:

Sou da linha de umbanda
Vou  no babalaô
Para pedir pra ela voltar pra mim
Porque assim eu sei que vou morrer de dor,

retomamos à temática do viver é sofrer por amor, mas dessa vez citando a “linha de Umbanda”, que pode ser a própria  religião afro brasileira  ou mesmo o Candomblé nação Angola, que também cultua entidades como os caboclos.

Por último temos o belo e triste “Lamento de Exu”, uma peça instrumental, pontuada por lamentações vocálicas, abrindo os caminhos de saída deste  álbum,  que desde o início procurou desvendar as sete cores contidas na pele negra, o que na década de 1960 era, e ainda é, uma questão política séria a ser abordada.

Porque este disco é tão importante,  lembramos que na década de 1990 Baden Powell regravou a obra, iniciando uma nova fase para o projeto e sobre isso trataremos em um próximo texto. Por hora deixamos o convite para você compartilhar e comentar este post sobre um disco tão sensacional como é este.

Refências

Filme, discos e vídeos

CAYMMI, Dorival. Canções praieiras Odeon, 1954.
Orfeu (Filme) Direção: Marcel Camus. Produção Sacha Gordine. França, Itália e Espanha , 1959.
Bibliografia

MÁXIMO, João. A reinvenção de dois mestres do Afro samba. Rio de Janeiro, O Globo, 07 out, 2016.
NERUDA, Pablo. Cem sonetos de amor. Trad. Carlos Nejar – Porto Alegre (RS) : L & PM, 2007.
OS AFRO-SAMBAS DE BADEN E VINÍCIUS. Revista Piauí, 18 de mar 2015. 
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SÁ, Elvis de. Muito além da representatividade, Pantera Negra é histórico. SILVA, Isabela Martins de Morais. É,não sou : Ensaios sobre os afro-sambas no tempo e no espaço.2013. 290f.Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara.
TORRES, Roberto. Sambas de Roda e Candomblés da Bahia – O disco que inspirou os Afro Sambas em Baden e Vinicius. In Jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, em 06/12/2003.
WISNIK, José Miguel. A Gaia ciência – Literatura e música popular no Brasil. In: MATOS, C. N.; MEDEIROS,F.T e TRAVASSOS, E. (org). Ao Encontro da palavra Cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.


Negritude, música e ancestralidade em Milton Nascimento


3.      Negritude, música e ancestralidade em Milton Nascimento -  
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 16 julho de 2018)

Estamos chegando do fundo da terra,
estamos chegando do ventre da noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar(…)
Estamos chegando do chão da oficina,
estamos chegando do som e das formas,
da arte negada que somos,
viemos criar. (…)
Estamos chegando do chão dos quilombos,
estamos chegando no som dos tambores,
dos Novos Palmares nós somos,
viemos lutar.
A de Ó (estamos Chegando) – Milton Nascimento e  Pedro Casaldáliga
Existem vários caminhos para se abordar o tema da negritude na vasta obra musical de Milton Nascimento (Bituca), uma vez  que estamos falando de um dos artistas negros mais significativos do Brasil, pois mesmo que sua sonoridade seja mundialmente reconhecida pela grandeza de sua voz divinal, que segundo Paulo Thiago de Mello, apresenta um timbre de  
“rara extensão e densidade”, o que lhe permite “restituir a força do canto, do entoar majestoso (…) acrescentando a ela ritmos e linhas melódicas”  
e também  pelo  refinamento harmônico apresentado em suas composições e interpretações, olhando de perto, é possível perceber outras influências recebidas por um ouvido musical treinado a reconhecer nas tradições culturais e danças populares,  um material riquíssimo que é sintetizado e purificado em sua musicalidade. Naquela obra também  encontramos  apontamentos a respeito de uma vivência do que é ser negro no Brasil, juntamente com um  vasto conhecimento da história dos seus ancestrais que vieram nobres e fortes da África e aqui foram escravizados, mas que, ainda assim, foram e são capazes de criar e sustentar a cultura do  nosso país. Mesmo reconhecendo ser um dos muitos caminhos possíveis  a partir dos quais seria possível abordar  o tema da negritude em Bituca, para sintetizar neste breve texto esta forte manifestação expressa na música popular brasileira, escolhemos abordar duas personagens que aparecem naquelas canções: a Maria, Maria e o Pai Grande, que estariam diretamente relacionadas ao reconhecimento de uma ancestralidade africana presente em território brasileiro.

Maria é personagem principal da canção Maria, Maria, composta para a trilha sonora da coreografia de mesmo nome que foi a primeira peça apresentada pelo  grupo de balé  Corpo, de  Belo Horizonte, em 1976, com m´sica assinada por  Bituca, roteiro de Fernando Brant e coreografia do argentino Oscar Araiz,  que  ficou seis anos em cartaz e percorreu catorze países. No espetáculo conta-se a história de vida de uma mulher negra do interior de Minas Gerais, desde a sua infância, que é muito marcada por referências ao passado escravocrata do país, conforme o roteiro de Fernando Brant, que é lido enquanto os bailarinos dançam :

Maria Maria nasceu num leito qualquer de madeira. Infância incomum, pois nem bem ela andava, falava e sentia e já suas mãos ganhavam os primeiros calos do trabalho precoce. Infância de roupa rasgada e remendada, de corpo limpo e sorriso aberto. Infância sem brinquedos, mas cheia de jogos aprendidos com as velhas que lavavam roupa nas margens do Jequitinhonha. Infância que acabou cedo, pois já ao quatorze anos, como era normal na região ela já estava casada.

Sobre o casamento ela se lembraria pouco, “ou não quer muito se lembrar daquele homem estranho a lhe dar balas e doces em troca de cada filho”, que no total foram seis, em seis ano de casamento, até que enviuvou, o que para ela foi um alívio, que a permitiu se definir como “Maria solidária,solitária, operária e brincalhona”e alegre como na música:  “dança Maria Maria, lança seu corpo jovem pelo ar, ela já vem, ela virá, solidária nos ajudar”.

Á respeito da  trajetória de Maria Maria a dissertação de mestrado A negritude através de “Maria Maria” de Milton Nascimento, de Carlos Alberto da Silva nos lembra que, nascida em meio a uma sociedade machista ocidental, Maria recria o destino a ela destinado, que seria permanecer dedicando-se exclusivamente aos afazeres domésticos e aos cuidados dos filhos pacificamente, como se fosse uma negra amarrada e amordaçada ao modo de suas  ancestrais escravizadas,  mas ela quis ser mais, desejou se libertar  dos cativeiros aos quais estaria presa para sempre, por isso,  em uma atitude de rebeldia, sempre enxergava a vida de forma alegre e bondosa.

Já no final da vida, ela se despede  na bela canção de Bituca em parceria com Sérgio Sant’Anna:

Eu sou uma preta velha aqui sentada ao sol, não tenho um nome,nem idade, nem pátria, não vou à qualquer parte, não quero nada (…) eu vou morrer aqui sentada ao sol.

Através da figura de Maria Maria, o espetáculo conseguiu tratar de muitos assuntos de interesse aos afrodescendentes, como o sincretismo religioso, que no roteiro do espetáculo é apresentado em uma  imagem na   faixa Santos Católicos x Candomblé:

Experimentem tirar pela força aquilo que faz um homem. Era crença dos católicos, que os santos africanos deviam ser esmagados. Impossível para os negros esquecer quem veneravam. Iludindo todos os brancos eles apenas mudaram o nome de seus santos. E daí surgiu a mistura preto-branco, afro-europeu, mexido bem brasileiro, farofa de religião.

Embora já disponibilizado na íntegra no Youtube, este espetáculo ficou mesmo conhecido através da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant, que foi gravada e consagrada por Bituca no álbum Clube da Esquina 2 (1978) e então a experiência daquela mulher negra se apresenta como uma verdade para todas as mulheres fortes, que “misturam a dor e e a alegria” , pois  trazem “na pele essa marca” e possuem a estranha mania de ter fé na vida”, e merecem “viver e amar como outra qualquer do planeta”.

Mas se Maria Maria era uma Preta Velha cheia de sabedoria, também no conjunto de canções de Milton Nascimento encontramos sua versão masculina na figura do Pai Grande, que na música de mesmo nome é rememorado pelo filho:

Meu pai Grande,inda me lembro e que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai, hoje vou criar você
(…) De minha saudade sem você cantar de onde eu vim
É bom lembrar todo homem de verdade
Era forte e sem maldade
O dia vai, o dia vem
Todo filho seu seguindo os passos
E um cantinho pra morrer
Pra onde eu vim não vou chorar
Já não quero ir mais embora
Minha gente é essa agora
Se estou aqui, trouxe de lá um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar.

Segundo Carlos Alberto da Silva, nesta canção surge a 
“figura masculina do curandeiro, do contador de estórias, do rememorizador das aventuras e desventuras de um povo sofredor e que, mesmo em meio ao sofrimento, canta, dança, brinca e se diverte”. 
A  memória do Pai Grande aparece aqui como a própria ligação com a África de origem, da qual se deve lembrar, inclusive para poder criar nesta nova terra um lugar de amor e longe de mentiras. Esta canção   já havia sido primeiro gravada no álbum álbum Milton Nascimento (Beco do Mota), de 1969, porém é na versão de 1970, depois de passar por um aperfeiçoamento no arranjo com a ajuda do grupo de músicos do Som imaginário,  que ela refinou-se na  harmonia, tornando-se ainda mais  sofisticada, especialmente em relação ao tratamento da percussão, que  ali já não aparece mais simplesmente como acompanhamento da voz do cantor, mas já atuava autonomamente na canção,tornando-se definitiva.

Aliás, o álbum Milton, de 1970, marca uma transformação visível de Bituca, no sentido de assumir sua identidade negra, o que começa ficando claro através da capa e no encarte do disco, feita pelo designer Kélio Rodrigues, nos quais Milton aparece desenhado como um belo rei negro. No que se refere a sonoridade, segundo nos explica o professor de canção popular brasileira Ivan Vilela (USP), essa nova maneira de lidar com os batuques inaugurada por Bituca naquele  no álbum  trouxe uma nova sonoridade africana para a música brasileira, esta não mais ritmada e malemolente como a expressa pelo samba, mas mais clara e direta.  Vilela nos esclarece,ainda, que isso  seria explicado em trabalhos de história antropológica como Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro, de Roberto Moura, que lembra as diferenças culturais entre os grupos de africanos que vieram viver na Bahia e no Rio de Janeiro, que em geral seriam negros “islamizados, alfabetizados e muito organizados em suas lutas” para preservar ao máximo sua cultura de mesclas e interferências;  e Vilela exclarece que  os que se instalaram em Minas Gerais,  para  
“sobreviverem, mesclaram seus traços à cultura dominante, ao catolicismo. Suas religiões foram amalgamadas a elementos do catolicismo popular para assim preservarem a sua essência. É essa a África que vem com Milton. A África dos congados e moçambiques, catopés e marujadas, caiapós, candombes e vilões.”
 Destacando o aguçado ouvido musical do nosso Bituca.

Em nossa viagem panorâmica sobre a obra de Milton Nascimento, em busca de marcas da negritude ali registradas, nos guiaram dois anciões, uma Preta e um Preto Velho, que cheios de sabedoria, foram nos mostrando cada lugar onde se escondiam marcas de uma tradição africana renovada, na letra e na melodia das canções, comprovando que Bituca  é, sim, um forte representante da negritude na cultura brasileira, porque não apenas retoma experiências culturais  africanas até então não divulgadas,  como também as recria devido a convivência com estímulos sentidos aqui, o lugar onde todos merecemos viver e amar.

Referências Milton Nascimento
                              
CORPO, Grupo. Histórico. Disponível em          http://www.grupocorpo.com.br/companhia/historico     
BORGES, MÁRCIO. Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina.             3ª.ed.São Paulo:          Geração Editorial, 1996.
MELLO, Paulo Thiago de. Clube da esquina: Milton Nascimento e Lô Borges. Rio de        Janeiro:     Cobogó, 2018.(Coleção Livro do disco)
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. 2. ed. rev. Rio de        Janeiro : Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Data de       Publicação1995. ( Biblioteca carioca ; v. 32. Série Publicação científica)
NASCIMENTO,Milton. Pai Grande (1970).
SILVA, Carlos Alberto da. A negritude através de “Maria Maria” de Milton           Nascimento.     2003.120f. Dissertação (Mestrado em Literatura)- Universidade Federal de Santa  Catarina, Florianópolis.
VILELA, Ivan. Nada ficou como antes. Revista USP, São Paulo, n.87, p. 14-27,            setembro/novembro 2010.