Terminados os romances maravilhosos
que li na virada de 2020 para 2021, tinha que decidir o que ler antes do trabalho e engolir minhas
leituras de prazer? Tenho sempre as crônicas de Hatoum para emergências, mas eu
queria escolher um romance. Mas sem muita
expectativa. Queria ler algo diferente, e comentei bastante minha escolha aqui . Sim escolhi a lindíssima Chimamanda Ngozi Adichie
porque ela é mulher e africana, e eu estava me devendo a leitura de uma autora assim .
Ai escolhi o Hibisco
Roxo, nessa edição linda, porque julguei ser o que fosse me contar uma
história (nada de palestrinhas) e quando percebi que tinha acertado, até
comentei animada
“Sim, Chimamanda conta uma história nigeriana,
cheia de palavras Igbo e comidinhas tradicionais (achei a receita de várias no
Google, o ruim é encontrar os ingredientes). Ainda nem cheguei na metade e por
enquanto posso afirmar que é uma história tensa, porque ficamos todo tempo em
posição de defesa, como a narradora Kambili, pois nunca se sabe o que Papa vai
fazer!”
O livro conta a história da família da narradora Kambili, uma
adolescente de quinze anos de família rica e muito católica, formada por seus
pais Eugene e Beatrice e o irmão mais novo Jaja. Vivendo uma vida de luxo, são
muito controlados por Eugene, o Papa, um fundamentalista religioso que rejeita
tudo que não é como ele entende as leis sagradas da Igreja. A sorte de Kambili
e Jaja, que são proibidos de tudo por Papa, é que eles tem a tia Ifeoma, que é uma professora
universitária viúva, critã mas não ortodoxa como o irmão, e uma personagem
iluminada, em cuja casa o “riso sempre ressoava, não importa de que cômodo vinha”
(p.151) e o melhor período do romance é quando Ifeoma leva os sobrinhos para passar uma
temporada em sua casa, muito mais humilde, mas onde pode conviver com os primos
Amaka, Obiora Chima, e a conviver com seus vizinhos e até mesmo com a igreja
que a família frequenta, dirigida pelo curioso padre Amadi, que aos olhos da
narradora, é tão sedutor quando Christopher Plummer em “Pássaros Feridos”. É
claro que ela se apaixona por ele e o primeiro amor é descrito em momentos
lindos como esse:
"Eu sorri. Ele sorriu e indicou que eu
deveria me levantar para receber um abraço. O corpo dele tocando o meu foi tenso
e delicioso. Eu me afastei. (...) Quis estar sozinha com ele. Quis contar a ele
o calor que sentia por ele estar ali, dizer que minha cor preferida era o tom
de argila da pele dele." (p. 233)
Com os primos a
relação é mais complexa, especialmente com Amadi, que tem mais ou menos a mesma
idade que ela e muito mais experiência de vida porque não sofreu censura da família
e pôde sorrir, falar , pensar e ser quem quiser toda a vida;ouve Fela e “outros
músicos culturalmente conscientes”(P. 162).
A história paralela de como Kambili vai tentar fazer Amadi descobrir que ela não é apenas uma riquinha mimada, mas sim alguém muito pressionada a se conter, me pareceu um ser um ponto algo do romance, até porque por causa dele, a trilha sonora da leitura foi Fela, claro
Outra história paralela que faz a leitura valer a pena diz respeito ao Papa Egene, que é a personagem mais complexa do romance, ao mesmo tempo em que é capaz de extremas bondades com a família, a igreja e a comunidade, é também uma figura muito intransigente, se contrariado, especialmente em se tratando de questões religiosas, não pensa duas vezes em lançar mão da violência física, seja contra a esposa, seja contra os filhos, que vivem numa tensão quase insuportável e isso é passado ao leitor, palmas à excelente escritora Chimamanda Ngozi por conseguir nos colocar nesse ambiente terrível. O tempo todo a gente deseja que Kambili, Beatrice ou Jaja reajam, mas na maior parte do livro eles parecem permanecer no estado de eterna adoração a Papa, não importa o que ele venha fazer. Se isso muda ou não eu não conto, só aproveito para destacar a história de Papa e seu próprio pai, o encantador Papa-Nnukwn, que não pode entrar em sua casa e que, vez ou outra, Kambili e Jaja podem visitar por quinze minutos, pois o avô segue regras da tradição tribal, o que leva Papa a considerá-lo um pagão, um ímpio que não deve conviver com seus filhos. Mas na casa da tia Ifeoma ele pode entrar e conviver intimamente com os os filhos de Ifeoma, especialmente com Amaka, de quem é mais próximo, e quando possível, até conviver com os netos que teriam sido afastado dele por causa do "feitiço" que Eugene teria sofrido dos missionários há muitos anos. É um trecho maravilhoso da obra, dá pra pensar muito na questão da manutenção da cultura em contexto colonialista.
Kambili é uma personagem bem simples, não apenas por ser
adolescente, porque Jaja e Amaka também o são, mas possuem mais camadas, ela é bem rasa,mas eu
não fiquei impaciente com ela, não sei se porque tive empatia, ou se porque eu ,leitora, também sofri na pele a tensão da vida que ela leva: a qualquer momento Papa
poderia voltar a agredir alguém e a única coisa que podiam dizer é “Deus seja
louvado” , para tentar evitar algo pior. Muito tenso.
Enfim, gostei bastante de ler esse livro, porque Chimamanda escreve bem e também porque é uma mulher que escreve bem (fala bem
das coisas femininas). Mas me arrisco a dizer que escreve como uma "mulher
africana", tem sensibilidade, mas muita objetividade nas descrições, em
trechos como esse:
"Quando acordei havia uma mancha vermelha
em minha cama, larga como um caderno aberto. (...) Jajá e Mama já estavam
prontos , esperando na sala de estar do segundo andar, quando saí do quarto. As
cólicas dilaceravam minha barriga. Imaginei uma pessoa dentuça mordendo as
paredes do meu estômago e depois soltando,num movimento ritmado."(P.
109-10)
Claro que o desconforto menstrual de Kambili só pode ser
compreendido por Mama e como ele acabou fazendo com que ela não obedecesse
estritamente as ordens de Papa, ela acabou sendo duramente punida com castigos
físicos. Essas sutilezas, em várias formas, são as maneiras que narrativa de
Chimamanda tratem de questões femininas e feministas em África, de forma
fabular, como eu gosto.
Valeu muito ler esta nigeriana! Recomendo.