sábado, 6 de junho de 2020

"Kmêdeus", Cabo Verde, 2020, direção Nuno Miranda



No dia 06 de junho de 2020 foi realizada uma live com os produtores do documentário cabo-verdiano Kmêdeus, 2020. Foi uma experiência ímpar ouvir ao vivo realizadores do cinema africano atual.

O documentário  é sobre um sem-teto lendário da ilha de  São Vicente, em Cabo Verde  chamado Kmêdeus ("Comer Deus"). Como lembrou Morgana Gama, uma das organizadoras da mostra, a figura de Kmêdeus fazia lembrar a do brasileiro Arthur Bispo do Rosário. O documentário centra-se nesta figura que é um mistério para as pessoas daquele lugar, entre um lunático e um artista. Além de entrevistas com cabo verdianos, o filme aborda seu personagem principal a partir da interpretação dele  desenvolvida pelo dançarino de Cabo Verde  António Tavares. Com esta perspectiva, viajamos por sua cidade natal, Mindelo, as músicas e filmes da ilha e a celebração de seu carnaval anual, traçando um retrato cultural de São Vicente.

Além da figura de Kmêdeus, simbolizado pela imagem contraditória  de  estrela de Davi acompanhada por uma cruz, como no  quadro "Kmê Deus" by Tchalé Figueira, que aparece no filme aos 47':


É preciso reforçar que o  filme é belíssimo, mostra imagens deslumbrantes, especialmente as da Ilha de São Vicente. O diretor comentou que seu desafio é sempre o de tentar descobrir como filmar Cabo Verde? Existiria um jeito certo? Isso ele está tentando sempre descobrir, mas nesse filme, ele conseguiu uma bela forma, o que me fez lamentar ter assistido na tela do celular por causa da quarentena, porque ele foi feio para a tela grande do cinema. Inclusive, sobre o cinema de Cabo Verde, nos lembrou  o Pedro Soulé que ele é muito incipiente, quando começaram a filmar, ele praticamente não existia, só se lembravam de realizadores de fora, mas de lá mesmo, não havia nada, o que é lamentável, porque o país possui uma grande beleza e diversidade física e humana que o cinema deveria poder contar e agora estavam contando.    

As belas  performances de Tavares são lindamente filmadas e a gente se sente parte do filme . Em  outro momento Nuno elencou alguns filmes nos quais ele teria se inspirado de alguma forma, entre eles um dos meus favoritos, o  belíssimo documentário Pina, de Win Wenders, que também é  sobre uma dançarina que, inclusive, já dançou com Tavares.


Na discussão, mediada pelo jornalista Saymon Nascimento, tivemos a  participação do personagem/ tema António Tavares, do diretor Nuno Miranda e do produtor Pedro Soulé e foi muito rica, pois Tavares começou reforçando que Cabo Verde estaria na origem da mestiçagem, local do sincretismo, na roda dos tempos, seria um polo mediador entre África/Europa/Américas desde há muito. Já o diretor Nuno explicou que o filme se sustentava entre três eixos principais que cercavam a figura de Kmêdeus em Cabo Verde: a música, o carnaval e o cinema. Ou seja, como lembrou Syamon,  Kmêdeus apareceria no filme como um símbolo que transformaria os traumas históricos em arte.

Eu fiz uma pergunta e Antonio Tavares  :


E ele respondeu : o carnaval para ele, desde criança,  era sempre o laboratório criativo, o lugar de encontrar coisas que o provocam, mesmo que e le não entrasse no carnaval, só assistia aquela louca vontade de ingerir o corpo, de “comer deus”.

Nos créditos finais do filme nós ouvimos uma deliciosa coladeira. Sobre isso eu conhecia, pois fui banca de um trabalho sobre danças tradicionais de Cabo Verde e essa é uma das que se realiza em pares:  “vem, vem dançar, nova coladeira...”