Sinopse Na pequena cidade costeira de
Nouadhibou, na Mauritânia, o jovem
Abdallah visita a mãe em sua terra natal antes de ir para a Europa, mas o jovem
não se adéqua mais à realidade local, esqueceu como se fala o dialeto de onde nasceu,
Abdallah se torna um observador do
cotidiano da aldeia, suas tramas e
personagens, sem com isso se sentir ambientado nunca. Sua mãe e Khatra, um menino aprendiz de um eletricista idoso, tentam
ajudá-lo sem sucesso. É um filme sobre pessoas em trânsito, aguardando a tão sonhada
felicidade hipotética.
Impressões gerais É um filme bem instigante, começa com uma cena seca, um arbusto se desprendendo do chão de areia, com pessoas muito vestidas em meio à muita areia, um deserto, no entanto sabemos que se trata de uma região costeira, pois ouvimos ao fundo o barulho do mar, dando o tom da película, as pessoas vão estar perto do mar e da liberdade, entretanto continuarão vivendo suas secas vidas na areia, isoladas e até tristes. Em alguns momentos do filme personagens encontram dificuldades em sair daquele tédio, como se estivessem predestinados àquela vida (o próprio Abdallah, que estava sem passaporte; o eletricista Maata que narra a história de quando imigrou com seu amigo e o menino Khatra, que não consegue embarcar no ônibus).
Na casa da mãe de Abdallah, como é comum em muitas regiões de África, eles ficam muito deitados ou sentados no chão, talvez por isso haja uma janela perto do chão, nela conseguimos ver registros da cidade, pelos pés, pela areia voando no vento, patas de animais e pés de crianças, como se a imagem daquela aldeia pudesse se resumir ao que está perto do chão.
Outro jogo de cena importante, muito usado na película, é quando vemos as cenas acontecerem por atrás de lenços pendurados em varais e que tremulam no vento com areia. Aliás, a areia é quase um personagem do filme.
Desde a primeira cena, quando um rádio é enterrado na areia e depois nunca mais encontrado, temos a impressão de que a qualquer momento a areia ainda vai soterrar aquela cidade, aquelas pessoas.
Abdallah
De início o personagem principal do filme é Abdallah, o estudante que retorna à terra natal, mas que é ali um deslocado, não fala com ninguém, não interage, até de esqueceu do dialeto do lugar onde nasceu. É um rapaz magro e franzino, é sonâmbulo, procura um hospital por passar mal e usa camisas muito justas, quase apertadas, como que simbolizando o aperto que é estar naquele ambiente de novo. Ele chega dirigindo um carro repleto de bagagens, tocando um som de jazz maravilhoso de Jan Garbrek, mas esse carro quebra depois não o vemos mais, nem mesmo as bagagens. Por muito tempo o filme fica centrado em mostrar o distanciamento do rapaz com a cidade onde nasceu e as formas como ele tenta driblar os problemas: tenta aprender a língua com o jovem Khatra, que por brincadeira o ensina significados errados das palavras, o que ele descobre quando vai conversar com algumas mulheres que riem dele.
Um momento singular sobre sua inadequação é quando ele transforma uma cortina em roupa para tentar se enquadrar ao ambiente, no entanto a inadequação fica ainda mais gritante
Como não é capaz de falar, Abdallah só observa tudo como novo e como a câmera vai com ele, nós também vamos conhecendo Nouadhibou e seu cenário arenoso e pobre. Mas tem um momento, mais próximo do final, em que Abdallah perde o protagonismo do filme, só o vemos arrumando as malas e tentando ir embora. Chegou a vez de falar de outros personagens como o eletricista Maata e seu jovem ajudante Khatra.
Khatra e Maata
A questão da falta de luz na casa da mãe de Abdallah, ali as lapadas não se acendem, nos faz atentar para o eletricista Maata, um idoso e sério, sempre acompanhado por seu assistente criança, que o trata como um pai. Khatra é esperto e parece achar que pode resolver tudo, o que não é verdade, mas ele nunca perde a confiança e vivacidade. Maatra é rígido e em uma das mais belas cenas do filme, o proíbe de cantar a seguinte canção (em árabe), cuja letra é um poema de Paul Niger de 1962
Passarinho
que canta
seu
amor pela terra natal
vou escolher o que vai comer
e
trazer para você
Trilha sonora
Uma coisa que me chamou a atenção no filme desde o começo é a trilha sonora, além do já citado jazz e das cantigas de Khatra, temos belas cenas em que uma griote ensina uma menina a cantar canções tradicionais, daquela forma visceral, de arrancar o coração
Live com Hannah Serrat
Na live com a pesquisadora da UFMG ela colocou que via o filme uma narrativa de povos em trânsito, um filme sobre o desenraizamento e isso comunga com a própria história do diretor,
Para ela, uma personagem como Abdallah é a síntese própria da estrangeiridade pois, mesmo na própria terra de origem, vive como um estrangeiro, não conhece o idioma,não conhece ninguém, não participa da experiência coletiva da cidade, Então, o filme mostra que o sentimento de identidade não estaria ligado apenas ao local, por isso o sentimento que encontra em seu retorno é o do desconforto, é a certeza que já não sabe como viver naquele lugar, de que perdeu todas as referências. Dai aquela situação de tentar se vestir como os locais e de sentir atravessado por diversas camadas de "olhares coloniais" que o diferencia de um africano e talvez também não o torne habitante de outro lugar.
Hanna lembrou que o significado de "Heremakono" seria um lugar de passagem, morada temporária e que no filme é mencionado pelos personagens como um lugar de referência, de onde vieram ou por onde iriam passar de novo. Muito interessante, deu vontade de ver e rever esse filme.
Para mim é claro que toda mulher primeiro foi menina, difícil separar uma da outra. Mas nem todo mundo pensa assim. Na discussão sobre este filme surgiu uma questão pertinente : as questões que colocamos sobre a presença ou ausência das mulheres nos filmes africanos são sempre coerentes com seu contexto e cultura? Ou remetem apenas aos nossos questionamentos ocidentais? Partindo dessas colocações, Hannah disse que não se sentia muito à vontade para falar das "duas únicas personagens femininas do filme", as duas mães, a de Abdallah e a vizinha Nana, que contou ao estudante sobre a filha que perdeu.
No entanto, pouco antes, ela mesma tinha destacado a atuação de outras duas personagens femininas, duas meninas, a aprendiz de música com a Griote e uma garotinha que dançava na festa, inspirando Abdallah.
Aqui não estou criticando a pesquisadora, apenas apontando para como é difícil pensar na menina como um ser feminino, tanto quanto a mulher.
Para mim elas são, sim. Se não propriamente mulheres (que seriam adultas), são femininas desde sempre. Não acho que foi à toa que Abderrahmane Sissako tenha criado essas meninas, que tenha escolhido uma griote, não um griot, mas o significado disso fica em aberto. Apenas um questionamento que gostaria de pontuar .