Eu com livro de Gogol e os dois usados como referência neste texto |
Como postei em 28 de julho:
Antes, um comentário sobre a bela edição de Gogol : Trata-se de uma tradução original do russo por Gália e Otto Schneider, com ilustrações do alemão Erich Grandeit, edições Melhoramentos, coleção Novelas do Mundo, no.7, sem data.
edição que é uma jóia |
Agora terminei a leitura do livrinho e gostaria de postar um comentário breve sobre cada um desses contos fantásticos.
Pensando na produção literária do escritor russo Nikolai Gógol (1821 - 81), o conto "O Capote", publicado em 1842, desenha uma caricatura da burocrática sociedade russa de meados do século XX através da história do humilde e sem grande personalidade funcionário público Akaki Akakiévitch, que é bem pobre e precisa urgentemente de um capote novo ou arrumado, para enfretar o rigoroso inverno de São Peterburgo e a refinada crítica de Gógol aparece em momentos assim:
De leitura fácil, carregada de humor negro, nesse conto temos desenhada uma caricatura da sociedade russa através de contornos sutis das diferenças sociais na exuberante cidade peterburguense, o que o levou a ser tomando pelos próprios escritores russos como Dostoiévski, Tolstói, etc, uma especie de precursor de toda tradição ficcional que marcou a história da literatura de nosso tempo.
Apesar de ser um pouco grande para um conto, considero que seja mesmo um, pois toda a trama, sua problemática, desenvolvimento e final, gira em torno de um ponto bem específico: o vestuário de Akaki Akakiévitch: o que ele veste representa o que ele é, roto, gasto, velho, motivo de chacota. O narrador, que não é onisciente e conversa o tempo todo com o leitor sobre o que sabe e o que não sabe ao certo na história que está contando, e quando narra as humilhações cotidianas sentidas pelo personagem resignado, que não é dono nem das próprias palavras, e, estranhamente, vai descrevendo a surrada roupa como um duplo de seu dono:
"O leitor precisa saber que o velho capote de Akaki Akakiévitch (como ele próprio) também era alvo de toda sorte de zombaria por parte dos colegas, a tal ponto que, privando-o da nobre designação de capote, chamavam-no de bata. Na realidade esse capote era algo inteiramente singular; sua gola diminuía de ano para ano, servindo para remendar outras partes dêle. Os remendos não mostravam grande arte do alfaiate, pois eram toscos e feios." (p.19)
Já não podendo mais remendar seu capote, Akaki sabia que teria que dar um jeito de ter um novo e então, humildemente, procura ao alfaiate e encomenda um novo capote
Akaki Akakiévitch encontra o alfaiate. Ilustração do alemão Erich Grandeit |
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Muito intrigado, sai em busca do nariz com ajuda da policia e da imprensa em cenas engraçadíssimas, até encontrou um senhor de uniforme que não era outra coisa que não o seu nariz uniformizado!
Major Kovaliov encontra seu nariz com uniforme mais graduado que o seu.
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"O pobre Kovaliov quase perdeu o juízo. Não sabia o que pensar de tão estranho acontecimento. Como era possível que o nariz, que ainda ontem fazia parte da sua cara, sem poder se locomover ou andar, estivesse hoje de uniforme?" (p.70)
Não quero estragar a surpresa dessa deliciosa peça literária, por isso paro de falar do enredo aqui, mas não sem antes destacar que esse conto foi objeto de discussão e reflexão constante nas minhas pesquisas sobre humor e estranhamento e humor, para as quais usei como apoio o capítulo "Estranhamento", do livro "Olhos de Madeira: Nove reflexões sobre a distância", de Carlo Ginzburg ( Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras", 2001. e o ensaio "Dois narizes", da escritora paulista Zulmira Ribeiro Tavares (In Região. São Paulo: Cia das Letras, 2012), onde ela experimenta uma comparação entre a obra de Gogol e parte da história da "Menina do narizinho arrebitado", de Monteiro Lobato.
Tanto Ginzburg , quanto Zulmira tratam por estranhamento como toda ordem de inesperado dentro do cotidiano, do banal, aquele lapso, que na maioria das vezes resulta em comicidade e nos convida a olhar nosso mundo de outra forma.