Capa da publicação em 25 de outubro de 2024 |
Primeiramente aviso que tudo que escreverei abaixo é resultado de uma primeira leitura feita cerca de um mês após a publicação do livro em 25 de outubro de 2024, período onde não ouvi nenhum outro leitor comentar a obra, o que certamente ampliaria minha visão. Em breve devo ouvir mais leitores comentando. Por hora eu tenho a dizer:
Evidentemente
este era um romance necessário para o que Cuti chama de “Literatura
negro-brasileira”, por tratar do tema das cotas raciais e ser escrito por um
autor que, tal qual o protagonista Joaquim,
foi um dos primeiros cotistas e sentiu que, mais difícil do que entrar,
era permanecer na Universidade.Sobre o atual tema das cotas, antes já havíamos
tido o ESPETACULAR “Marrom e Amarelo”
(2019),do gaúcho Paulo Scott, que aborda
o tema focando mais nas discussões jurídicas e
institucionais, mesmo que intermediado pelo discurso passional e cheio
de “ódio racial” do protagonista Federico (o irmão amarelo), que torna aquela
leitura um grande soco no estômago, como boa literatura.
No
novo romance de Jeferson Tenório, esse
professor/ escritor necessário, sempre
às voltas com protagonistas no limiar
escolarização , (primeiro foi João, um garoto entre 10 e 11 anos que vive na rua em “O Beijo na parede”(2013);
depois foi Estela, uma adolescente entre os 13 aos 18 anos que
sonha ser filósofa e vive as inconstâncias de uma jovem negra, e agora aborda o
tema dos primeiros cotitas universitários em Porto Alegre através da história
de Joaquim, um negro retinto que queria ser poeta, mas vivia com a avó senil em um bairro periférico de
POA mas, em suas palavras, “ousou”
entrar na universidade como cotista. O romance é sobre como ele tentou lidar
com as tantas adversidades dessa situação.
A avó senil é, certamente, um dos pontos fortes do livro, porque ela representa a ancestralidade negra de Joaquim, sua ligação com os orixás e todo o conflito de filosofias que o cotista passa a enfrentar após sua entrada na academia. A partir dessa personagem chave, amada e odiada pelo protagonista, que Tenório insere na história de Joaquim a discussão entre literatura e mito; ficcção e realidade; fé e razão, que já havia aparecido em seu conto "Ogum à beira mar" , publicado no livro "Contos de axé" (2021)
Eu, muito admiradora de Tenório (já tentei até estudá-lo em um novo pós-doc), tinha muitas expectativas com esse romance, afinal eu também sou reconhecida como negra (pardos e pretos) e mesmo não tendo sido universitária na era das cotas, entrei bem antes na USP, onde era uma das poucas negras periféricas, tinha tudo para gostar de qualquer coisa que Tenório me entregasse, mas não foi o que aconteceu.
Primeiro
devo explicar que consegui a versão digital e precisei ler no computador, o que
não estou acostumada a fazer com literatura.
Mas depois estranhei a linguagem. Estava ainda com o sabor literário da
bela escrita de “O Avesso da pele” (2020), o premiado livro de Tenório. Em “De
onde eles vêm” (2024), achei a linguagem menos estilizada, mas pensei:
escolhas.
“De
onde eles vêm” tem cerca de 200 páginas, é dividido em quatro capítulos, com duas epígrafes :
I
“Ocorreu uma
mudança durante essas últimas semanas. Mas onde? É uma mudança abstrata que não
se fixa em nada. Fui eu que mudei? Se não fui eu, então foi esse quarto, essa
cidade, essa natureza, é preciso decidir.“ (Jean Paul Sartre, A náusea)
1“Levantando cavalos” com 16
partes;
2“De onde eles vêm” com 32 partes;
II
“ Pecador, para onde você vai
correr?
Eu corro para a rocha: Por favor,
me esconda.
A rocha exclamou: Não te
esconderei, garoto.
Então, eu corro para o rio e ele já estava sangrando” (Nina Simone, Sinnerman)
3 “Sinnerman” (34 partes);
4 A vida é boa (21 partes);
Um livro aberto |
Eu
li muito rapidamente e fui comentando a leitura aos poucos. E fui comentando em
pequenos trechos
Em 30 de novembro :
“DE ONDE ELES
VÊM, Jeferson Tenório, primeiríssimas impressões: Ganhei de “presente de natal”
e comecei a ler esta manhã. Nas primeiras páginas da história do negro cotista
Joaquim eu senti bem forte o perfume da apologia à literatura apesar de tudo ou
por causa de tudo, que tanto me agrada em Tenório, mas senti também bastante
realidade e um peso inesperado naquela “pena” antes tão leve, naquele texto não
há nada tão belíssimo como na própria ideia do romance de "O avesso da
pele", mas há a narrativa de uma realidade da juventude negra do Brasil,
como em todos os livros de Tenório. Em um trecho, quando o jovem Joaquim revela
querer escrever um conto sobre racismo, recebe a provocação que o deixa
pensativo: " você quer escrever essa história ou fazer uma denuncia? “ Gosto quando Joaquim fala de
coisas que só negros vão entender: ele percebe que ele e sua então namorada
Jéssica eram "atraídos por coisas difíceis (como a faculdade?) e muito
cedo aprenderam que nossa única chance de fugir das armadilhas era preservar
nossa lucidez. Por isso a gente não se drogava nem bebia, quer dizer, bebíamos,
mas muito pouco ." (cap. 1, parte 7)
Quantas histórias reais ou literárias conhecemos de negros e especialmente
negras (duplamente desacreditadas, por
ser serem mulheres e por serem negras!)
que perderam sua lucidez e ficaram no meio do caminho?
Estou só no começo...”
Em
1 de dezembro eu, relembrando que o texto de Tenório é sempre muito recheado de
teorias pós coloniais e narrativas antirracistas, copiei um exemplo
interessante que dói em mim,sobre quando surge o irresistível fantasma da loira Elisa entre o casal preto
Joaquim e Jéssica, que comenta :
“Joaquim, eu luto todos os dias para não achar que
eu sou feia, sabe? Eu sinceramente não acho a Elisa bonita. O jeito dela me
deixa um pouco irritada, mas ela é branca e magra e tem dinheiro. Ela pode se
dar ao luxo de ser feia e se vestir mal. Ouvi-a atentamente. Depois disse que ela
podia ficar tranquila porque eu não estava afim da Elisa. Jéssica sorriu como
se acreditasse em mim..."
Nessa hora a gente lembra do
Frants Fannon: é muito mais do que desejo, estar ou não afim, é uma dinâmica de
pensamento implantada pela colonização da qual o individuo muito dificilmente
escapa. Joaquim também não escapou ... É foda!”
Nesse
mesmo dia, mais tarde, eu cheguei na metade do livro, um tanto quanto
desanimada com a leitura:
“DE ONDE
ELES VEM: Cheguei na metade e até agora não me apaixonei. O estilo é muito
parecido com o de "Estela sem Deus", uma leitura fácil, o conteúdo é
todo salpicado de conhecimentos sobre narrativas pós coloniais (como todo
Jeferson Tenório), mas ainda faltou o narrador. Sim, é o Joaquim, o cotista
negro da faculdade de letras, mas até agora é quase só isso que realmente sei
dele, não passeamos ainda por sua mente. Vamos ver como será a última parte
(geralmente Tenório guarda o melhor pro final, só em "o avesso da
pele" que o melhor está desde a epígrafe!)... Vejamos”
Em 2 de dezembro recortei um trecho belo,que é a
cara do Tenório e a de todos os leitores, e postei nas redes sociais:
“Quando você se torna leitor, viver de maneira harmônica com o mundo é impossível. A impressão é que estamos em desacordo com a realidade. O que de certo modo ocasionou uma espécie de amputação de uma parte de mim mas que eu não sabia exatamente qual era. Aos poucos fui me dando conta de que as histórias de aprendizagem são sempre as mesmas: antes você não sabe, depois você passa a saber. A diferença entre as pessoas é justamente o que fazemos com o que a gente passou a saber."
Depois eu me identifiquei muito com essa fala de
Joaquim, eu que também tinha ousado ir tão longe:
DE ONDE ELES VÊM: "Ora, então não havia um preço a pagar por ter ido tão longe? É claro que sim. Entretanto eu já tinha me tornado um leitor, e já havia lido o suficiente para me revoltar. Tinha os instrumentos necessários para uma insurgência contra a vida: eu tinha saúde física e era leitor. No entanto,meu impacto era constantemente atropelado pela baixa autoestima. Eu me sentia incapaz de contestar minha condição e,na maioria das vezes, preferia me acomodar. Havia, sem que me desse conta, um certo prazer em meu sofrimento. Apeguei-me a solidão e à auto. Como se aquele lugar de resignação e apatia me trouxesse algum tipo de recompensa interna. E, por muitas vezes, para tentar fugir daquela roda-viva, pensava como Sinval se sairia se estivesse no meu lugar. Talvez esse seja o pensamento mais comum quando temos alguém como referência." P.175
E
depois, enfim, terminei de ler, fiquei muito confusa escrevi um depoimento
muito passional :
“Terminei de ler e estou muito longe de uma ressaca literária (como fiquei depois de ler outros textos de Tenório, especialmente seu primeiro romance "O beijo na parede"), estou mais próxima de uma carência literária. Não me apaixonei pelo livro, pela escrita principalmente. Depois do belíssimo "O avesso da pele ", confesso que estranheio texto, que me lembrou o "Estela sem Deus"(um livro infanto juvenil! ), mas esse novo é um livro que se quer adulto, tem até cenas de sexo, sempre de muito bom gosto, até poéticas, mas sei lá, não me prenderam. Terminei o livro um pouco irritada e isso não é numa crítica negativa ao livro de Tenório,nunca acho que os autores devem me agradar, mas ele poderia ter me incomodado, me feito repensar alguma coisa, e não me irritado, como aconteceu! Claro que eu também tenho minha parcela nisso. Ainda sobre a escrita, têm as menções literárias do texto de Tenório que amo , podem ser explicitas ou não, mas desta vez são abundantes como nunca! Eu gosto sempre, especialmente quando elas relampejam no texto (como a menção ao o capitulo 7 de “Jogo da Amarelinha”, do Cortázar aparece do nada em “O avesso da Pele”. Nesse livro essas menções são quase incontáveis (compreensível, afinal os protagonistas são estudantes de Letras!) , e dessa vez não chegaram até mim como um ponto sempre positivo, isso pode ser porque eu já estava irritada com o protagonista. Isso é um elogio, pois Tenório conseguiu criar um personagem preto muito real, que conheço muito bem, e não foi agradável reencontrar esse tipo num livro onde nem a literatura salvadora amenizou o meu mal estar. Também identifiquei,com algum prazer, muitas citações aos próprios textos de Tenório que eu conheço, perceber autoreferencia foi legal,pois observar tantos detalhes que já tinha visto em seus textos, me levou ao posto de leitura de Tenório! Que honra! Um elemento que surge não raramente, que é um traço estético dele, mas que eu, como leitora, nem sempre gosto muito é o uso da escatologia. Em outros textos, envolvendo crianças ou jovens, até vinha com um toque humorístico, mas nesse livro não li desta forma, não entendi muito bem. Não sei se foi porque li o livro no computador (detesto ler literatura assim) , estive sempre bem distante do livro, não consegui me aproximar nunca do protagonista Joaquim, mesmo achando que o entendia a todo momento, mesmo achando que devia ser pra ele muito pior do que foi para mim a experiência da universidade, me irritava que naquela ficção, repleta de possibilidades, o "mais do mesmo", de novo essa história?" Tá bom que o fim há uma meia redenção, que sabemos que não vai durar muito, mesmo assim foi amargo ... Eu já tive visões menos amargas de livros de autores que amo, inclusive játermi nei livros do Tenório bem mais nutrida e empolgada, mas dessa vez não sei, não acho que deu liga. Em outro momento, menos passional, retorno a esse livro e vejo se continuo achando tudo isso!
Enfim, de qualquer forma eu li um romance que me mexeu comigo e não vai parar de mexer tão cedo. Adoraria ouvir mais opiniões sobre o livro, mas por enquanto no youtube quase não temos. Espero que com o tempo venham a ser publicados mais vídeos de booktubers, que é melhor do que ninguém para comentar. Por enquanto, viva Jeferson Tenório, certamente um dos grande escritores brasileiros contemporâneos.