Mas acho interessante ainda hoje:
Como é de conhecimento geral, eu sou uma "nerd" que gosta muito de futebol! É fácil sentir-se solitário nesta posição, já que "nerds" torcem o nariz para futebolistas e vice versa. Certa vez, antes da Copa de 2006, escreveram um texto sobre Ronaldo Nazário - reportagem de capa da Revista Época - onde sustentavam que o jogador, pelas constantes "quedas" e "superações" , assemelhava-se aos sábios da história do mundo. Publiquei um trecho comentado em meu blog, porque achei pertinente a colocação... mas ao que me lembro, os comentadores não receberam bem, tecendo comentários do tipo "Mas é só um jogador de futebol, não é um grande pensador!" ou "Futebol é um jogo, não é filosofia!" rs
Achei bastante pedante, mas minimamente compreensível e até esperada essa recepção. Entretanto, retruquei a todos que eu sou uma leitora apaixonada das crônicas futebolísticas de Nelson Rodrigues, onde percebo o olhar do autor - afinado com grandes dramas humanos - ver desenvolverem-se os mesmos questionamentos nos noventa minutos atrás da bola. Sempre achei interessante estabelecer esse tipo de relação, especialmente em um país como o Brasil!
Não é que Zé Miguel Wisnik surpreendeu defendendo posição parecida, ontem em sua entrevista no Roda Viva?
Claro que o ponto de vista dele é infinitamente melhor argumentado que o meu, mas o raciocínio segue caminho semelhante!
Wisnik tem uma sensibilidade incomum para atentar para possibilidades reflexivas/narrativas formuladas por linguagens nunca antes utilizadas para refletirem/narrarem discursos sobre si próprias: Escrever um livro sobre História da Música a partir de elementos observados na própria configuração musical e na sucessão dos movimentos musicais era um idéia que ninguém tinha pensado antes do seu livro "O Som e o sentido - uma outra história das músicas" , porque a história das músicas era escrita da mesma forma que a história de qualquer outra linguagem, já que artifícios musicais nunca haviam sido considerados tão ricamente para narrá-la.
Ainda não li nenhum texto completo de Wisnik sobre futebol, mas ao ouvi-lo falando sobre seu último livro, "Veneno Remédio - O futebol e o Brasil" , lançado recentemente, parece que ele continua na mesma busca: Refletir sobre o futebol a partir das configurações (e conhecimento) do próprio futebol.
Enquanto houver cabeças como a de Wisnik no mundo, talvez as "estórias" possam ,sim, contar a sua história, porque já é possível partir da sepração entre as formas para chegar a relações possíveis entre elas! Eis um comportamente que eu enendo como "dialético"!
Copio aqui o trecho do livro, disponível no site da Cia das Letras, só para dar água na boca:
LIVRO E FUTEBOL
"O leitor a quem se dirige esse livro não é evidente: em geral, quem vive o futebol não está interessado em ler sobre ele mais do que a notícia de jornal ou revista, e quem se dedica a ler livros e especulações poucas vezes conhece o futebol por dentro. Pierre Bourdieu observa, por exemplo, que a sociologia esportiva é desdenhada pelos sociólogos e menosprezada pelos envolvidos com o esporte. A observação pode valer também para ensaios como este aqui, embora ele não seja do gênero sociológico.No limite, a onipresença do jogo de bola soa abusiva e irrelevante para quem acompanha a discussão cultural. Assim, mais do que um desconhecimento recíproco entre as partes, pode-se falar, de fato, de uma dupla resistência. Viver o futebol dispensa pensá-lo, e, em grande parte, é essa dispensa que se procura nele. Os pensadores, por sua vez,à esquerda ou à direita,na meia ou no centro,têm muitas vezes uma reserva contra os componentes antiintelectuais e massivos do futebol, e temem ou se recusam a endossá-los,por um lado, e a se misturar com eles, por outro. Tudo isso, por si só, já daria um belo assunto: o futebol como o nó cego em que a cultura e a sociedade se expõem no seu ponto ao mesmo tempo mais visível e invisível. E esse não deixa de ser o tema deste livro, que talvez possa interessar a quem esteja disposto a lê-lo independentemente de conhecer o futebol ou de ser ou não "intelectual".
Não é incomum, também, que intelectuais vivam intensamente o futebol, sem pensá-lo, e que resistam, ao mesmo tempo, a admiti-lo na ordem do pensamento.Nesse caso, aqueles dois personagens a que nos referimos no começo podem se encontrar numa pessoa só.Um exemplo do desencontro entre o que se pensa e o que se vive do futebol pode ser lembrado no fato conhecido - que o filme O ano em que meus pais saíram de férias incorporou a seu modo - de que muitos dos que se decidiram a torcer pela Tchecoslováquia contra o Brasil, na primeira partida da Copa de 1970, por identificarem a seleção com a ditadura militar, viraram do avesso a decisão inicial assim que a partida esquentou: a verdade é que, apesar das boas razões políticas que os guiavam, o tempo do jogo os devolvia a um lugar em que o time de futebol, contra aquilo que pensavam, não se confundia com o regime, mas se mostrava ligado a eles mesmos através de uma identificação inesperada e mais profunda.
É com ziguezagues como esse que temos de lidar.E com mais um agravante: dada a extensão que tem o futebol no Brasil, a imersão na vida futebolística se faz de uma maneira tal que não passa por uma atividade refletida, ou então passa tanto que todo mundo se considera mais na posição de ensinar futebol do que de aprender sobre ele.Afinal, trata-se do fenômeno em relação ao qual parecemos estar sempre ou muito por dentro ou muito por fora, obnubila-dos por ele ou desconectados da sua verdade sob a espécie de uma "superioridade" crítica.
A primeira motivação para encarar o assunto me veio dos esboços quase brincalhões de uma teoria do futebol, escritos pelo ensaísta-cineasta Pier Paolo Pasolini, que um amigo - Michel Lahud - me mostrou no início dos anos 80. Pasolini dizia que o futebol é uma linguagem, e comparava jogadores italianos com escritores seus contemporâneos, vendo analogias entre os estilos e as atitudes inerentes aos seus "discursos".Mais do que isso, falava, escrevendo em 1971, de um futebol jogado em prosa, predominante na Europa, e de um futebol jogado como poesia, referindose ao futebol sul-americano, e, em particular, ao brasileiro. Essas idéias, que se tornaram mais conhecidas recentemente, foram muitas vezes banalizadas e reduzidas à superfície, sem que se atentasse para o alcance inédito das suas sugestões.Apesar de seu caráter apenas indicativo,Pasolini não falava de poesia no sentido vago e costumeiro de uma "aura"lírica qualquer a cercar o futebol.Também não estava projetando "conteúdos"narrativos para dentro do campo. Em vez disso, influenciado, e não sem humor, pela voga semiológica da época, identificava processos comuns aos campos da literatura e do futebol: pode-se dizer que via na prosa a vocação linear e finalista do futebol (ênfase defensiva, passes triangulados, contra-ataque, cruzamento e finalização), e na poesia a irrupção de eventos não lineares e imprevisíveis (criação de espaços vazios, corta-luzes, autonomia dos dribles, motivação atacante congênita). Sugeria com isso, pela via estética, uma maneira de abordar o jogo por dentro, e nos dava, de quebra, uma chave original para tratar da singularidade do futebol brasileiro.
Embora sumária, e aparentemente esquemática, a sua teoria do futebol contemplava a necessária imbricação da "poesia" e da "prosa" no tecido do jogo (sem afirmar a superioridade de uma sobre a outra), e pontuava genericamente suas gradações, passando por aquilo que ele via como a prosa realista de ingleses e alemães, a prosa estetizante dos italianos e a poesia sul americana,chegando por todas essas vias ao delírio universal do gol,que suspende as oposições porque é necessariamente um paroxismo poético.
Nada impede de dizermos a partir dele,sem dualismos rígidos,que os lances criativos mais surpreendentes não dispensam a prosa corrente do "arroz-com-feijão" do jogo, necessário a toda partida. Ou de constatar, na literatura como no futebol, que a "prosa" pode ser bela, íntegra, articulada e fluente, ou burocrática e anódina, e a "poesia", imprevista, fulgurante e eficaz, ou firula retórica sem nervo e sem alvo. Pois a mais importante conseqüência de sua rápida semiologia exploratória, a meu ver, é de que o futebol é o esporte que comporta múltiplos registros,sintaxes diversas, estilos diferentes e opostos e gêneros narrativos, a ponto de parecer conter vários jogos dentro de um único jogo. A sua narratividade aberta às diferenças terá relação,muito possivelmente, com o fato de ter se tornado o esporte mais jogado no mundo inteiro, como um modelo racional e universalmente acessível que fosse guiado por uma ampla margem de diversidade interna, capaz de absorver e expressar culturas. O mote pasoliniano, formulado num momento muito particular do apogeu do futebol-arte, em que a distinção entre a prosa e a poesia futebolística era de uma evidência e de uma pertinência centrais,permanece,a meu ver,como um modelo simples e estimulante para comentar, mesmo quando pelo avesso, as transformações do futebol durante esses tempos e a insistente natureza elíptica do futebol brasileiro - sua ancestral compulsão a driblar a linearidade do esporte britânico.
Acresce ainda que esse viés estético-analítico, no caso de Pasolini, é inseparável de sua paixão pelo esporte, do sentimento de sua impregnação na vida e do modo como ele testemunha as relações humanas.A sua paixão pelo futebol é uma paixão do real, sem afetações ou restrições moralistas.O futebol era para ele o terreno em que se dava ainda o grande teatro e o rito da presença, expondo ao vivo, em corpo e espírito, um largo espectro da escala humana. Sendo assim, uma zona de contatos lúdicos, primária e refinada, física e metafísica, que desafia e desencadeia o desnudamento da existência autêntica. Por isso mesmo, afirmava que jogar futebol era um dos seus maiores prazeres, junto da literatura, do eros e do cinema,além de ser,como para Albert Camus ou Eugenio Evtuchenko,um campo de aprendizado total, uma espécie de romance de formação.
A recente publicação de seus escritos reunidos sobre esporte mostra que, mesmo tendo percebido desde longa data o movimento da tomada desse terreno real pela irrealidade dos simulacros da mídia burguesa, pela vacuidade da sua espetacularização e pela sagração de suas vedetes como paradigmas do consumismo, e mesmo tendo se tornado um dos críticos mais contundentes desse fato, nem por isso se permitia atacar o futebol enquanto tal. Na verdade, era nesse ponto de estrangulamento, de certa forma desesperado, inquieto e fecundo, que a sua paixão viva não se deixava anular nem separar de sua consciência crítica, exigindo ver o futebol ao mesmo tempo de dentro e de fora, suportando a consciência daquilo que ele tem de alienante e manipulado em nome daquilo que tem de autêntico, memorável, apaixonante e inesperado - em outros termos,bem seus, naquilo que ele tem de popular e real.
No Brasil, a incapacidade de combinar a paixão e a crítica tornou- se um traço recorrente, dominando em boa parte a cena pública invadida a todo momento pelo futebol: é como se fôssemos obrigados a estar muito colados ao fenômeno ou muito fora dele, como se só pudéssemos ser ou frívolos ou graves, para usar aqui a famosa definição de Brás Cubas para as "duas colunas máximas da opinião". Um futebolismo avassalador,multiplicado pela mídia e euforizado ainda mais pela propaganda,tem como contraponto quase obrigatório as vozes altivas que se põem no que parece ser a posição pensante e que timbram por minimizar o futebol em si, destituindo-o de qualquer relevância cultural. No momento que agora se abre, com a perspectiva da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, a conhecida combinação brasileira de sucesso futebolístico com desmando político acaba por chapar o processo, fazendo dele inteiro uma só medalha, com uma face eufórica e outra disfórica a se revezarem infinitamente (papel exercido pelo duplo viés de exaltação e bombardeio acusatório com que a imprensa trata comumente o assunto). Aqui, a tentativa é fazer contato com a experiência total do futebol na vida brasileira sem cair na gangorra onipresente que balança entre o veneno da crítica ou a droga euforizante - pólos que se equivalem, quando falsamente contrapostos, em nivelar e esconder a questão."
"O leitor a quem se dirige esse livro não é evidente: em geral, quem vive o futebol não está interessado em ler sobre ele mais do que a notícia de jornal ou revista, e quem se dedica a ler livros e especulações poucas vezes conhece o futebol por dentro. Pierre Bourdieu observa, por exemplo, que a sociologia esportiva é desdenhada pelos sociólogos e menosprezada pelos envolvidos com o esporte. A observação pode valer também para ensaios como este aqui, embora ele não seja do gênero sociológico.No limite, a onipresença do jogo de bola soa abusiva e irrelevante para quem acompanha a discussão cultural. Assim, mais do que um desconhecimento recíproco entre as partes, pode-se falar, de fato, de uma dupla resistência. Viver o futebol dispensa pensá-lo, e, em grande parte, é essa dispensa que se procura nele. Os pensadores, por sua vez,à esquerda ou à direita,na meia ou no centro,têm muitas vezes uma reserva contra os componentes antiintelectuais e massivos do futebol, e temem ou se recusam a endossá-los,por um lado, e a se misturar com eles, por outro. Tudo isso, por si só, já daria um belo assunto: o futebol como o nó cego em que a cultura e a sociedade se expõem no seu ponto ao mesmo tempo mais visível e invisível. E esse não deixa de ser o tema deste livro, que talvez possa interessar a quem esteja disposto a lê-lo independentemente de conhecer o futebol ou de ser ou não "intelectual".
Não é incomum, também, que intelectuais vivam intensamente o futebol, sem pensá-lo, e que resistam, ao mesmo tempo, a admiti-lo na ordem do pensamento.Nesse caso, aqueles dois personagens a que nos referimos no começo podem se encontrar numa pessoa só.Um exemplo do desencontro entre o que se pensa e o que se vive do futebol pode ser lembrado no fato conhecido - que o filme O ano em que meus pais saíram de férias incorporou a seu modo - de que muitos dos que se decidiram a torcer pela Tchecoslováquia contra o Brasil, na primeira partida da Copa de 1970, por identificarem a seleção com a ditadura militar, viraram do avesso a decisão inicial assim que a partida esquentou: a verdade é que, apesar das boas razões políticas que os guiavam, o tempo do jogo os devolvia a um lugar em que o time de futebol, contra aquilo que pensavam, não se confundia com o regime, mas se mostrava ligado a eles mesmos através de uma identificação inesperada e mais profunda.
É com ziguezagues como esse que temos de lidar.E com mais um agravante: dada a extensão que tem o futebol no Brasil, a imersão na vida futebolística se faz de uma maneira tal que não passa por uma atividade refletida, ou então passa tanto que todo mundo se considera mais na posição de ensinar futebol do que de aprender sobre ele.Afinal, trata-se do fenômeno em relação ao qual parecemos estar sempre ou muito por dentro ou muito por fora, obnubila-dos por ele ou desconectados da sua verdade sob a espécie de uma "superioridade" crítica.
A primeira motivação para encarar o assunto me veio dos esboços quase brincalhões de uma teoria do futebol, escritos pelo ensaísta-cineasta Pier Paolo Pasolini, que um amigo - Michel Lahud - me mostrou no início dos anos 80. Pasolini dizia que o futebol é uma linguagem, e comparava jogadores italianos com escritores seus contemporâneos, vendo analogias entre os estilos e as atitudes inerentes aos seus "discursos".Mais do que isso, falava, escrevendo em 1971, de um futebol jogado em prosa, predominante na Europa, e de um futebol jogado como poesia, referindose ao futebol sul-americano, e, em particular, ao brasileiro. Essas idéias, que se tornaram mais conhecidas recentemente, foram muitas vezes banalizadas e reduzidas à superfície, sem que se atentasse para o alcance inédito das suas sugestões.Apesar de seu caráter apenas indicativo,Pasolini não falava de poesia no sentido vago e costumeiro de uma "aura"lírica qualquer a cercar o futebol.Também não estava projetando "conteúdos"narrativos para dentro do campo. Em vez disso, influenciado, e não sem humor, pela voga semiológica da época, identificava processos comuns aos campos da literatura e do futebol: pode-se dizer que via na prosa a vocação linear e finalista do futebol (ênfase defensiva, passes triangulados, contra-ataque, cruzamento e finalização), e na poesia a irrupção de eventos não lineares e imprevisíveis (criação de espaços vazios, corta-luzes, autonomia dos dribles, motivação atacante congênita). Sugeria com isso, pela via estética, uma maneira de abordar o jogo por dentro, e nos dava, de quebra, uma chave original para tratar da singularidade do futebol brasileiro.
Embora sumária, e aparentemente esquemática, a sua teoria do futebol contemplava a necessária imbricação da "poesia" e da "prosa" no tecido do jogo (sem afirmar a superioridade de uma sobre a outra), e pontuava genericamente suas gradações, passando por aquilo que ele via como a prosa realista de ingleses e alemães, a prosa estetizante dos italianos e a poesia sul americana,chegando por todas essas vias ao delírio universal do gol,que suspende as oposições porque é necessariamente um paroxismo poético.
Nada impede de dizermos a partir dele,sem dualismos rígidos,que os lances criativos mais surpreendentes não dispensam a prosa corrente do "arroz-com-feijão" do jogo, necessário a toda partida. Ou de constatar, na literatura como no futebol, que a "prosa" pode ser bela, íntegra, articulada e fluente, ou burocrática e anódina, e a "poesia", imprevista, fulgurante e eficaz, ou firula retórica sem nervo e sem alvo. Pois a mais importante conseqüência de sua rápida semiologia exploratória, a meu ver, é de que o futebol é o esporte que comporta múltiplos registros,sintaxes diversas, estilos diferentes e opostos e gêneros narrativos, a ponto de parecer conter vários jogos dentro de um único jogo. A sua narratividade aberta às diferenças terá relação,muito possivelmente, com o fato de ter se tornado o esporte mais jogado no mundo inteiro, como um modelo racional e universalmente acessível que fosse guiado por uma ampla margem de diversidade interna, capaz de absorver e expressar culturas. O mote pasoliniano, formulado num momento muito particular do apogeu do futebol-arte, em que a distinção entre a prosa e a poesia futebolística era de uma evidência e de uma pertinência centrais,permanece,a meu ver,como um modelo simples e estimulante para comentar, mesmo quando pelo avesso, as transformações do futebol durante esses tempos e a insistente natureza elíptica do futebol brasileiro - sua ancestral compulsão a driblar a linearidade do esporte britânico.
Acresce ainda que esse viés estético-analítico, no caso de Pasolini, é inseparável de sua paixão pelo esporte, do sentimento de sua impregnação na vida e do modo como ele testemunha as relações humanas.A sua paixão pelo futebol é uma paixão do real, sem afetações ou restrições moralistas.O futebol era para ele o terreno em que se dava ainda o grande teatro e o rito da presença, expondo ao vivo, em corpo e espírito, um largo espectro da escala humana. Sendo assim, uma zona de contatos lúdicos, primária e refinada, física e metafísica, que desafia e desencadeia o desnudamento da existência autêntica. Por isso mesmo, afirmava que jogar futebol era um dos seus maiores prazeres, junto da literatura, do eros e do cinema,além de ser,como para Albert Camus ou Eugenio Evtuchenko,um campo de aprendizado total, uma espécie de romance de formação.
A recente publicação de seus escritos reunidos sobre esporte mostra que, mesmo tendo percebido desde longa data o movimento da tomada desse terreno real pela irrealidade dos simulacros da mídia burguesa, pela vacuidade da sua espetacularização e pela sagração de suas vedetes como paradigmas do consumismo, e mesmo tendo se tornado um dos críticos mais contundentes desse fato, nem por isso se permitia atacar o futebol enquanto tal. Na verdade, era nesse ponto de estrangulamento, de certa forma desesperado, inquieto e fecundo, que a sua paixão viva não se deixava anular nem separar de sua consciência crítica, exigindo ver o futebol ao mesmo tempo de dentro e de fora, suportando a consciência daquilo que ele tem de alienante e manipulado em nome daquilo que tem de autêntico, memorável, apaixonante e inesperado - em outros termos,bem seus, naquilo que ele tem de popular e real.
No Brasil, a incapacidade de combinar a paixão e a crítica tornou- se um traço recorrente, dominando em boa parte a cena pública invadida a todo momento pelo futebol: é como se fôssemos obrigados a estar muito colados ao fenômeno ou muito fora dele, como se só pudéssemos ser ou frívolos ou graves, para usar aqui a famosa definição de Brás Cubas para as "duas colunas máximas da opinião". Um futebolismo avassalador,multiplicado pela mídia e euforizado ainda mais pela propaganda,tem como contraponto quase obrigatório as vozes altivas que se põem no que parece ser a posição pensante e que timbram por minimizar o futebol em si, destituindo-o de qualquer relevância cultural. No momento que agora se abre, com a perspectiva da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, a conhecida combinação brasileira de sucesso futebolístico com desmando político acaba por chapar o processo, fazendo dele inteiro uma só medalha, com uma face eufórica e outra disfórica a se revezarem infinitamente (papel exercido pelo duplo viés de exaltação e bombardeio acusatório com que a imprensa trata comumente o assunto). Aqui, a tentativa é fazer contato com a experiência total do futebol na vida brasileira sem cair na gangorra onipresente que balança entre o veneno da crítica ou a droga euforizante - pólos que se equivalem, quando falsamente contrapostos, em nivelar e esconder a questão."
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