Na velocidade dos nossos tempos
(até se pensando em ciências humanas como a História), o livro O Grande Massacre de Gatos, publicado
por Robert Darnton (que eu amo) em meados dos anos 1980, para nós (leitores dos
anos 2000) um pouco datado, já que aponta
tantas “novidades” na época (como as trazidas pela História das Mentalidades, que à época era mesmo a nova voga e hoje,
mais de vinte anos depois, já foram quase que totalmente abandonadas pela
produções de historiografia, deixando atrás de si, entretanto, algumas pegadas
de todo um caminho no percurso daqueles historiadores, que agora já foram
incorporadas à percepção do pesquisador. Como exemplo, neste livro, tomo alguns
trechos de um texto fundamental para a minha pesquisa que estou relendo com
cuidado, o salutar capítulo “Histórias
que os camponeses contam: O significado de Mamãe Ganso”:
“As grandes coletâneas de contos populares, organizadas nos séculos XIX e início do século XX, oferecem uma rara oportunidade de se tomar contato com as massas analfabetas que desapareceram no passado, sem deixar vestígios. Rejeitar os contos populares porque não podem ser datados nem situados com precisão, como outros documentos históricos, é virar as costas a um dos poucos pontos de entrada no universo mental dos camponeses (...)O maior obstáculo é a impossibilidade de escutar as narrativas, como era feitas pelos contadores de histórias. Por mais exatas que sejam , as versões escritas dos contos não podem transmitir os efeitos que devem ter dado vida às histórias do século XVIII: as pausas dramáticas, as miradas maliciosas, o uso dos gestos para criar cenas – uma Branca de Neve com uma roda de fiar, uma Cinderela catando piolhos de uma irmã postiça – e o emprego de sons para pontuar as ações – uma batida à porta (muitas vezes obtida com pancadas nas testas de um ouvinte) ou uma cacetada, um peido. Todos estes dispositivos configuravam o significado dos contos e todos eles escapam ao historiador. Ele não pode ter certeza de que o texto inerte e sem vida que ele segura, entre as capas de um livro, fornece um relato exato da interpretação que ocorreu no século XVIII.(...) Anotações da mesma epopeia, narrada pelo mesmo cantor, demonstram que cada interpretação é única. No entanto, (...) em cada caso, o cantor procede como se caminhasse por uma estrada bem conhecida. Pode desviar aqui, para fazer uma pausa, ou ali para apreciar uma vista, mas sempre permanece em terreno familiar, tão familiar, na verdade, que seria capaz de dizer que repetiu exatamente os mesmos passos dados antes. Não concebe a repetição da mesma maneira que a pessoa alfabetizada, porque não tem noção de palavras, linhas, versos. Os textos, para ele, não são rigorosamente fixos, como são para leitores da página impressa. Cria-se um novo texto ao narrá-lo, escolhendo novos caminhos através dos velhos temas. Até pode trabalhar com material tirado de fontes impressas, porque a epopeia, no todo, é tão maior que a soma de suas partes a ponto de as modificações de detalhes mal perturbarem sua configuração geral.”(DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: O significado de Mamãe Ganso. In: O Grande Massacre de Gatos,2006. p.32-4)
“... Um longo espaço de tempo pode parecer desagradavelmente vago a qualquer pessoa que exija que a História seja precisa. Mas a precisão pode ser inadequada, ou mesmo impossível, na História das mentalidades, um gênero que requer métodos diferentes dos empregados nos gêneros convencionais, como a História política. Visões de mundo não podem ser descritas da mesma maneira que acontecimentos políticos, mas não menos ‘reais’. A política não poderia ocorrer sem que existisse uma disposição mental prévia, implícita na noção que o senso comum tem do mundo real. O próprio senso comum é uma elaboração social da realidade, que varia de cultura para cultura. Longe de ser a invenção arbitrária de uma imaginação coletiva, expressa a base comum de uma determinada ordem social.” (DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: O significado de Mamãe Ganso. In: O Grande Massacre de Gatos,2006.p.34-9)
Além de tudo isso, me chama a atenção a diferença que o texto sutilmente apresenta entre as histórias contadas oralmente e suas versões escritas. Darnton acerta quando destaca que os símbolos alegóricos (como o relação direta entre o vermelho do chapeuzinho e a conotação sexual, ou o frágil pote de vidro alegorizando a virgindade da menina no conto) não existiam nos contos populares, mas foram crianções literárias de alguns compiladores, como Perrault ou os irmãos Grimm. Só que, ainda assim, é com base na interpretação destes símbolos que se sustentam muitas interpretações, como a dos psicanalistas e estes a estendem para o tempo longo das lendas e não apresentam muitos pudores em anular a visão histórica das expressões. É como se, desde sempre e em todas as culturas, o vermelho, o vidro tivessem significado a mesma coisa e por isto esses contos seriam quase que "Histórias Primordiais" (DARNTON,, 2006. P.37). Quando, na verdade, estes símbolos e seus significados foram criação dos próprio psicanalistas intérprete.
Porém, se a interpretação psicanalítica parece não servir muito para a História antropológica de Darnton, já que não seria possível dizer nada sobre o que pensam os populares sobre símbolos que não aparecerem em suas expressões orais; penso que é muito significativo para o historiador que se debruça sobre as narrativas literárias destes contos, que também possuem sua História e isso não deve ser anulado. É preciso pensar mais ainda sobre. Conforme eu for achando mais momentos ímpares para a
reflexão de uma historiadora da História Cultural / do Livro e da Literatura como eu volto a postar aqui, certo?
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