Se para o escritor o melhor prêmio é o leitor, como sugeriu o premiado Milton Hatoum numa live no Instagram nesta semana, eu sou um prêmio agridoce para ele, porque eu leio tudo o que chega até mim, sou leitora assídua e voraz, mas uma leitora bem chata, fico brigando com os livros, vendo cabelo em ovo, aprofundando a relação... Mas sempre leio, porque eu adoro a escrita dele, até por isso mesmo que eu olho tão criticamente. Logo no começo eu reclamei que a edição não trazia informações sobre quando os contos foram escritos, mal sabia eu que o próprio autor explica em detalhes num posfácio que eu mal tinha reparado! A chata!
Leitura do segundo semestre de 2020, “A cidade ilhada” foi um livro difícil de ler, primeiro porque demorou um pouco para chegar, coisas da pandemia, depois me pegou bastante ocupada em meados de setembro, eu tendo que preparar aulas, textos, acompanhar a Mostra de Cinemas, mil coisas e acabou que eu poucas vezes me sentei para ler o livro, como gosto sempre de fazer. Fui lendo os contos bem aos poucos, quando dava, porque não gosto de ler superficialmente, isso nunca. Não com Hatoum.
Aqui farei um breve ou brevíssimo comentário sobre cada um dos contos do volume.
Varandas da Eva
–Abre o volume e é o conto mais comentado por todo mundo, conta uma história
envolvendo iniciação sexual junto a
profissionais em Manaus, daquele
jeitinho hatuano de escrever. Não me chamou a atenção, exceto pelo
aparecimento do Tio Ranulfo, personagem de “Cinzas do Norte”, romance muito
citado na contracapa do livro.
Uma
estrangeira na nossa rua -
Continho bem pueril, agradável . Até demais? Me lembrou muito alguma
coisa de W. G. Sebald, coisas soterradas pelo tempo podem emergir, não importa
o tempo que passe.
Uma carta
de Bancroft - O conto fala sobre um narrador que se dirige a biblioteca de Berkeley para
ler uma carta inédita de Euclides da Cunha que nunca foi encontrada na
correspondência de Euclides. Seria real, ou não? Logo no início uma personagem
sinoamericana chega a comentar que para seus antepassados (sua cultura) “a realidade não tinha a menor obrigação de
ser interessante” (p.23). A ficção sim, ou também não? Não vou falar mais
detalhes, mas o conto aprofunda esse jogo de forma excelente, na minha opinião.
Adorei!
Um oriental na vastidão – Aqui temos uma
narradora, como em “Relato de um certo
oriente” e o centro da trama está em um pesquisador japonês que viaja a
Manaus para viajar pelo Rio Negro por um motivo que só lendo pra saber. É um
dos textos mais bonitos do livro, muito bem escrito, com trechos de tirar o
fôlego, para contemplarmos aquelas palavras como o japonês contempla o Rio
manuara como por exemplo : "logo
depois, o céu silenciou. E o silêncio subtraiu a noção de tempo. (...) Não
havia mais claridade, e a superfície escura do remanso alcançava o céu." (p. 34-5)
Dois poetas da província– Um conto de
culto à memória intelectual de certas gerações manauaras através de dois poetas, um jovem e um velho e
suas relações reais ou rememoradas com
Paris. Me lembrou o tom, o cilma de alguns momentos do romance “Dois
irmãos” e, claro, de “Cinzas do Norte”, como se fosse mais um exercício num
possível laboratório de composição ficcional do universo do autor. Eu viajo.
O adeus ao comandante– Ah, um conto
muito do jeito que eu gosto, mais uma história um tanto fantástica (apenas o
suficiente) que se passa em Manaus, uma história oral, uma narrativa
propriamente dita. É importante destacar isso, pois ela se apresenta exatamente
assim, quando o velho caixeiro viajante Moamede chega de mais uma viagem, encontra os jovens
reunidos a espera da transmissão da TV e propõe contar uma história incrível,
envolvendo o barco Princesa Anaíra,do seu amigo comandante Dalberto, dos rios, e um caixão, etc. Que
conto fabuloso! Me lembrou de muito aquelas narrativas sensacionais da
literatura universal presente em antologias de contos universais como nos
volumes de “Mar de histórias.” Palmas
para esse conto, escrito por um grande escritor e a procura de um bom leitor.
Manaus, Bombaim, Palo Alto – Um escritor residente em Manaus (alter ego de Hatoum?) recebe o comunicado de que um almirante da marinha indiana (mais um oriental) decidiu conhecer seu escritório, todo deteriorado, sem condições de receber uma visita. Mas acaba recebendo e eles então cotejam as realidades de relação com a linguagem das inúmeras línguas faladas na Índia que foram trocadas pelo inglês colonizador e as várias línguas amazônicas que deram lugar ao português. Tem trechos notáveis como “muitos indianos de Madras e outras cidades do Sul se sentem mais à vontade falando inglês do que em urdu. De todo modo, com ou sem computador, todo o subconsciente se comunica com os deuses. Até os navios da nossa marinha são batizados com nomes das divindades.”(p. 58) A questão da “aculturação” é muito mais complexa do que pode parecer, sempre há alguma resistência.
Dois tempos– Novamente uma história do sobrinho do tio Ranulfo, o tio Ran, que volta à Manaus já adulto e se surpreende em encontrar a casa do tio fechada, pois ele estaria viajando, mas o garoto aproveita para relembrar suas vivências naquela cidade. Com o retorno do tio, o sobrinho começa a fazer aulas de canto com a professora Aiana e essa relação domina o enredo.
A casa ilhada –
Um conto muito misterioso, cheio de suspense e, novamente, uma personagem de
fora, um estrangeiro, chega a Manaus buscando encontrar algo ou alguém. No caso
é o pesquisador de peixes de água doce suíço Lavedan, que vem de Zurique,
querendo conhecer a “casa ilhada”, de um postal que teria recebido, anos atrás.
O conto é muito bem articulado, acho que o eixo para decifrá-lo (não que eu
tenha decifrado, claro) esteja na imagem do peixe tralhoto,que " com seus olhos divididos, vê
ao mesmo tempo o nosso mundo e o outro: o aquático, o submerso", e com o
qual, em um dos mais belos trechos do conto, o estrangeiro vive um momento de plena cumplicidade :”os olhos de Lavedan
encontraram os do tralhoto, e ambos permaneceram assim: o peixe e o homem,
quietos, encantados pelo magnetismo de tantos olhos voltados para dentro e para
fora. Isso durou o tempo de um olhar demorado.”(p.70)
Bárbara no inverno – Digo de antemão: É certamente o conto que menos gostei do livro todo. Embora seja bem anterior, posso até situá-lo no universo de criação literária de Hatoum ali nos primeiros volumes da trilogia “O Lugar mais sombrio”: personagens brasileiros exilados em Paris e que, certa hora, retornam ao Brasil com suas questões afetivas, políticas ou existenciais à flor da pele. Inclusive no primeiro volume da trilogia temos um personagem chamado Lázaro, altamente politizado, como o namorado da Bárbara. O tema não me agrada em nada e até canção do Chico Buarque tem, poxa vida (na trilogia as canções são menos obvias). Podemos passar para o próximo?
A ninfa do teatro Amazonas – Texto muito fantasioso que aborda a história do idoso segurança Álvaro e uma parturiente que teria entrado no teatro e levado o senhor a rememorar a soprano Angiolina Zanuchi. Certamente precisaria reler com mais tempo, mas a sensação constante é a de que tudo se passa (ou não se passa) numa grande alucinação de Álvaro, algo bastante interessante para um conto.
A natureza ri da cultura – Esse conto eu situo perto do meu romance favorito, “Relato de certo oriente”, especialmente por ser narrado por uma mulher (sem nome) e pela sua avó, a matriarca Emilie que tem origem libanesa mas se interessa pela cultura francesa e indica a sua neta aprender francês os nome de Amand Verne, um estudioso das línguas indígenas e acreditava que a língua podia “preservar e promover” sua cultura, e o de Felix Delatour, que acreditava no contrário “não se pode dominar totalmente um idioma estrangeiro, porque ninguém pode ser totalmente o outro. Um deslize no sotaque ou na entonação já marca uma distância entre os idiomas, essa distância é fundamental para manter o mistério da língua nativa . ”(p.97) A questão do deslocamento é abordada em várias frentes, tomando a língua como filtro em frases como “A viagem, além de tornar o ser humano mais silencioso, depura o olhar”(p. 100). ”Novamente, como no conto sobre o idiano em Manaus, a grande questão se apresenta em torno das línguas e da identidade. Gostei muito, como sempre, senti saudade de “Relato de certo oriente”.
Encontros na penísula – Esse conto é divertido e um mergulho literário envolvendo Machado de Assis e Eça de Queiroz que acabam mudando e dando rumo às ações das personagens do conto, a espanhola Victoria, seu professor de português (alter ego de Hatoum?)que narra a história e o namorado português de Victória o Soares, o fanático por Eça de Queiroz. Uma história cheia de camadas, um conto fantástico!
Dançarinos na última noite – A história desse conto segue ao redor do casal de dançarinos Miralvo e Porfíria que antes viviam em Manaus, mas tiveram que se mudar, o que os deixou sempre saudosos da terra natal. Não consegui alcançar o sentido desse conto, não o achei lírico, nem fantástico, não entendi muito,mas...
Em geral gostei mais do livro nesse balanço rápido do que na própria leitura, em muitos momentos, foi muito bom revisitar esses textos de Hatoum que, tantas vezes, registram de processos de composição do autor, algo que eu adoro perceber. Muitos contos são grandiosos, poderiam estar em uma grande antologia de contos universais só que e como foi escrito por um manauara, minha ideia é ligs-los um rio amazonense.
Parabéns e oxbrigada Hatoum, você me distraiu, me fez pensar e sentir várias coisas! Até uma próxima leitura.
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