3. Negritude,
música e ancestralidade em Milton Nascimento -
Camila
Rodrigues (publicado originalmente em 16 julho de 2018)
Estamos chegando do fundo da
terra,
estamos chegando do ventre da
noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar(…)
Estamos chegando do chão da oficina,
estamos chegando do som e das
formas,
da arte negada que somos,
viemos criar. (…)
Estamos chegando do chão dos
quilombos,
estamos chegando no som dos
tambores,
dos Novos Palmares nós somos,
viemos lutar.
A de Ó (estamos Chegando) –
Milton Nascimento e Pedro Casaldáliga
Existem
vários caminhos para se abordar o tema da negritude na vasta obra musical de
Milton Nascimento (Bituca), uma vez que
estamos falando de um dos artistas negros mais significativos do Brasil, pois
mesmo que sua sonoridade seja mundialmente reconhecida pela grandeza de sua voz
divinal, que segundo Paulo Thiago de Mello, apresenta um timbre de
“rara extensão e densidade”, o que lhe permite “restituir a força do canto, do entoar majestoso (…) acrescentando a ela ritmos e linhas melódicas”
e
também pelo refinamento harmônico apresentado em suas
composições e interpretações, olhando de perto, é possível perceber outras
influências recebidas por um ouvido musical treinado a reconhecer nas tradições
culturais e danças populares, um
material riquíssimo que é sintetizado e purificado em sua musicalidade. Naquela
obra também encontramos apontamentos a respeito de uma vivência do
que é ser negro no Brasil, juntamente com um
vasto conhecimento da história dos seus ancestrais que vieram nobres e
fortes da África e aqui foram escravizados, mas que, ainda assim, foram e são
capazes de criar e sustentar a cultura do
nosso país. Mesmo reconhecendo ser um dos muitos caminhos possíveis a partir dos quais seria possível
abordar o tema da negritude em Bituca, para
sintetizar neste breve texto esta forte manifestação expressa na música popular
brasileira, escolhemos abordar duas personagens que aparecem naquelas canções:
a Maria, Maria e o Pai Grande, que estariam diretamente relacionadas ao
reconhecimento de uma ancestralidade africana presente em território
brasileiro.
Maria
é personagem principal da canção Maria, Maria, composta para a trilha sonora da
coreografia de mesmo nome que foi a primeira peça apresentada pelo grupo de balé
Corpo, de Belo Horizonte, em
1976, com m´sica assinada por Bituca, roteiro de Fernando Brant e coreografia do
argentino Oscar Araiz, que ficou seis anos em cartaz e percorreu catorze
países. No espetáculo conta-se a história de vida de uma mulher negra do
interior de Minas Gerais, desde a sua infância, que é muito marcada por
referências ao passado escravocrata do país, conforme o roteiro de Fernando
Brant, que é lido enquanto os bailarinos dançam :
Maria
Maria nasceu num leito qualquer de madeira. Infância incomum, pois nem bem ela
andava, falava e sentia e já suas mãos ganhavam os primeiros calos do trabalho
precoce. Infância de roupa rasgada e remendada, de corpo limpo e sorriso
aberto. Infância sem brinquedos, mas cheia de jogos aprendidos com as velhas
que lavavam roupa nas margens do Jequitinhonha. Infância que acabou cedo, pois
já ao quatorze anos, como era normal na região ela já estava casada.
Sobre
o casamento ela se lembraria pouco, “ou não quer muito se lembrar daquele homem
estranho a lhe dar balas e doces em troca de cada filho”, que no total foram
seis, em seis ano de casamento, até que enviuvou, o que para ela foi um alívio,
que a permitiu se definir como “Maria solidária,solitária, operária e
brincalhona”e alegre como na música: “dança
Maria Maria, lança seu corpo jovem pelo ar, ela já vem, ela virá, solidária nos
ajudar”.
Á respeito da trajetória de Maria Maria a dissertação de mestrado A negritude através de
“Maria Maria” de Milton Nascimento, de Carlos Alberto da Silva nos lembra que,
nascida em meio a uma sociedade machista ocidental, Maria recria o destino a
ela destinado, que seria permanecer dedicando-se exclusivamente aos afazeres
domésticos e aos cuidados dos filhos pacificamente, como se fosse uma negra
amarrada e amordaçada ao modo de suas
ancestrais escravizadas, mas ela
quis ser mais, desejou se libertar dos
cativeiros aos quais estaria presa para sempre, por isso, em uma atitude de rebeldia, sempre enxergava
a vida de forma alegre e bondosa.
Já
no final da vida, ela se despede na bela
canção de Bituca em parceria com Sérgio Sant’Anna:
Eu sou uma preta velha aqui
sentada ao sol, não tenho um nome,nem idade, nem pátria, não vou à qualquer
parte, não quero nada (…) eu vou morrer aqui sentada ao sol.
Através
da figura de Maria Maria, o espetáculo conseguiu tratar de muitos assuntos de
interesse aos afrodescendentes, como o sincretismo religioso, que no roteiro do
espetáculo é apresentado em uma imagem
na faixa Santos Católicos x Candomblé:
Experimentem tirar pela força aquilo que faz um homem. Era crença dos católicos, que os santos africanos deviam ser esmagados. Impossível para os negros esquecer quem veneravam. Iludindo todos os brancos eles apenas mudaram o nome de seus santos. E daí surgiu a mistura preto-branco, afro-europeu, mexido bem brasileiro, farofa de religião.
Embora
já disponibilizado na íntegra no Youtube, este espetáculo ficou mesmo conhecido
através da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant, que foi
gravada e consagrada por Bituca no álbum Clube da Esquina 2 (1978) e então a
experiência daquela mulher negra se apresenta como uma verdade para todas as
mulheres fortes, que “misturam a dor e e a alegria” , pois trazem “na pele essa marca” e possuem a
estranha mania de ter fé na vida”, e merecem “viver e amar como outra qualquer
do planeta”.
Mas
se Maria Maria era uma Preta Velha cheia de sabedoria, também no conjunto de
canções de Milton Nascimento encontramos sua versão masculina na figura do Pai
Grande, que na música de mesmo nome é rememorado pelo filho:
Meu
pai Grande,inda me lembro e que saudade de você
Dizendo:
eu já criei seu pai, hoje vou criar você
(…)
De minha saudade sem você cantar de onde eu vim
É
bom lembrar todo homem de verdade
Era
forte e sem maldade
O
dia vai, o dia vem
Todo
filho seu seguindo os passos
E
um cantinho pra morrer
Pra
onde eu vim não vou chorar
Já
não quero ir mais embora
Minha
gente é essa agora
Se
estou aqui, trouxe de lá um amor tão longe de mentiras
Quero
a quem quiser me amar.
Segundo
Carlos Alberto da Silva, nesta canção surge a
“figura masculina do curandeiro, do contador de estórias, do rememorizador das aventuras e desventuras de um povo sofredor e que, mesmo em meio ao sofrimento, canta, dança, brinca e se diverte”.
A memória do Pai Grande aparece aqui como a
própria ligação com a África de origem, da qual se deve lembrar, inclusive para
poder criar nesta nova terra um lugar de amor e longe de mentiras. Esta
canção já havia sido primeiro gravada
no álbum álbum Milton Nascimento (Beco do Mota), de 1969, porém é na versão de
1970, depois de passar por um aperfeiçoamento no arranjo com a ajuda do grupo
de músicos do Som imaginário, que ela
refinou-se na harmonia, tornando-se
ainda mais sofisticada, especialmente em
relação ao tratamento da percussão, que
ali já não aparece mais simplesmente como acompanhamento da voz do
cantor, mas já atuava autonomamente na canção,tornando-se definitiva.
Aliás,
o álbum Milton, de 1970, marca uma transformação visível de Bituca, no sentido
de assumir sua identidade negra, o que começa ficando claro através da capa e
no encarte do disco, feita pelo designer Kélio Rodrigues, nos quais Milton
aparece desenhado como um belo rei negro. No que se refere a sonoridade,
segundo nos explica o professor de canção popular brasileira Ivan Vilela (USP),
essa nova maneira de lidar com os batuques inaugurada por Bituca naquele no álbum
trouxe uma nova sonoridade africana para a música brasileira, esta não
mais ritmada e malemolente como a expressa pelo samba, mas mais clara e
direta. Vilela nos esclarece,ainda, que
isso seria explicado em trabalhos de
história antropológica como Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro, de
Roberto Moura, que lembra as diferenças culturais entre os grupos de africanos
que vieram viver na Bahia e no Rio de Janeiro, que em geral seriam negros “islamizados, alfabetizados e muito organizados em suas lutas” para preservar
ao máximo sua cultura de mesclas e interferências; e Vilela exclarece que os que se instalaram em Minas Gerais, para
“sobreviverem, mesclaram seus traços à cultura dominante, ao catolicismo. Suas religiões foram amalgamadas a elementos do catolicismo popular para assim preservarem a sua essência. É essa a África que vem com Milton. A África dos congados e moçambiques, catopés e marujadas, caiapós, candombes e vilões.”Destacando o aguçado ouvido musical do nosso Bituca.
Em
nossa viagem panorâmica sobre a obra de Milton Nascimento, em busca de marcas
da negritude ali registradas, nos guiaram dois anciões, uma Preta e um Preto
Velho, que cheios de sabedoria, foram nos mostrando cada lugar onde se
escondiam marcas de uma tradição africana renovada, na letra e na melodia das
canções, comprovando que Bituca é, sim,
um forte representante da negritude na cultura brasileira, porque não apenas
retoma experiências culturais africanas
até então não divulgadas, como também as
recria devido a convivência com estímulos sentidos aqui, o lugar onde todos
merecemos viver e amar.
Referências
Milton Nascimento
CORPO, Grupo. Histórico.
Disponível em
http://www.grupocorpo.com.br/companhia/historico
BORGES,
MÁRCIO. Os sonhos não envelhecem:
Histórias do Clube da Esquina.
3ª.ed.São Paulo: Geração Editorial, 1996.
MELLO,
Paulo Thiago de. Clube da esquina: Milton
Nascimento e Lô Borges. Rio de Janeiro: Cobogó, 2018.(Coleção Livro do disco)
MOURA,
Roberto. Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. 2. ed. rev. Rio de Janeiro : Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, Data de Publicação1995.
( Biblioteca carioca ; v. 32. Série Publicação científica)
NASCIMENTO,Milton.
Pai Grande (1970).
SILVA,
Carlos Alberto da. A negritude através de
“Maria Maria” de Milton
Nascimento. 2003.120f. Dissertação (Mestrado em Literatura)-
Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis.
VILELA,
Ivan. Nada ficou como
antes. Revista USP, São Paulo, n.87, p. 14-27, setembro/novembro 2010.
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