“Afro é todo o Brasil e está dentro da gente”:
Os Afro sambas de Baden Powell (1990)
Camila
Rodrigues (publicado originalmente em 16.10.2018)
Conforme havíamos lembrado no
final do texto sobre os Afro-Sambas
de Baden Powell e Vinicius de Moraes, de 1966, em 1990, dez anos depois da morte de Vinicius em 1980,
Baden Powell regravou as oito faixas do álbum original e acrescentando mais
três músicas ainda inéditas, inaugurando uma outra fase na história do disco.
Inicialmente a ideia da nova gravação surgiu do convite de um banco a Baden
Powell, pois gostaria de presentear seus
clientes com uma peça original e então gravada com toda sorte de tecnologia já
disponível, coisa que falta na primeira gravação do álbum tido como dos mais
importantes da história da música brasileira. Dois anos depois o disco foi
lançado na França e posteriormente no Brasil pela gravadora Bicoito Fino. Nesta continuação do legado dos Afro-sambas,
além do violonista Baden Powell participando como compositor, arranjador,
diretor musical e vocalista, o disco também contou com os vocais do Quarteto em
Cy, um time de músicos reconhecidos como
Ernesto Gonçalves no contrabaixo;Paulo Guimães na flauta; Sutinho na bateria,
tamborim e agogô; Flávio Neves no afoxé; Alfredo Bessa no ganzá, cuíca
atabaque, tamborim e berimbau; Flavio
Neves no atabaque, no banzá, no surdo no
berimbau.
O disco contém onze faixas, dez
de autoria dividida entre Baden e Vinicius e uma canção que abre o trabalho,
Abertura, apenas composta pelo violonista. Além das oito músicas já gravadas na
primeira versão, agora dispostas em ordem diferente, a obra conta com as
canções inéditas, a terceira faixa, Labareda, e Variações sobre Berimbau. Como
já destacamos a herança afro do primeiro disco, aqui comentaremos brevemente
uma ou outra alteração percebida na comparação entre as gravações originais e
as novas, mas nos debruçaremos sobre
esta tríade de faixas inéditas, comentando mais detalhadamente suas ligações
com o legado cultural afro.
As regravações do primeiro álbum começam a
partir da segunda faixa, com a canção sobre a peleja dos orixás contra a
divindade das folhas no Canto de Ossanha
, na qual as cordas dos violão de Baden
brilham na contestação “do homem que cai no canto de Ossanha traidor”, com o
vocal de fundo do Quarteto em Cy. Na quarta faixa retomamos ao tema de Tristeza
e Solidão de forma bastante melancólica e na quinta faixa, Canto de Pedra
Preta, assim como na versão original, a entidade volta a ser louvada com uma
marcação percussiva forte, remetendo ao Samba de Roda. Na sexta faixa retoma-se
o sofrido Canto de Xangô, com uma
percussão bem marcada, mas unida ao som delicado das flautas que combinam com o vocal do quarteto de vozes
femininas que clamam ao orixá para, enfim, morrer de amar. Nas faixas seis e
sete, Bocochê e Canto de Iemanjá, ouvimos com uma maior qualidade de gravação,
os dois belos afro-sambas amplamente conhecidos. Na penúltima faixa do disco,
Tempo de amor, destaca-se o ritmo mais acelerado da disputa entre o violão de
Baden e a percussão fortemente marcada, que vem sempre pontuada pelo canto das
Cys, no belo louvor contra o amor em paz. Mas a regravação que mais impressiona
é mesmo a da última canção, o Lamento de Exu, que na versão original era uma
peça instrumental, caracterizada como um lamento vocal, agora já ressalta fortemente a percussão atuando junto
ao violão de Baden, e mesmo continuando sem letra, a canção é pontuada com
chamamento ao orixá iorubano Exu em suas diversas manifestações como Tiriri,
Marabô, Lalu, e na sequencia o violão dá lugar a percussão, como se a divindade
convocada já estivesse presente, ouvem-se palmas de louvor ao orixá mais
conhecido e considerado como mais próximo do ser humano.
Sobre as três canções inéditas do
álbum, a canção instrumental, Abertura, é o que poderíamos chamar de uma
síntese sonora dos Afro-sambas, aquele samba mais nego sobre o qual falamos no
texto sobre o primeiro disco, e não sendo nenhuma das cantigas conhecidas como
Afro-Sambas, nos traz um um ambiente sonoro, legitimando os Afro como um estilo
musical próprio. Nesse álbum tudo é muito melhor trabalhado, expondo aos nossos
ouvidos a presença de outros instrumentos antes ocultados pelo protagonismo do
sensacional violão de Baden. Na segunda música inédita, a terceira faixa
Larareda, novamente um samba de roda tão utilizado em rituais religiosos
afro-brasileiros, surge uma figura
feminina, remetendo a entidade
Pomba-Gira do mesmo nome que a canção e que, no afro samba, é caracterizada assim:
Labareda
O teu nome é mulher
Quem te quer
Quer perder o coração
Rosa ardente
Bailarina da ilusão
Mata a gente
Mata de paixão
reforçando a educação sentimental
de Vinicius de Moraes, na qual viver é amar e amar é sofrer. Como nos lembra o
artigo de Ricardo de Paula, se nos terreiros, entre outras coisas, a figura da
Pomba-Gira é a responsável por fornecer aconselhamentos de toda a ordem, mas
especialmente nos assuntos afetivos, a presença desta canção no disco
experimenta novamente a exposição do tema a partir do imaginário
afro-religioso.
Na nona faixa do álbum, a inédita
Variações sobre Berimbau, vamos encontrar uma ligação mais direta com a
história do primeiro disco, quando nos deparamos com o resultado musical da
influência sofrida por Baden Powell, depois de ouvir pela primeira vez na Bahia
ainda na década de 1960, o som do instrumento de percussão chamado berimbau.
Conforme nos conta o músico e pesquisador musical Carlos Sandroni,
O beribaum se tornou a principal
referencia musical da capoeira, embora também fosse ‘usado pelos
afro-brasileiros em suas festas e sobretudo no samba de roda, como até hoje
ainda se vê, se bem que muito raro e como não deixa de alertar o historiador
Mauricio de Barros Castro, em sua tese Rosa do mundo: Mestre João Grande: entre
a Bahia e Nova York, o berimbau fazia parte da cultura baiana, tendo sido
apropriado pela vadiação não apenas para cantar e tocar, mas também para avisar
a chegada da polícia desde a época em que jogar capoeira era proibido, o que
sublinha a importância desse som para a história do negro brasileiro. Ainda que
já na década de 1950 o compositor baiano Oscar da Pena, O Batatinha, tivesse
utilizado o repertório da capoeira em suas composições, foi mesmo com as
canções de Baden e Vinicius da década seguinte que o tema ganhou notabilidade.
Segundo depoimento do etnólogo baiano Waldeloir Rego sobre nosso compositor, em
seu Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico :
Aproveitando sua estada na Bahia,
tive a oportunidade de conhecê-lo e trocar ideias sobre a música popular
brasileira no presente. Baden não perdeu um só instante,às voltas com o
capoeirista Canjiquinha (Washington Bruno da Silva), de quem recolheu muitos
toques de berimbau e suas respectivas cantigas .
Algumas
dessas cantigas são entoadas por Baden na faixa nove do disco, como:
menino quem foi teu mestre?
Meu mestre foi Salomão
A ele eu devo dinheiro, saber e
obrigação
Quando o segredo de São Cosme quem sabe é São Damião
Ê ê Camará
Paranauê, paranauê Camará
ou assumindo a alusão ao mundo da
capoeira: “Capoeira é pra valer/Joga bonito que eu quero aprender”. Segundo a tese de Mauricio B. Castro citada
acima, embora pouco se fale disso, em
meados do século XX a capoeira, “não apenas sua temática, mas também sua
musicalidade e linguagem” foram absorvidas por uma geração de compositores brasileiros. Musicalmente esta
influência estava sintetizada no som do berimbau, que além da capoeira, também
fazia referência e nesse contexto que
ela contribui na composição nos Afro-sambas pois,segundo Castro,em 1963, um ano
antes do golpe militar, Baden Powell e Vinicius de Morais lançaram a primeira
música de uma série de Afro-sambas,como ficariam conhecidas as canções da dupla
que remetiam à cultura afro-brasileira. A música se chamava Berimbau,
instrumento de capoeirista que Baden imitava ao violão.
Sobre os afro-sambas, é preciso
lembrar um acontecimento posterior a sua última gravação , já perto de sua
morte em 2000 Baden se converte ao culto
evangélico, este que costuma considerar como errados posicionamentos diferentes
ao seu, e passa a repreendê-los
duramente, o que o levou nosso
compositor a renegar alguns afro-sambas,
como podemos ler em entrevista dada em 1999, na qual afirma que:
Afro é todo o Brasil. Está dentro
da gente. Eu e Vinicius gostávamos.(…)
Os caras pensam que fizemos música para macumba, candomblé. Não tem nada
disso, não. É coisa de cultura.(…) Sou evangélico. Minha religião é Cristo. A
briga dos evangélicos é com o Candomblé mesmo, não com a música. Você pode
tocar o que quiser.(…) Não posso louvar, mas posso falar sobre o caso e tudo.
Está entendido? “Berimbau” e “Consolação” são afro-sambas, posso fazer. “Canto
de Iemanjá”, não, estaria contribuindo para uma coisa errada. A música, se existe,
ela existe, não tem problema. Posso tocar no violão, mas não é o caso. Não é
proibido, interditado, nada disso. Posso até falar muito bem, mas não louvo.
Independente do posicionamento
evangélico extremista de Baden, sobrevoamos os afro-sambas em busca de marcas
da herança africana naquelas composições, as encontramos bem fortes, tanto no
registro da década de 1960 quanto no da década de 1990, lembrando que, ainda
tenhamos esporádicas tentativas anteriores, de fato foi com esse álbum que se
deu a popularização do uso dos elementos da cultura e religião afro na canção
brasileira, e até hoje, ao ouvi-lo, os negros brasileiros saúdam uma
identificação ali presente, como podemos observar nesse interessante comentário
de Izaías de Oliveira no vídeo do disco de Baden no Youtube :
“Toda vez que escuto este disco
tenho a certeza que DEUS me fez negro por um motivo ser melhor! (sem ofensa
racista), Toda melodia deste maravilhoso disco foi baseado na cultura, etnia e
religião africana. Baden Powell usou de toda sua performance de excelente
violonista e musico para esta que uma obra de inspiração única!”
Encantados, nos despedimos dos afro-sambas,
destacando tantas questões por eles levantadas que foram e ainda não
importantes para se pensar a presença da cultura afro na música nacional e,
mais uma vez, convidamos os leitores a para compartilhar e comentar estes
discos sensacionais, bem como as questões por eles levantadas.
GIRON, Luis Antonio. Baden
Powell e a negação do candomblé.
POWELL, Baden. Os Afro Sambas
. Rio de Janeiro (Acesso
29 jul 2018)
BESOURO
Anêmico (blog). Os
Afro-sambas de Baden Powell (1990). 10 de agosto de 2015.
BISCOITO
fino. Os Afro
sambas de Baden Powell.
Os Afro-sambas
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figura da pomba-gira. In: Blog Loja Axé.
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SILVA, Isabela Martins de Morais.
É,não sou : Ensaios
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em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara.
Versão
recente melhora clássico de Baden. Folha de São Paulo. 29 fevereiro, 2008.
Disponível em : (Acesso 29 jul 2018).
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