sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

“Afro é todo o Brasil e está dentro da gente”: Os Afro sambas de Baden Powell (1990)


 “Afro é todo o Brasil e está dentro da gente”: Os Afro sambas de Baden Powell (1990)
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 16.10.2018)

Conforme havíamos lembrado no final do texto sobre os Afro-Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, de 1966, em 1990,  dez anos depois da morte de Vinicius em 1980, Baden Powell regravou as oito faixas do álbum original e acrescentando mais três músicas ainda inéditas, inaugurando uma outra fase na história do disco. Inicialmente a ideia da nova gravação surgiu do convite de um banco a Baden Powell, pois  gostaria de presentear seus clientes com uma peça original e então gravada com toda sorte de tecnologia já disponível, coisa que falta na primeira gravação do álbum tido como dos mais importantes da história da música brasileira. Dois anos depois o disco foi lançado na França e posteriormente no Brasil pela gravadora Bicoito Fino.  Nesta continuação do legado dos Afro-sambas, além do violonista Baden Powell participando como compositor, arranjador, diretor musical e vocalista, o disco também contou com os vocais do Quarteto em Cy,  um time de músicos reconhecidos como Ernesto Gonçalves no contrabaixo;Paulo Guimães na flauta; Sutinho na bateria, tamborim e agogô; Flávio Neves no afoxé; Alfredo Bessa no ganzá, cuíca atabaque, tamborim  e berimbau; Flavio Neves no atabaque, no banzá, no surdo  no berimbau.

O disco contém onze faixas, dez de autoria dividida entre Baden e Vinicius e uma canção que abre o trabalho, Abertura, apenas composta pelo violonista. Além das oito músicas já gravadas na primeira versão, agora dispostas em ordem diferente, a obra conta com as canções inéditas, a terceira faixa, Labareda, e Variações sobre Berimbau. Como já destacamos a herança afro do primeiro disco, aqui comentaremos brevemente uma ou outra alteração percebida na comparação entre as gravações originais e as novas, mas nos debruçaremos  sobre esta tríade de faixas inéditas, comentando mais detalhadamente suas ligações com o legado cultural afro.

As  regravações do primeiro álbum começam a partir da segunda faixa, com a canção sobre a peleja dos orixás contra a divindade das folhas no  Canto de Ossanha ,  na qual as cordas dos violão de Baden brilham na contestação “do homem que cai no canto de Ossanha traidor”, com o vocal de fundo do Quarteto em Cy. Na quarta faixa retomamos ao tema de Tristeza e Solidão de forma bastante melancólica e na quinta faixa, Canto de Pedra Preta, assim como na versão original, a entidade volta a ser louvada com uma marcação percussiva forte, remetendo ao Samba de Roda. Na sexta faixa retoma-se o sofrido  Canto de Xangô, com uma percussão bem marcada, mas unida ao som delicado das flautas  que combinam com o vocal do quarteto de vozes femininas que clamam ao orixá para, enfim, morrer de amar. Nas faixas seis e sete, Bocochê e Canto de Iemanjá, ouvimos com uma maior qualidade de gravação, os dois belos afro-sambas amplamente conhecidos. Na penúltima faixa do disco, Tempo de amor, destaca-se o ritmo mais acelerado da disputa entre o violão de Baden e a percussão fortemente marcada, que vem sempre pontuada pelo canto das Cys, no belo louvor contra o amor em paz. Mas a regravação que mais impressiona é mesmo a da última canção, o Lamento de Exu, que na versão original era uma peça instrumental, caracterizada como um lamento vocal, agora já  ressalta fortemente a percussão atuando junto ao violão de Baden, e mesmo continuando sem letra, a canção é pontuada com chamamento ao orixá iorubano Exu em suas diversas manifestações como Tiriri, Marabô, Lalu, e na sequencia o violão dá lugar a percussão, como se a divindade convocada já estivesse presente, ouvem-se palmas de louvor ao orixá mais conhecido e considerado como mais próximo do ser humano.

Sobre as três canções inéditas do álbum, a canção instrumental, Abertura, é o que poderíamos chamar de uma síntese sonora dos Afro-sambas, aquele samba mais nego sobre o qual falamos no texto sobre o primeiro disco, e não sendo nenhuma das cantigas conhecidas como Afro-Sambas, nos traz um um ambiente sonoro, legitimando os Afro como um estilo musical próprio. Nesse álbum tudo é muito melhor trabalhado, expondo aos nossos ouvidos a presença de outros instrumentos antes ocultados pelo protagonismo do sensacional violão de Baden. Na segunda música inédita, a terceira faixa Larareda, novamente um samba de roda tão utilizado em rituais religiosos afro-brasileiros,  surge uma figura feminina, remetendo a  entidade Pomba-Gira do mesmo nome que a canção e que, no afro samba,  é caracterizada assim:

Labareda
O teu nome é mulher
Quem te quer
Quer perder o coração
Rosa ardente
Bailarina da ilusão
Mata a gente
Mata de paixão

reforçando a educação sentimental de Vinicius de Moraes, na qual viver é amar e amar é sofrer. Como nos lembra o artigo de Ricardo de Paula, se nos terreiros, entre outras coisas, a figura da Pomba-Gira é a responsável por fornecer aconselhamentos de toda a ordem, mas especialmente nos assuntos afetivos, a presença desta canção no disco experimenta novamente a exposição do tema a partir do imaginário afro-religioso.

Na nona faixa do álbum, a inédita Variações sobre Berimbau, vamos encontrar uma ligação mais direta com a história do primeiro disco, quando nos deparamos com o resultado musical da influência sofrida por Baden Powell, depois de ouvir pela primeira vez na Bahia ainda na década de 1960, o som do instrumento de percussão chamado berimbau. Conforme nos conta o músico e pesquisador musical Carlos Sandroni,

O beribaum se tornou a principal referencia musical da capoeira, embora também fosse ‘usado pelos afro-brasileiros em suas festas e sobretudo no samba de roda, como até hoje ainda se vê, se bem que muito raro e como não deixa de alertar o historiador Mauricio de Barros Castro, em sua tese Rosa do mundo: Mestre João Grande: entre a Bahia e Nova York, o berimbau fazia parte da cultura baiana, tendo sido apropriado pela vadiação não apenas para cantar e tocar, mas também para avisar a chegada da polícia desde a época em que jogar capoeira era proibido, o que sublinha a importância desse som para a história do negro brasileiro. Ainda que já na década de 1950 o compositor baiano Oscar da Pena, O Batatinha, tivesse utilizado o repertório da capoeira em suas composições, foi mesmo com as canções de Baden e Vinicius da década seguinte que o tema ganhou notabilidade. Segundo depoimento do etnólogo baiano Waldeloir Rego sobre nosso compositor, em seu Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico :

Aproveitando sua estada na Bahia, tive a oportunidade de conhecê-lo e trocar ideias sobre a música popular brasileira no presente. Baden não perdeu um só instante,às voltas com o capoeirista Canjiquinha (Washington Bruno da Silva), de quem recolheu muitos toques de berimbau e suas respectivas cantigas .

Algumas dessas cantigas são entoadas por Baden na faixa nove do disco, como:

menino quem foi teu mestre?
Meu mestre foi Salomão
A ele eu devo dinheiro, saber e obrigação
Quando  o segredo de São Cosme quem sabe é São Damião
Ê ê Camará
Paranauê, paranauê Camará

ou assumindo a alusão ao mundo da capoeira: “Capoeira é pra valer/Joga bonito que eu quero aprender”.    Segundo a tese de Mauricio B. Castro citada acima,  embora pouco se fale disso, em meados do século XX a capoeira, “não apenas sua temática, mas também sua musicalidade e linguagem” foram absorvidas por uma geração de  compositores brasileiros. Musicalmente esta influência estava sintetizada no som do berimbau, que além da capoeira, também fazia referência  e nesse contexto que ela contribui na composição nos Afro-sambas pois,segundo Castro,em 1963, um ano antes do golpe militar, Baden Powell e Vinicius de Morais lançaram a primeira música de uma série de Afro-sambas,como ficariam conhecidas as canções da dupla que remetiam à cultura afro-brasileira. A música se chamava Berimbau, instrumento de capoeirista que Baden imitava ao violão.

Sobre os afro-sambas, é preciso lembrar um acontecimento posterior a sua última gravação , já perto de sua morte em 2000 Baden se converte ao  culto evangélico, este que costuma considerar como errados posicionamentos diferentes ao seu, e passa a repreendê-los  duramente,  o que o levou nosso compositor  a renegar alguns afro-sambas, como podemos ler em entrevista dada em 1999, na qual afirma que:

Afro é todo o Brasil. Está dentro da gente. Eu e Vinicius gostávamos.(…)  Os caras pensam que fizemos música para macumba, candomblé. Não tem nada disso, não. É coisa de cultura.(…) Sou evangélico. Minha religião é Cristo. A briga dos evangélicos é com o Candomblé mesmo, não com a música. Você pode tocar o que quiser.(…) Não posso louvar, mas posso falar sobre o caso e tudo. Está entendido? “Berimbau” e “Consolação” são afro-sambas, posso fazer. “Canto de Iemanjá”, não, estaria contribuindo para uma coisa errada. A música, se existe, ela existe, não tem problema. Posso tocar no violão, mas não é o caso. Não é proibido, interditado, nada disso. Posso até falar muito bem, mas não louvo.

Independente do posicionamento evangélico extremista de Baden, sobrevoamos os afro-sambas em busca de marcas da herança africana naquelas composições, as encontramos bem fortes, tanto no registro da década de 1960 quanto no da década de 1990, lembrando que, ainda tenhamos esporádicas tentativas anteriores, de fato foi com esse álbum que se deu a popularização do uso dos elementos da cultura e religião afro na canção brasileira, e até hoje, ao ouvi-lo, os negros brasileiros saúdam uma identificação ali presente, como podemos observar nesse interessante comentário de Izaías de Oliveira no vídeo do disco de Baden no Youtube :

“Toda vez que escuto este disco tenho a certeza que DEUS me fez negro por um motivo ser melhor! (sem ofensa racista), Toda melodia deste maravilhoso disco foi baseado na cultura, etnia e religião africana. Baden Powell usou de toda sua performance de excelente violonista e musico para esta que uma obra de inspiração única!”

Encantados, nos despedimos dos afro-sambas, destacando tantas questões por eles levantadas que foram e ainda não importantes para se pensar a presença da cultura afro na música nacional e, mais uma vez, convidamos os leitores a para compartilhar e comentar estes discos sensacionais, bem como as questões por eles levantadas.

Refências

POWELL, Baden. Os Afro Sambas . Rio de Janeiro (Acesso 29 jul 2018)
BESOURO Anêmico (blog). Os Afro-sambas de Baden Powell (1990). 10 de agosto de 2015.
Os Afro-sambas (1990).

Bibliografia

BARROS, Mariana Leal de. Labareda, teu nome é mulher: análise etnopsicológica do feminino à luz de pombagiras.392 f. Tese (Doutorado em Psicologia)- Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010
CASTRO, Mauricio Barros de. Rosa do mundo: Mestre João Grande: entre a Bahia e Nova Yourk. 2010. 277 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
PAULA, Ricardo de. A figura da pomba-gira. In: Blog Loja Axé.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
REGO, Vandeloir. Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico. Editora Itapuã, 1968
SANCHES, Pedro Alexandre. Evangélico, músico não diz mais “saravá”.In:  Folha de São Paulo, São Paulo 13 de julho de 1999.
SANDRONI, Carlos. ANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. In: Berenice Cavalcanti; Heloísa Starling; José Eisenberg. (Org.). Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. v. 1 Outras conversas sobre os jeitos dacanção. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 23-35.
SILVA, Isabela Martins de Morais. É,não sou : Ensaios sobre os afro-sambas no tempo e no espaço.2013. 290f.Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara.
Versão recente melhora clássico de Baden. Folha de São Paulo. 29 fevereiro, 2008. Disponível em : (Acesso 29 jul 2018).

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