2."Tecnomacumba:
15 anos de um canto de resistência contra a intolerância religiosa" - 19
de junho de 2018
Camila Rodrigues
(publicado originalmente em 19 de junho de 2018)
“A música é minha religião,
acredito que através dela aconteça a comunhão
sagrada entre as pessoas de todas as raças e
crenças na celebração da vida.”
Rita Ribeiro, encarte de Tecnomacumba, 2006
No ano de 2003 a cantora maranhense
Rita Ribeiro, que atualmente assina Rita Benneditto, começou a aglutinar
músicos, artistas e produtores no sentido de pensar em um projeto musical
mesclando sons eletrônicos, a
sonoridades da MPB e cantigas das religiões afro-brasileiras, num belo louvor à
multiplicidade da cultura e religiosidade brasileira. Somente em 2006 foi
lançado o seu Tecnomacumba, com quatorze faixas e esse é o seu quarto disco,
mas até hoje ainda é o mais conhecido disco de sua carreira. Como lemos na
matéria do portal O Imparcial, no ano de 2018 celebram-se os seus quinze anos, contatando que ele tornou Rita
conhecida no país e no exterior, sendo apresentado em um megafestival na cidade
de Dakar (Senegal, África). No Brasil, até hoje, continua fazendo sucesso e a
própria Rita comenta, no encarte, que o disco é como uma “grande gira”, que
começa chamando as várias divindades pertencentes aos panteões das religiões
afro brasileiras, logo na primeira faixa “Saudação/Abertura”. Como a introdução
desta canção tem forte inspiração no material oral extraído das festas de
terreiro, esta parte da letra não consta no encarte do disco, como se não fosse
a intenção de ali transcrever, traduzir ou explicar os múltiplos significados expressos e
recriados a cada entoação verbal. Mesmo nesse contexto de indefinições,
encontramos esta transcrição no site Vagalume:
Balorê êxu é Mojubá
Ogunhé Patacuri
Ogum é Orixá!
Kao Cabicile Xangô
Kao meu pai!
Okê Arô
Oxossi é Caçador!
Ewá Sossanha
Ewá sá
Arroboboia Oxumaré
Roboboia!
Atoto Ajuberô
Atoto Obaluaie!
É tempo, é tempo
sará tempo
Eparrei
Ora ieie o mamãe Oxum
Ora ieie o
Ô docyaba Yemanja
Ôdoia mamãe
Saluma Nanã Saluba!
Erê mim
Ibeji
Jurema
Adorei as almas
As almas adorei
Shiuépa babá Oxalá
Shiuépa!
A partir de então são entoadas adaptações de
Rita e de Jongui para algumas cantigas de Umbanda, louvando pomba giras como a
Cigana e qualidades de Exu como Meia
Noite e Tranca Rua, em uma espécie de iniciação aos “trabalhos” . Então, na
primeira parte do disco, cada faixa passa a abordar especificamente um orixá
masculino ou feminino.
Dentre os masculinos, o primeiro
homenageado é Ogum, através da canção Domingo 23, de Jorge Ben, que no encarte
é chamado Benjor, que trata do santo guerreiro São Jorge, cujo dia é 23 de
abril e que, em alguns lugares do Brasil é sincretizado com Ogum, o qual também
é um “cavaleiro, guerreiro, justiceiro, assim é Jorge, salve Jorge”. No arranjo
adaptado de Tecnomacuba, é introduzida uma cantiga para Ogum : “a Ogum ê/Ogum é
tata que malembê”, e que segundo o Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros , quer
dizer algo como “suplico ao pai Ogum”, mas que também pode significar “Ogum,
pai da misericórdia”. A próxima divindade homenageada, com a canção Cavaleiro
de Aruanda, de Tony Osnah, é Oxossi, que é
cantando como sendo “o filho do verde, o filho da mata, saravá nossa
senhora, a sua flecha mata”. Ao final, novamente, é introduzindo uma cantiga de
despedida da divindade em festa de terreiro:
”Galo
canto, tá chegando a hora.
Oxalá tá me chamando, caçador já
vai embora”
Para louvar Xangô o álbum
apresenta a belíssima canção de Gilberto Gil chamada Babá alapalá: “pai Xangô
Aganju vira egum babá alapalá, espírito elevado ao céu, machado astral
ancestral do metal do ferro natural do corpo embalsamado preservado em bálsamo
sagrado corpo eterno e nobre de um rei nagô: Xangô”, remetendo ao culto dos
Egunguns, que seriam os ancestrais masculinos, comandados por Zazi. No Brasil,
as divindades que antes eram cultuadas
em tradições diferentes em África, se mesclaram e com isso, em muitos casos,
Zazi foi relacionado diretamente a Xangô, ainda que, originalmente, tais divindades pertençam a panteões
diferentes, no imaginário brasileiro ainda existe uma relação entre elas. Outro
caso de sincretismo é o culto a Tempo, que na Umbanda e nas casas de Candomblé
corresponde a uma divindade, mais especificamente, um Orixá ligado à
ancestralidade e para reverenciá-lo, consta
no Tecnomacumba a canção Oração
ao Tempo, de Caetano Veloso:
Compositor de destinos, tambor de
todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo entro
num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Por seres tão inventivo e
pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo és um
dos deuses mais lindos
Lembrando sempre que, apesar do
nome, Tempo não é somente tempo, é também uma
corruptela de Kitembo, Kitempo, Ndembewa. Em algumas tradições
brasileiras Tempo é sincretizado a Irôko, porém lembramos, novamente, que essas
divindades vieram de cultos diferentes e
como, no disco de Rita, o Tempo destacado é o Orixá, para ele cita-se uma
cantiga que elenca diversos nomes dados à divindade: “Ê Tempo Macura Dilê. Ê
Tempo Macura Tatá. Da Muraxó é Macuriá”.
Adentrando o grupo de cantos
destinado às divindades femininas, temos a canção A Deusa dos Orixás, que
Toninho e Romildo compuseram a partir de uma cantiga de terreiro que conta
casos da mitologia de Iansã, e que ficou muito popular na gravação de uma das
cantoras que mais representou a tradição afro-brasileira, que foi Clara Nunes:
mas Yansã, cadê Ogum? foi pro mar
na terra dos orixás, o amor se
dividia
entre um deus que era de paz
e outro deus que combatia
como a luta só termina
quando existe um vencedor
Yansã virou rainha da coroa de
Xangô
Ainda sobre a divindade que é a
senhora dos ventos e das chuvas fortes, valente, forte e independente, ouvimos
uma canção que cita vários nomes de Iansã usados nos rituais afro-brasileiros:
“E damburê/ E damburê/Mavanjú/E damburê bela Oiá” e depois a canção Iansã, de
Caetano Veloso e Gilberto Gil :
Rainha dos raios, tempo bom,
tempo ruim
Eu sou o céu para as tuas
tempestades
Um céu partido ao meio no meio da
tarde
Eu sou um céu para as tuas
tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim, dentro de mim
Para Iemanjá, ouvimos a adaptação de um canto para ela :
“Eu tava na beira da praia/Vendo o balanço do mar/Quando vi uma linda sereia/Aí
eu comecei a cantar”, que introduz a canção Rainha do Mar, de Dorival Caymmi:
Minha sereia é rainha do mar
Minha sereia é rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar
Minha sereia é a moça bonita
Minha sereia é a moça bonita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Ai, tem dó de ver o meu penar
Ai, tem dó de ver o meu penar
Encerrando a homenagem às Iabás (Orixás
femininos), ouvimos o canto para a rainha das águas doces: “Moro mima iô/ abadô
Ia ye yeu ô/”, que segundo é transmitido pela tradição significa algo como
“senhora dona das águas sem sal, mãe do rio”, para então começarmos a ouvir a
canção É D’Oxum, de Gerônimo e Vevé
Calazans :
Nessa Cidade Todo Mundo É d’Oxum
Homem, Menino, Menina, Mulher
Toda Essa Gente Irradia Magia
Presente Na Água Doce
Presente n’água Salgada
E Toda Cidade Brilha
A partir da metade do álbum,
temos faixas tratando de tradições e modos de pensar das religiões
afro-brasileiras, como a lembrança dos tempos da escravidão em Coisa da antiga, de Wilson Moreira e Nei Lopes, também
difundida na voz de Clara Nunes:
“Hoje
o olhar de mamãe marejou só marejou
Quando se lembrou do velho, o meu
bisavô
Disse que ele foi escravo mas não
se entregou à escravidão
Sempre vivia fugindo e arrumando
confusão
Disse pra mim que essa história
do meu bisavô, negro fujão
Devia servir de exemplo a “esses
nego pai João”
Disse afinal que o que é de
verdade
Ninguém mais hoje liga
Isso é coisa da antiga
Na regravação do divertido samba
de coco Cocada, de Antonio Vieira, antigo sucesso da própria Rita Ribeiro, ela
é introduzida por uma cantiga para os
santos católicos Cosme e Damião, que nas representações, sempre estão
acompanhados de um menino vestido como eles, chamado Doum, sobre quem se
acredita ter sido uma criança salva por eles. Em alguns lugares, Cosme e Damião são sincretizados com outras
divindades cultuadas nas regiões afro-brasileiras, os irmãos Ibeji, que são
gêmeos crianças. Na faixa de Tenomacumba, o trio aparece brincando em meio aos orixás:
Cosme e Damião
Damião cadê Doum?
Doum tá passeando é no cavalo de
Ogum
Uma entidade cultuada na Umbanda
e que ganha uma faixa só para si, adaptada diretamente de uma cantiga de
terreiro, é Jurema:
ô Juremê, juremá
é uma cabocla de pena
filha de tupinambá
rainha das águas e areias
nunca atirou para errar.
Encerrando a “gira tecno” temos a
faixa Tambor de Crioula, de Junior e Oberdan Oliveira, sobre uma dança do Maranhão, terra de Rita, e
nesse momento começa a despedida,
sublinhando a miscigenação religiosa:
ô dá licença minha gente eu vou
m´embora
eu vou m´embora já está chegando
a hora
eu vou m´embora mas um dia eu
volto aqui
se deus quiser Jesus e Nossa
Senhora
Mas, se para irem embora, nas
giras, as entidades e orixás incorporados sobem da terra para alto porque
estariam sendo chamadas por Oxalá, então
é significativo que o disco termine mesmo com o Canto para Oxalá, em Iorubá , encerrando os
“trabalhos”.
Comemorar a permanência do
sucesso desse trabalho por mais de uma década, em uma época que já não valoriza
a longevidade das produções musicais, é
não apenas reconhecer a viva e forte
presença do imaginário e das práticas das religiões afro na canção popular
brasileira, através de faixas de compositores populares e também de grandes
nomes, mas é também necessário e até fundamental, porque pontua o disco como um grito de
resistência contra o preconceito e a intolerância religiosa que, infelizmente,
ainda é ativa no Brasil.
Referências
RIBEIRO, Rita (Benneditto) .
Tecnomacumba. Rio de Janeiro: Manaxica produções. Biscoito Fino distribuição, 2006. (CD).
Baba alapalá – Gilberto Gil
Coisa da Antiga – Clara
Nunes
Domingo 23- Jorge Ben
Egungun – Wikipédia
Iansã – Caetano Veloso e
Gilberto Gil
Iansã – Clara Nunes
Letra de
“Abertura” e “Saudação”- Vagalume
O
projeto Tecnomacumba – Rita Benneditto
Oração ao tempo – Caetano
Veloso
Rainha do Mar – Dorival
Caymmi
Tecnomacumba – Rita
Benneditto – Wikipédia
CACCIATORE,
Olga Gudolle. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. São Paulo: Ed. Forense
Universitária, 1977.
RIBEIRO,
Rita (Benneditto) . Tecnomacumba. Rio de Janeiro: Manaxica produções. Biscoito Fino distribuição, 2006. (CD).
RITA
BENNEDITTO CELEBRA 15 ANOS DE TECNOMACUMBA. In: O Imparcial.
Antonio
Vieira, Caetano Veloso, Candomblé, Clara Nunes, Dicionário de Cultos
Afro-brasileiros, Dorival Caymmi, Gerônimo, Gilberto Gil, Jongui, Jorge Benjor,
Junior, Nei Lopes, O Imparcial, Oberdan Oliveira, Rita Bennedittto, Rita
Ribeiro, Romildo, Tambor de Crioula, Tecnomacumba, Toninho, Tony Osnah, Umbanda,
Vevé Calazans, Wilson Moreira
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