sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Um samba mais negro : Os Afro Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1966)



Um samba mais negro : Os Afro Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1966)
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 5 de outubro de 2018)
“Tem sete cores sua cor
Sete dias para a gente amar”
(Canto de Xangô – Baden Powell e Vinicius de Moraes)

Ainda que já tenhamos abordado outros artistas na coluna História Cultural, é neste texto que trataremos daquele que é reconhecido oficialmente na história da canção brasileira como o álbum que introduziu a cultura negra na canção nacional, que é o disco ”Afro-Sambas”, do violonista Baden Powell e do poeta e diplomata  Vinicius de Moraes, primeiro gravado em 1966. Desde o início a ideia dos compositores  era a de gravarem um álbum conceitual, ou seja, que se propusesse a ser mais do que um simples  disco  musical, pois também abordaria, de forma bastante clara, pela sonoridade, o que  Isabela Silva (UNESP) chamou de questões “poético-políticas” importantes : o conteúdo conceitual dos Afro-Sambas versava sobre a  questão racial.

Mesmo que as historinhas sobre o nascimento deste álbum sejam marcadas por uma zona de penumbra, é o próprio Baden Powell quem, na entrevista para o programa Ensaio (TV Cultura), nos conta que seu encontro com Vinicius de Moraes se deu em meados da década de 1950, quando ele trabalhava como músico em uma boate  em Copacabana (RJ) e esta era frequentada por artistas como Vinicius de Moraes e seu então parceiro musical da Bossa Nova Tom Jobim, que estavam compondo para a  trilha sonora da peça teatral  Orfeu da Conceição (1954), escrita por Vinicius, o que faz desta peça um pano de fundo  para a própria ideia dos Afro Sambas.

Nesta peça, Vinicius transpõe a tragédia passional  grega de Orfeu à realidade das favelas cariocas. Segundo o blog Efemérides do éfemello, que apresenta algumas imagens de época, durante a exibição uma declaração de Vinicius era exposta ao público :

            Esta peça é, pois, uma homenagem do seu autor e    empresário, e de cada um dos      elementos que a          montaram, ao negro brasileiro, pelo muito que já     deu ao Brasil mesmo         dentro das condições mais     precárias de existência.– Vinicius de Moraes.”

Embora pouco conhecido atualmente, cabe lembrar que aquele espetáculo marcou a primeira vez que  todo o elenco de uma peça teatral, que era composto em sua totalidade de atores negros, pisava no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, causando reações encantadas mas também polêmicas por conta do racismo.  Vinicius parecia querer enfrentar a controvérsia usando a favor disso toda a visibilidade que seu nome de poeta e compositor lhe garantiam. Em 1959  a peça teatral, que Vinicius demorou doze anos para concluir, inspirou o francês Marcel Camus para escrever o roteiro de seu filme Orfeu Negro, que foi gravado no Brasil, contendo apenas atores negros e que depois ganhou uma série de prêmios como a Palma de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Em 2018, quando a questão da representatividade negra virou assunto capital pelo sucesso do filme de herói da Marvel, Pantera Negra, com seu elenco todo negro,  é interessante resgatar e problematizar a antiga película que conta a história de Orfeu nos morros cariocas .  Dizemos isso porque, ainda que estivesse ciente de que seu olhar para o negro residente no morro era externo, nos conta  Marina Malka, que  o próprio Vinicius, só assistiu ao filme de Camus quando ele estava pronto e o detestou por completo, alegando que o filme mostrava uma imagem estereotipada do brasileiro  como pobre alegre e alienado, o que não se encontraria em sua peça, ou seja, não bastava apresentar os negros, era preciso atentar para a forma como os representava. Trazemos tudo isso para começar a sublinhar o interesse de Vinicius na cultura negra e, consequentemente, em sua musicalidade.

Foi neste contexto que ocorreu a aproximação entre os parceiros musicais Vinicius e Baden, o que o instrumentista  explica  em um depoimento disponível no Youtube:

 (certa vez) nós conversamos sobre a Bahia, que eu também já conhecia e um pouco essa coisa de Candomblé, Vinicius também,  e eu por outro lado tinha mais acesso a isso porque eu era do subúrbio, Vinicius era diplomata e eu sabia dos negócios de Candomblé, essas coisas.

Conta-se que a dupla de músicos ficou internada no apartamento de Vinicius no Rio  por cerca de três meses até terminarem de compor as faixas que seriam gravadas de forma ainda muito rudimentar pelo Selo Forma, de Roberto Quatin resultando em uma sonoridade  cheia de ruídos para nossos ouvidos no seculo XXI.

O disco contém oito faixas em LP e por isso dividido em duas partes, ou lados, com quatro músicas cada um e embora não  possamos  recriar exatamente o impacto daquele álbum para um ouvinte na década de 1960,  na leitura do álbum  feita por Isabela  Silva (UNESP), considerar a  divisão dos dois lados pode nos ajudar a sintetizar e conceber uma opinião geral sobre o disco. Segundo ela o lado A nos apresentaria uma sonoridade muito ligada a referências e musicalidades mais baianas e o lado B mais cariocas.

O disco começa com “Canto de Ossanha”, sua faixa mais famosa, regravada por outros interpretes e bastante conhecida , sua letra  faz referência a lendas do orixá Ossanha,  que segundo a Mitologia dos Orixás, era  invejado por conhecer todos os segredos das folhas e que no samba  aparece como alguém cujo canto se deve temer :

Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha, traidor
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor

Na faixa seguinte, “Canto de Xangô”, ouvimos uma das mais fortes representações de negro na canção popular,aquele  que carrega em si uma rica ancestralidade:

Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou
Eu sou negro de cor
Mas tudo é só amor em mim

Também nesta canção somos introduzidos à ideia que vai sustentar as letras dos Afro-sambas em geral, a de que a vida é amar e  amar é sofrer :

Mas amar é sofrer
Mas amar é morrer de dor

Nas duas últimas canções do primeiro lado do LP entramos diretamente nas referências ao tema marítimo do cancioneiro de Dorival Caymmi, mais especialmente o desenvolvido em seu álbum Canções Praieiras (1954), no qual Caymmi revoluciona a forma de tocar violão pela influência sutil de formas refinadas da musicalidade popular como o jazz, aliada a canções inspiradas nas cantigas de trabalho dos pescadores baianos, que certamente influenciaram muito nosso violonista fluminense. Porém cabe lembrar que, apesar de reconhecido como grande músico popular brasileiro, Baden Powell estudou muito os compositores clássicos e esse tema era um dos que o uniu  a Vinicius de Moraes, conforme ele mesmo conta na sua entrevista para o programa Ensaio. Mas no que se refere ao repertório popular, um diálogo com o imaginário marítimo da Bahia de Caymmi nas Canções Praieiras se faz presente ali. No belo tema “Bocochê”, sofrendo de amor, uma moça busca reencontrar  seu perdido amado, nos braços da morte, no fundo do mar:

Menina bonita, pra onde é “qu’ocê” vai
Menina bonita, pra onde é “qu’ocê” vai
Vou procurar o meu lindo amor
No fundo do mar

Podendo responder diretamente à narrativa de tantas letras do disco Canções Praieiras (1954) de Caymmi, nas quais muitas vezes se narra o desaparecimento  de pescadores no fundo do mar. Na canção dos  Afro-sambas, além da letra, também a melodia nos leva ao fundo do mar quando entoa :

nhem nhem nhem
é a onda que vai
nhem nhem nhem
é a onda que vem,

remetendo ao vai e vem das ondas do mar. Como já estávamos no fundo do mar , a última canção do lado A é o belo  “Canto de Iemanjá”, um lamento de amor e morte:

Se você quiser amar
Se você quiser amor
Vem comigo a Salvador
Para ouvir lemanjá
A cantar, na maré que vai
E na maré que vem
Do fim, mais do fim, do mar/
Bem mais além
Do que o fim do mar
Bem mais além

Mas para além das influências baianas e considerando que todo samba tem em si uma raiz afro, é preciso destacar que o som que Baden estava instituindo ali era um tipo que ele chamou de “afro-brasileiros” e que, em depoimento disponível no Youtube,  assumiu ter sido ele  quem começou  a criar, numa interpretação de fora a respeito da cultura do negro:

fui até eu que dei uma levantada no tipo de samba, porque tem um samba mais escuro, mais negro, que tem raízes mais negras. Tem um tipo de samba que é assim, é um samba lamento, esse samba é que tem as raízes mais próximas ao afro.

E reforçando que estava falando de negros brasileiros, conclui com uma referência a História do Brasil ao afirmar que o afro samba é um lamento especial devido ao estilo do cântico, que vem dos cantos gregorianos, que quem trouxe para o Brasil foi os Jesuítas, quando vieram catequizar os índios aqui. Tudo isso tem uma ligação.

Musicalmente, além de Caymmi, os compositores dos Afro-Sambas também foram diretamente afetados pelo LP  Sambas de Roda e Candomblés da Bahia (196?), que hoje está disponível na íntegra no Youtube, e que na época Vinicius havia ganho de um amigo baiano  e mostrou a Baden, encantando- o com a beleza da sonoridade daquele som tão próximo ao que se ouve em rituais e festas do Candomblé e também da Umbanda.

Como já apontamos, nas faixas do lado B vemos aparecer mais referências  ligadas ao cenário afro-brasileiro do Rio de Janeiro. Na primeira faixa temos uma das mais sofridas canções do álbum, “Tempo de amor”, onde ressurge a ideia de que amar é sofrer, que perpassa todo o álbum, e aqui ressurge com toda força:

Ah, bem melhor seria
Poder viver em paz
Sem ter que sofrer
Sem ter que chorar
Sem ter que querer
Sem ter que se dar
Mas tem que sofrer
Mas tem que chorar
Mas tem que querer
Pra poder amar
Ah, mundo enganador
Paz não quer mais dizer amor

Para o professor de literatura José Miguel Wisnik (USP), na década de 1960 o então poeta de livro Vinicius de Moraes devassou a fronteira entre a poesia escrita e a cantada, gerando gerações de poetas letrista.  Nós lembramos que este compositor também inaugurou uma espécie de educação sentimental que aposta na vida como uma experiência de amor e paixão, com suas alegrias e sofrimentos, o que é uma característica das composições populares de Vinicius de Moraes e certamente conversava bastante com o ideário poético de autores como o  poeta chileno Pablo Neruda, que era seu amigo.

A segunda música do lado B, “Canto do Caboclo Pedra Preta” traz à tona uma experiência que teria sido recolhida num terreiro carioca, cujo pai de santo era o polêmico Joãozinho da Goméia, sendo o Pedra Preta a entidade que este incorporava. Segundo a leitura de Isabela Silva (UNESP),

A canção começa com a voz de Vinicius de Moraes cantando solo “Olô Pandeiro”, e então ouvimos o soar dos atabaques, e então “Olô Viola”, quando ouvimos o dedilhar do violão de Baden, numa relação direta entre a evocação do instrumento percussivo e som do atabaque, e do instrumento de cordas, e o violão de Baden,

remetendo a todo um imaginário musical popular brasileiro. Segundo levantamento do IPHAN lembrado por Silva, o samba de roda e também  a viola são muito utilizados nos cultos aos caboclos de todo o Brasil. Na terceira faixa deste lado, “Tristeza e Solidão” canta-se:

Sou da linha de umbanda
Vou  no babalaô
Para pedir pra ela voltar pra mim
Porque assim eu sei que vou morrer de dor,

retomamos à temática do viver é sofrer por amor, mas dessa vez citando a “linha de Umbanda”, que pode ser a própria  religião afro brasileira  ou mesmo o Candomblé nação Angola, que também cultua entidades como os caboclos.

Por último temos o belo e triste “Lamento de Exu”, uma peça instrumental, pontuada por lamentações vocálicas, abrindo os caminhos de saída deste  álbum,  que desde o início procurou desvendar as sete cores contidas na pele negra, o que na década de 1960 era, e ainda é, uma questão política séria a ser abordada.

Porque este disco é tão importante,  lembramos que na década de 1990 Baden Powell regravou a obra, iniciando uma nova fase para o projeto e sobre isso trataremos em um próximo texto. Por hora deixamos o convite para você compartilhar e comentar este post sobre um disco tão sensacional como é este.

Refências

Filme, discos e vídeos

CAYMMI, Dorival. Canções praieiras Odeon, 1954.
Orfeu (Filme) Direção: Marcel Camus. Produção Sacha Gordine. França, Itália e Espanha , 1959.
Bibliografia

MÁXIMO, João. A reinvenção de dois mestres do Afro samba. Rio de Janeiro, O Globo, 07 out, 2016.
NERUDA, Pablo. Cem sonetos de amor. Trad. Carlos Nejar – Porto Alegre (RS) : L & PM, 2007.
OS AFRO-SAMBAS DE BADEN E VINÍCIUS. Revista Piauí, 18 de mar 2015. 
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SÁ, Elvis de. Muito além da representatividade, Pantera Negra é histórico. SILVA, Isabela Martins de Morais. É,não sou : Ensaios sobre os afro-sambas no tempo e no espaço.2013. 290f.Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara.
TORRES, Roberto. Sambas de Roda e Candomblés da Bahia – O disco que inspirou os Afro Sambas em Baden e Vinicius. In Jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, em 06/12/2003.
WISNIK, José Miguel. A Gaia ciência – Literatura e música popular no Brasil. In: MATOS, C. N.; MEDEIROS,F.T e TRAVASSOS, E. (org). Ao Encontro da palavra Cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.


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