O simbolismo afro-brasileiro no cancioneiro de Jorge Bem
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 14/maio/2018)
Em 1963 o lançamento de Samba Esquema novo, primeiro disco de
Jorge Ben, inaugurou a carreira deste que, até hoje, é um dos mais consolidados
músicos negros do Brasil. Logo em sua primeira canção, Mas que nada, Ben
mostrou seu estilo até então sem precedentes na canção nacional em uma mistura
de samba, bossa nova e jazz e uma maneira peculiar de tocar violão onde se
destaca o suingue. Em declaração que relembra sua primeira audição da canção, o
crítico musical Tárik de Souza surpreendeu-se com a singularidade daquele som,
inclusive supondo que nem mesmo o próprio Ben soubesse de onde teria vindo
tanta originalidade. Adiante, Tárik sugere que os caminhos para desvendar
aquele enigma musical já estava indicado em pormenores na letra:
Esse samba
Que é misto de
maracatu
É samba de Preto
Velho
Samba de preto tu
Sendo, então, a trilha que passa
pela cultura e musicalidade popular do maracatu e do imaginário de matriz
africana e associados ao período da escravidão, como a figura da ancestralidade
representada pela entidade de umbanda Preto Velho e na figura do negro rebelde,
o Preto Tu, remetendo aos pretos
bantos, que seriam, para Souza, a origem da música afro-brasileira. Vamos procurar no conjunto de canções de
Jorge Ben, o seu cancioneiro, exemplos que nos contam muita coisa sobre o
negro no Brasil e suas relações com as heranças trazidas da África e que aqui
foram rearticuladas.
No cancioneiro de Jorge Ben são
cantados personagens da história dos negros, e que ali aparecem como heróis e
heroínas bravos, simbolizando virtudes e posicionamentos capazes de inspirar seus descendentes a adotarem uma
atitude positiva diante da vida. O herói
mais notável cantado por Ben é Zumbi dos Palmares, tema central da canção
Zumbi, do disco Taboa de Esmeralda (1972) e que foi regravada com o título África Brasil (Zumbi), no álbum África Brasil (1976). Nesta canção Ben
sintetiza séculos da história da vinda dos negros para serem escravizados na
América, começando por relembrar os locais de onde eles teriam vindo:
Angola Congo Benguela
Monjolo Cabinda Mina
Quiloa Rebolo
E que, na música, seriam os
locais de onde vieram os homens a serem vendidos num “grande leilão” e dentre
os tais estaria até uma princesa com seus súditos. A partir daí, vemos pequenas
cenas da escravidão e, ao final, este processo é enfim interrompido pela
incitação do retorno da figura histórica salvadora Zumbi:
o senhor das guerras
senhor das demandas
quando Zumbi chega
É Zumbi quem manda
Nesta imagem de Zumbi ele aparece
como um ser mitológico que teria comandado e protegido os ancestrais cativos
dos negros e cuja figura pode ser evocada através de encantamentos, já que é
senhor das demandas e um dos significados atribuído à essa palavra no
vocabulário das religiões afro-brasileiras, é justamente ritual de feitiço.
Outra personagem cantada heroicamente por Ben é a Xica da Silva, com canção que
leva o seu nome e foi composta para a trilha sonora do filme homônimo de Carlos
Diegues, de 1976. Na letra desta música, que pontua frequentemente Xica como “a
negra”, é reinterada a ideia da bravura mítica do afrodescendente, com a
peculiaridade de que aqui temos não um herói, mas sim uma heroína, que atingiu
esse papel por ter quebrado a manutenção da hierarquia social em pleno período
colonial, pois passou
De escrava a amante, mulher,
mulher
Do fidalgo tratador João
Fernandes
e com isso tornou-se
muito rica e invejada.
Na dissertação de mestrado Eu quero ver quando Zumbi Chegar: negritude,
política e relações raciais na obra de Jorge Ben 1963-1976 (UFF 2014), o
historiador Alexandre Reis dos Santos comenta que ao retratar o universo
afro-brasileiro nas décadas de 1960 e 1970, época em quem as políticas raciais
ganhavam destaque no país e as religiões que cultuavam orixás como o Candomblé
(símbolo de resistência cultural negra)
e a Umbanda (rearticulação tradição dos orixás com tradições indígenas,
espiritismo e catolicismo) passavam a fazer parte do imaginário daquela
sociedade. Naquele contexto o compositor Jorge Ben não apenas se reconheceu
filho da miscigenação racial, mas principalmente escolhe se assumir negro e
reverenciar os afro-brasileiros em suas composições, sublinhando que, apesar da
realidade opressiva em que vivem até hoje, eles não se colocam como vítimas da
sua biografia e seguem lutando heroicamente pela vida.
No festival de música
Lollapalooza Brasil 2018, a consagrada banda de rock estadunidense Red Hot
Chili Peppers prestou uma homenagem ao Jorge Ben, tocando e cantando em
português “Menina mulher da pele preta”, canção gravada no álbum Taboa de
Esmeralda (1974). Nesta canção destaca-se outro tema importante daquele
cancioneiro, o que aborda a formosura miscigenada da mulher afro-brasileira que
desperta desejo. Em um país como o Brasil das décadas de 1960 e 1970 não era
comum que canções destacassem abertamente a beleza da negritude feminina, mas
Jorge Ben inovou também nisso, compondo verdadeiros hinos nesse sentido como Que nega é essa?, gravado no álbum Ben
(1972), na qual assume que a mulher com a qual quer se casar é negra, “Prendada
e caprichosa” e para ela promete que
Eternamente essa nega faceira,
dengosa,dondoca e beijoqueira
Há de ser minha companheira e
minha mulher.
Em Criola (1969), ele nos apresenta “uma fiel representante
brasileira”, que por ser negra é “colorida por natureza” e cuja história é
bastante semelhante à da sua mãe:
Filha
de nobres africanos
Que pelo descuido geográfico
Nasceu do Brasil, num dia de
carnaval
Ao contrário do que chegou a
supor Tárik de Souza no texto comentado acima, Jorge Ben sabia muito bem de que
referências poderiam ter originado a originalidade da sua música, tanto que em
entrevista ao programa de TV “Roda Viva” em 18 de dezembro de 1995 chegou a
falar sobre sua ancestralidade e contou que foi através de sua mãe, ainda
criança, que teve acesso à cultura de seu avô africano e ouviu muita música etíope,
batuques e línguas desconhecidas para ele e que no final foram se misturando.
Certamente essas memórias tão antigas acabaram compondo uma espécie de base sua
trajetória musical.
Como nos conta Paulo da Costa e
Silva em seu livro sobre o disco A Tábua de Esmeralda, Jorge Ben é católico e até chegou a estudar
no Seminário de padres na juventude, e essa informação é importante porque se
encontram em seu cancioneiro várias referências ao catolicismo, porém percebemos
que frequentemente esses marcos simbólicos católicos aparecem permeados pelos
princípios africanos, daí se aproximarem
tanto das religiões afro-brasileiras. Um exemplo disso é a canção que compôs ao
seu santo de devoção, a chamada Jorge de Capadócia, gravada no álbum Solta o
Pavão (1975), que na verdade é a oração a São Jorge musicada, pedindo que o
santo torne o corpo intocável, daí esta reza ser popularmente utilizada nos
rituais de “fechamento de corpo”. No show acústico MTV, gravado em 2002 Jorge,
já conhecido como Jorge Ben Jor, assume claramente a relação direta entre São
Jorge guerreiro e o orixá Ogum, quando
introduz na canção o seguinte refrão : “Ogã toca pra Ogum”, como que pedindo ao
tocador de tambor dos rituais religiosos afro-brasileiros (Ogã) que toque em
reverência a Ogum para efetivamente
fechar o seu corpo, evidenciando a força do simbolismo afro brasileiro no
cancioneiro de Jorge Ben.
2.
Zumbi (1972)
APÊNDICE :Quando a Etiópia estava sendo invadida na primeira Guerra Ítalo-Etíope (em italiano: Guerra di Abissinia ou Campagna d'Africa Orientale) corresponde à invasão italiana da Etiópia ocorrida entre os anos 1895 e 1896 no séc. XIX, seu avô materno Sr. Ben Jorge (sim, era esse o nome dele kkk) saiu refugiado do Mediterrâneo num navio que por um
descuido geográfico atracou para nossa alegria aqui no Brasil. Não tenho informação sobre a vó do Benjor, mas que "D. Silvia Saint Ben Lima" nasceu na fronteira Rio-São Paulo, conheceu o Sr. Augusto Menezes (estivador, Carioca, porém descendente de austríacos) e tiveram um lindo filho que puseram o nome de Jorge, já que na sua gravidez D. Sílvia havia levado uma queda, e temendo deformidades ao feto fez uma promessa à S. Jorge que se o menino nascesse Ben
colocaria seu nome como homenagem...
Conhecida como Sílvia Lenheira, pois mesmo com o grande sucesso do Benjor ela sempre levou uma vida simples em Madureira-RJ e gostava de apanhar galhos para cozinhar num fogão à lenha, (daí o apelido) isso numa casa cor-de-rosa com chão vermelho, teto branco e na janela muitas rosas, além de um cachorro de guarda vira-latas que vivia
latindo no quintal onde havia tbm uma rede num pé de jaca...
(Nascimento Silva, do canal Benjor Cifrado, no Youtube)
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