domingo, 25 de fevereiro de 2024

Mil Tsurus de Yasunari Kawabata: o livro de fevereiro

 

capa linda Estação Liberdade, 2017

Quando me despedi desse livro incrível

Escrito entre 1945 e 1952 o romance Senbazuru, do autor japonês Yasunari Kawabata foi publicado no Brasil pela Nova Fronteira como Nuvens de Pássaros Brancos, em 1956, tradução da versão em inglês de Paulo Hecker Filho. E em Portugal foi publicado como Chá e Amor, publicado pela Nova Vega, mas a versão mais importante é Mil Tsurus, pela Estação Liberdade, tradução direto do japonês de Drik Sada , 2017.

Senbazuru: mil origamis de tzurus 

Ainda que o título original, Senbazuru, seja um símbolo, uma imagem de vários origamis de tsurus, e todas as nomeações possam valer, "Mil Tsurus" me parece a mais fiel a intenção. Tsuru é uma ave branca que é sagrada no Japão, e lá representa saúde, da boa sorte, felicidade, longevidade, fortuna e lealdade. 

tsurus

Posto isso, Kawabata escreve um romance chamado "Mil tsurus" na década de 1950,  problematizando o abandono das tradições e a modernização do Japão na era pós derrota na segunda Guerra Mundial. Nessa narrativa evoca-se e problematiza-se a  lenda do amor longínquo e fiel representado pelo tsuru,  contando a história do protagonista Kikuji, um jovem moderno que deseja cortar relações com a cultura tradicional japonesa, porém foi muito bem educado nela e não sabe como recusar o convite para comparecer à tradicional cerimônia do chá feito por uma das ex amantes de seu falecido pai enquanto ele ainda era casado com sua mãe. Kikuji, que está na idade de casar, sabe que o convite de Chikako Kurimoto,  é também cerimonialista e professora, mas fez o convite para  apresentá-lo a uma pretendente, uma de suas alunas nos ritos do cerimonial do chá, a bela Yukiko Inamura, que também demonstrando interesse nas bodas, comparece usando um lenço estampados de tsurus em um fundo cor de rosa, profanando o ritual. A outra ex amante, a viúva Ota, muito saudosa de seu pai, teve com ele uma relação mais longa e por isso, acaba "deitando-se"  com Kikuji como se estivesse novamente com o falecido. Muitas coisas acontecem e nosso protagonista também acaba se envolvendo com Fumiko, a filha da viúva Ota, que também é conscienciosa dos significados das tradições, mas não deseja mais render-se a elas. Esse é o enredo do livro, muito ligado ao tempo em que foi escrito, em um Japão pós guerra. 


Mas, em se tratando de Kawabata, o que mais me encanta é o modo como ele escreve, uma escrita que chamam de impressionista, muitas vezes contemplativa das belezas da natureza ou das mulheres, usando sinestesia (apelo aos sentidos para descrever melhor)e fica muito lindo. Me lembra muito a escrita de Rosa, que também escreveu nessa mesma época (a partir dos anos 1950) e problematizou o embate entre tradição e modernidade, e talvez pela consciência de que muitas coisas da tradição ou da natureza estavam mudando e talvez só fiquem mesmo nas descrições literárias. 

Eu amo Kawabata. Vamos ver algumas publicações durante a leitura:

Primeiro um trecho longo e lindíssimo, no qual o jovem protagonista  deita-se (termo da tradução ) com a saudosa amante de seu falecido pai, que logo se dá conta que deitou-se com ele como se estivesse deitando com o pai:


"Se não estava enganado, a viúva Ota tinha cerca de 45 anos, vinte a mais que ele, Kikuji. Contudo, ela o fazia esquecer a diferença de idade. Sentia-se como se tivesse se deitado com uma mulher mais jovem.

Seria correto dizer que fira a experiência dela que o levou ao clímax, mas, em nenhum momento, ele se sentirá desvalorizado por ser um homem solteiro e menos vivido.

Da mesma forma que presenciava pela primeira vez o prazer feminino, redescobria o próprio. Surpreendeu-se com o despertar do homem que havia nele. Nunca tinha imaginado que uma mulher pudesse ser tão suave e receptiva. Uma submissão sedutora, uma obediência sem deixar de instigar, uma receptividade que o sufoca em cálido aroma.

Para um solteiro como ele, os momentos que sucediam o ato sexual rendiam a ser aborrecerores. Na maioria das vezes, Kikuji era tomado pela vontade ríspida de afastar a parceira de junto dele. Daquela vez, contudo, sentia um doce aconchego. Pela primeira vez em sua vida, apreciava ter uma mulher aninhada em seu peito, sem dizer palavra alguma. Ele não ao sabia que o prazer de uma mulher podia ser assim incessante, como a suave ondulação das águas do oceano. Descansando o corpo no vai e vem daquelas ondas, Kikuji sentia uma situação semelhante a de um dominador, cujos pés são lavados por seu escravo.

Por outro lado, havia também certo aconchego maternal." 

(KAWABATA, Yasumari. Mil Tsurus. Trad. Drik Sada 3a. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2017, p. 41/2)

É muito bem escrito... Sou apaixonada. Adoro Kawabata pq é bonito e porque é sempre estranho, culturas diferentes. E também amo porque ele está sempre dialogando com grandes temas e símbolos...alta literatura que fala, né?

Comecei a ler no desespero 

 
Quando lembrei de que estava diante de alta literatura


A última capa com trecho lindo


Sobre o final ;



O marcante começo do livro 

TSURUS e os inícios de livros  :Adoro livros que já começam  de forma marcante, como o Dona Flor e seus dois maridos do Jorge Amado, que começa : "Vadinho o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de carnaval, pela manhã,quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco,na maior animação...", em breve saberemos ser Vadinho, tão bem sintetizado na cena de sua morte, o melhor personagem do livro (para mim um dos mais bem construídos de Jorge).Ou como o inesquecível  "Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja." de Grande Sertão: Veredas. Também o curtíssimo l primeiro parágrafo de "Mil Tsurus" dá o tom descompromissado  do  protagonista Kikuri:"Mesmo já estando dentro do pátio do templo Engakuji, em Ksmakura, Kikuji ainda tinha dúvida se deveria ou não comparecer aquela cerimônia do chá. Atrasado ele já estava." (P. 13)

Sobre Guimarães Rosa e Kawabata 

GUIMARÃES ROSA E KAWABATA: Tem muitos motivos pra eu gostar do Kawabata,mas o mais forte, que veio à tona após ler Mil Tsurus, foi algumas semelhanças com Guimarães Rosa. Apesar de diferentes em quase tudo (países, língua, etc ), ambos escrevem depois da segunda guerra, a partir dos anos 1950 e tratam de mudanças culturais. No caso de Rosa o tema é a modernização do sertão, no caso de Kawabata é a ocidentalização do Japão. Talvez por se voltarem a tradições e eventos que estão se extinguindo, são tão descritivos, Rosa  descreve a vegetação do sertão mineiro que viraram eucaliptais, e Kawabata as diferentes cerâmicas  seculares, restando  mofadas nas casas. 
Da minha pesquisa sobre Rosa, achei muitas referências ao oriente, mas não ao Japão. Mais, muito mais, sobre a milenar cultura chinesa... No entanto essas semelhanças que percebo com o novel de literatura japonês, se forem reais,  eu atribuo ao tal espírito do tempo dos autores nas décadas de 1950/1960...


Amei amei e estou louca por mais um Kawabata! 

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