Adriana Partimpim voltou a gravar um CD (oba!) e agora, ao contrário do que aconteceu no PARTIMPIM DOIS, ela não cresceu, mas diminuiu ! Aqui vai o release do trabalho, que eu baixei do seu
site: divirtam-se:
Um, dois, tlês e...
Por Leonardo Lichote.
Partimpim
mostra a mão, três dedos para cima, polegar e indicador juntos fazendo um
círculo. É o sinal de ok. É o três. É seu terceiro disco. Na língua de criança
que ainda não domina os erres e eles do mundo adulto – e assim os
reinventa, provocadora -, ela diz “Tlês”.
“Tlês”,
dito assim, é fala de gente muito pequena. Partimpim vem da densidade
(infantil, mas densa) de “Dois” - com seu “Alexandre”, seu “Trenzinho do
caipira” –, um claro amadurecimento da menina esperta que aparecera no disco de
estreia, em 2004. Estaria Partimpim agora, portanto, regredindo, desamadurecendo? Nada. Sua lógica é
outra, seu espaço-tempo tem regras próprias. Adriana Calcanhotto, alter-ego
mais comportado de Partimpim, é quem dá o diagnóstico certeiro:
- Ela
encolheu.
Isso. Como
Alice, como a carruagem que virou abóbora depois da meia-noite, como um
príncipe enfeitiçado por bruxa, como a molecada de “Querida, encolhi as
crianças”. Partimpim agora canta canções em tom menor – licença ao maestro, a
conversa não é de teoria musical, ou seja, tom menor aqui é menor de encolhido.
Tão encolhido que a Partimpim de “Tlês” mede poucos centímetros, como aparece
na foto da capa do CD, em sua encarnação atual, como boneca.
Menor, mas
sem tatibitate. “Tlês” carrega a mesma sofisticação musical e poética de seus
antecessores. Na superfície de suas 11 faixas, um apelo direto aos pequenos,
sensorial, em seus arranjos lúdicos. Descendo uma camada, uma palavra estranha
aqui ou um timbre inesperado ali acendem a luz de alerta nos ouvintes, aguçam a
curiosidade, o comichão de entender o porquê daquele som, daquele verso (“Por
que os peixes falam francês, não alemão?” é apenas uma das charadas do CD).
Indo mais fundo, os mais velhos perceberão o diálogo sagaz entre as versões de
Partimpim e as originais de Chico Buarque ou Jorge Ben Jor ou Dorival Caymmi. E
assim, camada a camada, se penetra até chegar a leves reflexões filosóficas
para todas as idades – sobre a vida, sobre a infância e sobre a música brasileira,
sua tradição e como Partimpim, brincando, entra aí.
“Filosófica”,
“tradição”, “sofisticação”, “diálogo”... Melhor dar o play. Na primeira vez,
por favor, sem o shuffle, porque mesmo a anárquica Partimpim sabe que, nas
horas certas e em certas horas, alguma ordem faz bem.
***
Antes,
porém, uma pausa para que se entenda como as coisas foram dar no “Tlês”:
Calcanhotto
estava em turnê com o show de “Micróbio do samba”. Em julho, Domenico
Lancellotti, baterista da banda, tirou uma licença, e a artista, longe dos
palcos, resolveu entrar em estúdio com algumas ideias que há um tempo já
circulavam em sua cabeça para o novo CD de Partimpim. Em outubro de 2011, o
nome “Tlês” já se anunciara a ela. Havia canções que Calcanhotto pensava para
Partimpim desde o primeiro CD, como “Taj Mahal”, “De onde vem o baião”,
“Acalanto”. Outras novas surgiram - como “Salada russa”, letra que Paula Toller
deu a ela numa noite, ela musicou na manhã seguinte e gravou de tarde (“É a
primeira vez que fiz algo assim, nem sabia que isso existia”, brinca).
- O disco
acabou ficando num equilíbrio entre, de um lado, um universo fantasioso, de
histórias para dormir, canções de ninar, e do outro lado essas músicas que
queria trazer para a Partimpim, esses ready-mades, músicas que têm apelo para
crianças mas que hoje estão em outros contextos – diz, trazendo para perto o
conceito de Marcel Duchamp e sugerindo chaves para se entrar na cabeça de
Partimpim.
Uma das
ideias iniciais era fazer o disco com poucos elementos. Mas, com os músicos
soltos livremente no estúdio Monoaural, não demorou muito para que as regras
fossem diluídas:
- Num
primeiro momento, pensei numa coisa pouca, três guitarras e só. Mas não
adianta, quando você junta os músicos, sai do controle. O Alberto (Continentino, baixista do “Micróbio”) já
foi para o mais grave, pegou a guitarra barítono. Os músicos amigos começaram a
querer tocar, Kassin, Berna... O Rodrigo
(Amarante) que ia tocar numa faixa acabou voltando em várias. Então vi que
não tinha porque parar isso e me prender na ideia de três guitarras. A primeira
canção que se gravou foi “Taj Mahal”, que começou nesse espírito mais vazio,
mas virou outra coisa.
Além dos citados Alberto, Kassin, Berna e
Amarante, o núcleo musical do disco inclui Domenico, Moreno Veloso, Pedro Sá e
Davi Moraes. Ao lado dos convencionais baixo, piano e guitarra (que muitas
vezes soam nada convencionais), eles seguem a onda brincadeira-experimentalismo
de Partimpim. Basta ler a ficha técnica: estão listados lá instrumentos como
“moeda no captador de guitarra”, “onça”, “parede e coxa”, “desentupidor de pia
no prato com água”. Sem contar os sintetizadores mil.
Barulhos
inclassificáveis à parte, esse é talvez o disco em que Partimpim mais se
aproxima de uma sonoridade do pop contemporâneo. Partimpindie.
***
Agora sim,
o play. Na ordem.
“Salada
russa”, a parceria com Paula Toller, abre o CD com uma lista de coisas que tem
o nome “geograficamente errado” (“O queijo de Parma vem de Minas/ A vagem
francesa de Campinas”). Quando o adulto pensa que pegou a lógica, ela conclui
com uma rasteira: “Cachorro quente de Cabo Frio”.
“Taj
Mahal” evoca no sintetizador com timbres retrô um passado futurista que nos
lança nas mil e uma noites de Ben Jor. A mais linda história de amor que o
compositor anuncia que vai contar nunca é contada, se desfaz em
“tetê-teteretê”. Cada um cria a sua narrativa, portanto, “a gente mesmo faz”,
como o Parangolé Pamplona (“É o Parangolé Mahal”, brinca Calcanhotto).
Curiosidade: em vez de “tetê-teteretê”, Partimpim canta “dedê-dederedê”.
- Ouvi uma
gravação de Ben Jor assim no YouTube, no “Acústico” da MTV. Achei que “dê” era
mais “Tlês”, mais macio, que “tê” – explica Calcanhotto.
“Lindo lago do amor”, de Gonzaguinha, é a
primeira das muitas canções com bichos do disco, introduzindo uma atmosfera de
fábula que atravessa o álbum. Timbres aquáticos mágicos – ouça e entenda. É uma
das que Calcanhotto imaginava para Partimpim desde sempre.
“O pato”,
de Jayme Silva e Neusa Teixeira, tornado clássico em gravações como a de João
Gilberto, traz Adriana fazendo a voz de pato com o auxílio do pistom cretino,
instrumento criado por Walter Smetak - músico, escultor, mago inventor de
instrumentos musicais personalíssimos, mestre de tropicalistas como Tom Zé e
Gilberto Gil. A faixa tem um caráter quase didático.
- Aquele
“quen quen, quen quen” (canta,
reproduzindo a o balanço sincopado dos grasnados), se você entende isso
você entende o que é o samba ‑ diz Calcanhotto.
“Criança
crionça”, de Cid Campos e Augusto de Campos, é introduzida pelo ronco de uma
onça (espécie de cuíca bem mais grave) tocada por Domenico. Em torno da onça (o
instrumento), constrói-se o arranjo sertanejo-erudito-experimental (com viola
caipira, violoncelo e guitarras). E contrói-se também a história da onça (o
bicho) que desonça ao dançar certa dança e dispensa sua comilança, para
descanso dos outros bichos da floresta. É uma delícia de ouvir o desfiar da
trama repleta de anças, ensas e, claro, onças. É a terceira vez
que Partimpim bebe em Cid e Augusto (no CD de estreia, havia “Canção da falsa
tartaruga”, e no “Dois”, “Alface”).
“Por que
os peixes falam francês?”, de Alberto Continentino e Domenico, trafega na mesma
seara mágica-aquática de “Lindo lago do amor”, mas de forma mais etérea, com
sintetizadores flutuantes, cantos de baleia e desentupidores. A canção faz
parte da trilha da peça “O menino que vendia palavras”, na qual aparece em
outra gravação, também com Partimpim.
Em
“Passaredo”, de Francis Hime e Chico Buarque, Partimpim lista os pássaros da
floresta como se estivesse cumprimentando-os, saltitando pela floresta ao ritmo
da guitarra marcada e das flautas. O mesmo espírito leve atravessa o refrão (“O
homem vem aí”), que não traz a tensão alarmista da gravação original.
- Talvez
tenha pensado que esse “o homem vem aí” mais tenso era algo datado,
pré-ecologia como a entendemos hoje – explica a artista. – E quis botar flautas,
claro. Felipe Pinaud foi tão passarinho!
“De onde
vem o baião”, de Gilberto Gil, completa a aula iniciada em “O pato”, no curso
de música-brasileira-em-duas-lições:
- Concordo
com Gil, que diz que o que não é samba é baião ‑ cita Calcanhotto.
A presença
do fraseado de guitarra paraense de Davi, o prato-e-faca do Recôncavo de
Moreno, tudo abençoado pela o sample da voz de Gonzagão (“‘Vamos remelexendo’,
que ele fala na música, é o mote desse disco”, brinca Calcanhotto) reafirma, na
prática, o pensamento de Gil.
- Em meio
a tantos bichos do disco, essa é a canção do humano – avalia Adriana, que
revela outra música de Gil que está desde sempre na cabeça de Partimpim. – Queria
fazer “Buda nagô” (sobre Dorival Caymmi).
Quando falei com Gil, ele disse: “você tem razão, é uma música infantil”.
É de
Caymmi “Tia Nastácia”, da trilha do “Sítio do Picapau Amarelo”, de 1977. A
história do sinhozinho branco que busca o colo quente e as palavras da velha
negra soa mais potente hoje, com o debate recente sobre o racismo de Monteiro
Lobato e a entrada em cena da obra-prima “Sinhá”, de João Bosco e Chico
Buarque, que trata das relações de opressão e afeto entre negro e branco que
formaram o povo brasileiro.
- “Tia
Nastácia” tem a ver com as coisas de que falo no “Tlês”, é uma canção linda explica Calcanhotto. - Mas mais que isso é uma
forma de tocar no assunto do Lobato, algo que queria fazer. E da maneira como a
letra faz, falando de tantos sinhozinhos, de tanta gente branca que foi criada
e amamentada por Tias Nastácias... É Gilberto Freyre em sua glória.
“Também
vocês”, inédita parceria de João Callado e Partimpim, é canção de ninar para
criança cantar para adulto. Adriana leu em textos de Luís Fernando Veríssimo
referências a monstros debaixo da cama e fez versos, como explica na
dedicatória, para sua netinha Lucinda cantar para ele não ter medo. Neles,
depois de pôr os monstros para dormir, Partimpim ensina aos mais velhos lições
como “Nunca dizer nunca” e “Gostar de gostar”.
“Acalanto”,
também de Caymmi, fecha o disco. A música que Dorival fez para ninar Nana,
afirma-se por sua doçura e por sua força de canção de ninar definitiva da
música brasileira – por Caymmi, por Nana, pela proximidade com o terreno
atemporal do folclore de “Boi da cara preta”. Guitarras e barulhinhos carregam
a canção na ponta dos dedos. Alice Caymmi, neta do compositor, faz contracantos
que sintetizam todo o clã Caymmi em si, sobretudo a tia Nana, num diálogo de
gerações que tece todo o disco – a presença de Moreno evocando Santo Amaro
ancestral e o Rio contemporâneo, Davi e seu berço Novos Baianos, Gonzagão e
Gonzaguinha, o coro com os netos de Chico, Moraes Moreira, Vinicius e os filhos
de Domenico e Kassin...
- É um
emaranhado que tem mais a ver com ideia de trama, teia, do que com o conceito
de linha evolutiva. Reflete mais como as coisas são na música, a meu ver - diz
a artista.
E
silêncio. Partimpim vai dormir e continuar o sonho. Até alguém dar play e
começar tudo de novo, talvez agora com shuffle, porque surpresa também é
terreno dela.
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