domingo, 15 de abril de 2012
Wisnik - Caetano- Rosa
"É preciso dizer que um dos encantamentos do conto (A Terceira margem do Rio, de Guimarães Rosa) está em decantar a experiência do luto-melancolia em estado puro, sem designar a morte que lhe corresponde, pois esta não se localiza num tempo (quando se deu?) nem num lugar (não tem margem), não é propriamente literal ne metafórica, e fica em suspensão, ressoando no símbolo imemorial da barca e da travessia do rio (como se Caronte se conduzisse a si próprio para lugar nenhum). A passagem para outra margem, que repetiria na tradição mitológica o território dos vivos e dos mortos em dois campos opostos e dualizados, não se dá aqui: o conto dissolve essa dualidade na alusão, que lhe dá nome, è terceira margem inominável (cf. Galvão, Ealnice Nogueira. Mitológicas rosianas, 1978. P. 37-40). Podemos dizer assim que a morte está, nesse conto, ao mesmo tempo recalcada (na relação das personagens com o pai ausente, sob o luto tácito e a melancolia) e surpreendida pela narrativa num estado de evidência insólita em que o silêncio ilumina aquilo que não pode ser dito, escapando na tangente da leitura alegórica, fantásstica ou mítica para confundir-se com o fluxo do rio que retorna, tautológico, perpétuo e provisório, sobre si mesmo. É desse lugar que o mineiro Milton Nascimento, silencioso, lança em música essa 'terceira margem' ao baiano Caetano Veloso, para que este dê nome - poético- ao enigma.
Esta é a letra da canção:
Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai
(...)
A singularidade da canção popular brasileira tem nesse exemplo a demonstração de uma de suas consequências inusitadas: em que cultura, ou em que país, pode-se perguntar, o cancionista popular chega a ser o sujeito de uma interpretação vertical do seu maior escritor? Nisso não vai apenas uma questão de competência específica e de arranjo original das especialidades, mas o índice de uma trama cultural em que a malha das permeabilidades é muito intrincada. Essa constatação não é. no entanto, apologética, mas problemática: permeabilidade e maleabilidade têm sido, nas várias interpretações do 'dilema brasileiro', o reverso da moeda da anomia, da irresponsabilidade e da incapacidade de sustentar projeto (traços recorrentes, por exemplo, em muitos dos protagonistas do romance brasileiro, emblematizados na ambiguidade do Macunaíma). (...)"
Wisnk, José Miguel. A Gaia Ciência - Literatura e música popular no Brasil. In: Ao Encontro da palavra cantada: pesia, música e voz. p. 193-96)
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