À esquerda, a capa de Torto Arado, por Linoca Souza À direita, a foto de Giovanni Marrozzini em Nouvelle (2010) |
Venho dizendo que é muito difícil falar desse livro, mas é impossível não falar. Como sei que nunca vou conseguir escrever sobre como ele merece, então vou tentar pontuar algumas questões que julgo importantes e , evitando dar spoiler, pelo menos não muito, mas é que tem coisas que acho que preciso comentar. Quis muito que esse livro fosse bom, fosse mágico, fosse arrebatador, mas como quase nunca meu desejo é realizado, comecei a ler sem expectativas. Planejava ler até a virada do ano e se fosse preciso, no começo de janeiro, mas comprei na primeira semana, dia 8 de dezembro, mas só recebi dez dias depois, comecei a ler dia 18 e terminei dia 26: o Livro de dezembro! Presente de Natal!
Durante a leitura já fui sentindo essa dificuldade de falar sobre ele, é tão mágico, não dá para comentar muito, mas é urgente recomendá-lo. Na hora que terminei, no final de um ano apocalíptico como foi 2020, não sabendo o que dizer, disse apenas: Que tiro foi esse?
Como demorou um pouco para chegar
(os pedidos ultrapassaram o previsto em dezembro e foram precisas novas
edições), eu assisti as resenhas no Youtube, todas eram unânimes : se trata de um
livro que nasceu clássico. Um dos Youtubers disse que tem tantas coisas
nesse livro que é impossível comentar. Não foi só eu. Estou tentando escrever
sobre faz tempo, mas é tão enorme, que eu acho um pecado profanar. Vou tentar
ler a partir de três tópicos que mais me chamaram a atenção porque se ampliam e podem meio que sintetizar o romance. Avisando que
avisando estes não são os únicos que
julgo importantes do livro, nem os únicos que eu gostei, mas são os que mais me
tocaram e sobre eles me sinto ligeiramente confortável para comentar: 1 Terra – Escravidão- Servidão; 2 Brincadeiras de Jarê- Encantaria - Ancestralidade ;3- Mulheres fortes e unidas;
1 Terra – Escravidão- Servidão
O livro é sobre uma comunidade rural, a partir da história da família do
curador Zeca Chapéu Grande, sua esposa a parteira Salu e seus quatro filhos, que
passaram a viver de “morada” na fazenda Água Negra com o fim da escravidão, no
interior da Bahia, e foram trabalhar em regime de servidão. Quem narra são as duas irmãs mais velhas, Bibiana e Belonisia (cada uma narra um capítulo).
Em tempo, fala-se de pessoas que saíram da escravidão e passaram à servidão,
até o surgimento de novos tempos com lutas sociais.
A epígrafe do romance é só TODO o capítulo 28 de Lavoura Arcaica de Raduam Nassar (livro que reli imediatamente após terminar Torto, ainda em 2020)
capítulo 28 de Lavoura Arcaica, de Raduam Nassar |
Nesta entrevista Itamar
conta que o arado torto que aparece no romance é um instrumento de trabalho
arcaico, que veio dos antepassados de Belonísia e que "se deformou com o tempo,
mas ainda continua rasgando a terra para semear a vida”. Itamar diz também
que a ideia do título foi retirado de um trecho de Marília de Dirceu, de Thomás
Antonio Gonzaga, e todo o imaginário do trabalho com a terra na literatura
brasileira é pontuado no romance. Foi fácil encontrar na internet:
“A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte:
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos
Ferro do torto arado.” (Marília de
Dirceu)
Percebe-se de cara que é uma história de gente que tem a terra como parte de si, do seu corpo , e seu habitat, afinal como os donos da fazenda não os permitia ter nenhum bem durável, não tinham casas de alvenaria,e até vivem em casas feitas de barro (terra). Segundo conta a filha de Zeca Chapéu Grande, Belonísia, a mais ligada ao pai:
“Meu pai, quando encontrava
um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu
interior, para decidir o que usar, o que fazer,onde avançar, onde recuar.
Como um médico à procura do coração." p.100
Além de Belonísia, que não se via separada da terra, para todos eles a terra também era tudo, mas embora nela labutassem dia a dia para dar a terça parte da produção ao seu dono (tipo na idade média mesmo) e ainda
agradecendo-lhes pela chance de poder trabalhar naquele chão, a vida que levavam ao cultivar para
alimentação própria, sem dinheiro, quase sem autonomia não era justa, como conta Bebiana:
“se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à
casa, nem mesmo à terra onde plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos
da fazenda carregando nossos próprios pertences. Se não pudéssemos trabalhar,
seríamos convidados a deixar Água Negra, terra onde toda uma geração de
filhos de trabalhadores haviam nascido. Aquele sistema de exploração já estava
claro para mim.”p.83
Isso tudo me lembrava o tempo todo a canção Estrela Maga dos ciganos, do Elomar Figueira Melo:
"É tanta coisa pur dever tanto pagar
Sem receber tanto que dar
Chega! Já num guento mais não
(...)
E inquanto na face da terra havê tiranos,
Vassalos e susseranos
Sinhorio e servidão
Fico lá incima hospedado com os Reis Mago
Nos camim de São Tiago
Num boto os pé nesse chã"
Nada é exposto diretamente pelas narradoras, nenhuma das três, mas a narrativa vai nos fazendo ver, cada vez mais claramente, a realidade daquele povo, juntamente com o momento em que eles mesmos vão se enxergando como são : escravos não são mais, não recebem mais açoite (embora a mãe de Zeca narre lembranças dessa época sofrida na tal fazenda Caxangá ), mas às vezes se dizem índios porque sabem que há lei para protegê-los; sabem que são trabalhadores, mas a qualquer hora os donos podem chegar e tomar-lhes o plantio, sem dó. É uma vida muito “análoga à da escravidão”. Demora um pouco, no tempo e na narrativa, para que os irmão mais jovens das protagonistas e netos de Zeca Chapéu Grande passem a falar em termos como “quilombolas”, que poderia inseri-los sob a proteção legal:
“Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas” p.187
Nada acontece por acaso, mas não posso deixar de tomar como curioso que, ao mesmo tempo em que lia, fico sabendo da história do resgate de Madalena Gordiano (46 anos), essa mulher tão bonita, que viveu 38 em regime análogo à escravidão na casa de uma família, em Patos de Minas (MG). Escrava em pleno século XXI? Pois é. Como no romance, a historia não para nela , mas possivelmente se estende a sua família ,sua irmã . É muito ter a "nossa saga" brasileira jogada na cara. Como prosseguir?
Do outro lado dessa vida de trabalho braçal sem fim na roça, temos um dos trechos mais bonitos do livro em minha opinião, quando Bibiana conta
“Meu pai não era
alfabetizado, assinava com o dedo de cortes e calos de colher frutos e espinhos
da mata. Escondia as mãos com a tinta escura quando precisava deixar as digitais
em algum documento. De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a
escrita e a leitura dos filhos o que perseguia com mais afinco. Quem
acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as
crenças do jarê, acharia que eram os bens maiores de sua existência.Mas pessoas
como nós, quando viam o orgulho qe sentia dos filhos aprendendo a ler e o valor
que davam ao ensino, saberiam que era o bem que mais queria poder nos legar.”P.
66
Emocionou-me muito essa parte porque ele me remeteu, de alguma forma, ao meu pai, que não era analfabeto, mas estudou menos do que gostaria, só que gostava dos livros e do saber e, segundo minha mãe conta, quando casou levou duas malas, uma de roupas e outra de livros para nova vida. Já idoso e começando a ter esquecimentos, lia todo dia, o dia todo, uma cópia impressa com erros da minha dissertação que ficava no quartinho dele. Certamente tinha orgulho de mim, e eu dele tenho muito.
2 Brincadeiras de Jarê- Encantaria - Ancestralidade
Outra das maiores belezas de Torto Arado é todo seu caráter mágico. Muitas
vezes, lendo sobre a infância de Bebiana e Belonísia, pensei que estivesse
lendo estórias mágicas das crianças de Guimarães Rosa (minha especialidade), ou mesmo
em outras descrições do decorrer do livo, parecia que estava lendo algum texto de realismo
fantástico. Isso porque, junto às personagens, estão sempre seus ancestrais,
encantados, santos,espíritos e outras manifestações mágicas, o que é muito
bonito e importante.
Zeca Chapéu Grande é um curador de Jaré,
pai espiritual de toda a comunidade, que o procurava para curar males do corpo
(já que medicina estava distante), mas especialmente da alma. Quando apareciam
doentes assim, ficavam alguns dias em sua casa, conta Bebiana
“Não eram hóspedes, visitas ou convidados. Eram pessoas desconectadas de seu eu, desconectadas de parentes e de si. Eram pessoas com encosto ruim, conhecidos e também desconhecidos de todos. (...) O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartadas do seu próprio eu” P. 33 e 39
Religião daquele povo, as “brincadeiras de jarê” tratam-se de
“uma religião de
matriz africana, mais especificamente um candomblé de caboclo, que existe
exclusivamente em cidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina (...)Uma de
suas principais particularidades é o grande sincretismo religioso, com
influência do catolicismo, da umbanda e do espiritismo kardecista. Pode ser
considerado um amálgama das nações bantu e nagô, as quais se uniram o culto aos
caboclos.” (Wikipédia)
Nada mais brasileiro e bonito. Nessas práticas, no romance, quem comanda as festas e as homenagens é o curador Zeca Chapéu Grande, mas ele também recebe a ajuda, incorporado ou não, de Encantados,que, diferentemente das entidades da umbanda,
“não são
necessariamente de origem afro-brasileira e não morreram, e sim, se
"encantaram", ou seja, desapareceram misteriosamente, tornaram-se
invisíveis ou se transformaram em um animal, planta, pedra, ou até mesmo em
seres mitológicos e do folclore brasileiro como sereias, botos e curupiras. Na Encantaria, as entidades
estão agrupados em famílias e possuem
nome, sobrenome e geralmente sabem contar a sua história de quando viveram na
terra antes de se encantarem.” (Wikipédia)
A confiança nessas forças e energias, ao que parece,
está sustentada na presença constante dos ancestrais para dar apoio e proteção
em todos os momentos da vida. Os encantados e encantadas,
que viveram desde antes, sabem de tudo, conheceram os ancestrais mais longínquos,
sabiam quais das coisas que acontecem agora são repetições de acontecidos com ancestrais
nessa terra. Saber (não apensas acreditar) da sua importância como guias para a vida das personagens é o que me parece dar a sentido àquelas vidas tão sofrida que levam. Eis o verdadeiro tesouro do povo preto.
Muito emocionante.
3- Mulheres fortes e unidas
O último tópico, mas não menos importante (muito ao contrário, talvez o mais importante mesmo) seja a união das mulheres nessa saga toda. Além das duas irmãs narradoras, que possuem uma ligação muito íntima, que os acontecimentos da trama só reforçam e que, mesmo quando elas se afastam, nunca morre, também temos as suas ancestrais e até mesmo as encantadas são a marca feminina desse romance. Na entrevista do autor, citada acima, ele lembra que no cenário rural do sertão da Bahia as mulheres têm protagonismo muito forte na família e na comunidade, porque elas sobrevivem mais tempo, guardam as memórias.
Encerro este texto com outro trecho que muito me tocou:
Amigas, afeto |
O afeto que Belonísia ganha, sem querer, de sua amiga Maria Cabocla e nunca vai saber como lhe agradecer. Eu não tenho os cabelos crespos, mas é cacheado e,
como cresci numa família branca, de gente de cabelo liso, eu também demorei muito para receber um
carinho na cabeça, e foi fora da família, como se aquele meu cabelo diferente não tivesse o direito de
receber um carinho, não por maldade, mas porque , inconscientemente, funciona
assim. Eu sei como é e só agradeço aos meus orixás e encantados por, ainda que tarde, tenha tido essa oportunidade na vida. E mais de uma vez.
Que livro, gente! Que livro!
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