quarta-feira, 12 de maio de 2021

"Do amor e outros demônios"(1994), de Gabo: Uma história fantástica da América colonial dos setecentos

Detalhe da capa do meu livro, edição Record 1996

Enfim terminei de ler o livro do Gabo, que como pôde, me ajudou a enfrentar abril, o mês mais desafiador do ano para mim atá agora. Como comentei aqui, reli esse romance muitos anos depois e foi uma grande descoberta. Fiquei até com vontade de escrever um artigo sobre História da América Colonial a partir dele, mas aqui quero fazer um comentário meio resenhista porque agora o livro, como um todo, está bem fresco na minha cabeça.

Quando terminei ontem a noite, como acontece com os bons livros, eu senti um vazio, já uma saudade daquele universo e escrevi umas palavras :

 


    O que acho mais fantástico na história da Sierva María de Todos Los Ángeles é que esta personagem  é tão incrível que eu receio que se Gabo fosse tivesse escrito este livro ,do jeito que escreveu, mas para o público leitor brasileiro do século XXI (todo cheio de ânsias para que tudo possa responder às suas questões no Brasil atual) , seria cancelado. Quem teria inteligência e paciência para entender uma personagem complexa como a marquesinha,    que é  "de branca só tinha a cor" e os longos cabelos cor de cobre, mas que tinha nome de negra "Maria Mandinga" ,"nunca se despojava de seus colares sagrados", falava e cantava em Congo, em Mandinga e em  Iorubá com as escravas negras do convento onde tinha sido "enterrada viva" numa cela que fora do Santo Ofício para ser exorcizada. Só imaginando os comentários : por que não uma marquesinha negra na Colômbia colonial? (eu falo isso porque sempre lembro que quase  "morri" quando vi gente questionar  na internet  o motivo de terem chamado a Lucélia Santos para ser a protagonista  na novela e não uma atriz negra para ser escrava. Será que ninguém leu nem o resumo do romance do Bernardo Guimarães para sacar que a questão era exatamente esta: Isaura era uma escrava branca!) 

        Mas voltando ao romance de Gabo, o que  eu achei mais bonito, uma bela imagem que guardei desde a primeira leitura, foi a das gaivotas de papel que o Marquês de Casalduero, pai de Sierva, recebia de sua primeira paixão, Dulce Olivia, internada no asilo das loucas.

Mas outros momentos  também me interessaram, envolvendo personagens muito interessantes que, só por existirem ao redor de Sieva, serviam para destacar mais a sua presença no livro, porque seus pais, Ygnácio e Bernarda, a desprezaram toda a vida, alguém tinha que acolher a menina. A primeira a fazer isso, com a força e devoção de uma mãe, foi a escrava Dominga de Adviento, que governou a casa do marquês e teve a ideia de criar a menina no pátio dos escravos, onde ela aprendeu tudo daquela cultura, inclusive técnicas de não se fazer ser notada (como uma fantasma), ou a regra de sempre mentir para os brancos, mas nunca entre eles...coisas que levavam todos a pensar que algo de estranho havia com ela, o que no século XVIII quando o demônio, imposto pela religião católica,  era presente no cotidiano das pessoas, espanta ter demorado doze longos anos para que se falasse de possessão demoníaca, pois na época, a tudo se atribuía esse motivo...inclusive ela fora mordida por um cachorro que, segundo o que diziam, estaria com raiva! Uma personagem ilustrada do romance, em pleno século XVIII,  esclarece que: 

"desde a origem da humanidade, sobre seus estragos impunes e a incapacidade milenar da ciência médica para impedi-los, há exemplos lamentáveis de como fora confundida com a posessão demoníaca, assim como certas formas de loucura e outras perturbações do espírito".p 172. 

Seu fim era inevitável.

uma capa de edição em espanhol, destancando a cabeleira ruiva e o cachorro raivento


Às vésperas do exorcismo de Sierva María muita gente até estava esta empenhada em impedir que isso aconteça,  mas acho incrível entrar nas perturbações daquele jovem padre ilustrado, Cayetano Delaura, de então 36 anos,  que foi designado para exorcizar uma garota de doze anos (normal para a época) , mas que em dado momento  do romance,  se arde de amor pela menina que outros julgam  estar "possuída pelo demônio", mas não ele, que leu tudo disponível sobre casos de possessão e entedia que muito das peculiaridades de Sierva devia-se ao fato da sua imersão na cultura negra. Para ele, padre, tudo era um grande sacrificio, vejamos um  trecho:

 "Cayetano Delaura tentou a purificação anterior ao exorcismo e fechou-se a bolo de aipim e água na biblioteca. Não conseguiu. Passou noites de delírio e dias de vigília escrevendo versos descomedidos que eram o seu único sedativo para as ânsias do corpo.Alguns desses poemas foram achados num maço indecifrável quando a biblioteca foi desmantelada perto de um século depois." P. 148.

Cayetano, o padre bibliotecário do convento,  não era o único que compreendia como Sierva era mais uma vítima de tanta ignorância, outro era o  médico ateu  Abrenuncio, que mantinha uma biblioteca particular imensa, contendo inclusive livros proibidos pelo Santo Ofício, e que menteve com Cayetano uma longa conversa, umas  das  mais ricas do romance,na qual temos traçado um desenho incrível do complexo imaginário colonial, só que ambos sabiam que nenhum deles poderia fazer muita coisa para livrar Sierva da fúria do Santo Oficio, infelizmente.

Mas Caeytano foi designado pelo bispo do convento Santa Clara, para ser  o exorcista de Sierva, que então tinha 12 anos, mas eles acabaram se apaixonando  e vivendo com ela um breve amor real e verdadeiro, sobre o qual não vou comentar muito porque gostaria que lessem o livro.

 Havia também uma outra mulher importante na  história de Sierva, a Martina Laborde, que também era prisioneira no convento e que estabeleceu com a menina uma boa relação de cumplicidade, daquelas que só se descobre nas adversidades, muito bonita de se ver e que nunca, nem em sonho, Sierva estabeleceu com sua própria mãe, que a odiava!

Como acabei de escrever, eu não queria dar spoiler  falando  muito do amor real entre Sierva e Cayetano, então vou dizer em medo de falar muito que  o  fim do livro  não é bom, nem poderia ser (com inquisição, Diabo e cachorro raivoso no meio), e também o  livro já começa com a história (real ou imaginada) de quando, tempos depois em 1949, o jornalista Gabo teria sido designado para cobrir a abertura de uns túmulos em um convento colonial que seria demolido para se tornar um hotel 5 estrelas e ai que ele assiste a descoberta do cadáver de uma menina, adolescente chamada Sierva María de Todos Los Ángeles , de cujo crânio saltava uma cabeleira esplendida, medindo 22 metros e 11 centímetros. Isso o teria levado a lembrar das histórias que lhe contavam sobre a marquesinha de cabelos imensos que fazia até alguns milagres... e anos depois, surge esse romance.  Essas histórias lindas, o realismo fantástico em um de seus melhores representantes, pulsa nesse livro.

Para terminar, sem muitos detalhes, gostaria de transcrever um trecho bem interessante, sobre o  amor entre Sierva e Cayertano ( eu sei que acabei que declarar que não ia falar disso, mas só um trecho, para mostrar como ele foi verdadeiro, mas também muito sofrido, ao ponto do padre, em um momento de grande agonia,  chegar a dizer ao bispo que seu mal era o "demônio, o mais terrível de todos"P. 177) .  Leiam esse livro, saibam melhor sobre essa história de amor demoníaca :

"Então Cayetano Delaura a beijou nos lábios pela primeira vez. O corpo de Sierva María estremeceu com um gemido, e ela soltou uma tênue brisa marinha e se abandonou à própria sorte. Ele passou por sua pele as gemas dos dedos, tocando-a muito de leve, e viveu pela primeira vez o prodígio de se sentir em outro corpo. Uma voz interior o fez ver quão longe tinha estado do diabo em suas insônias de latim e grego, nos êxtases da fé, nos ermos da pureza, enquanto Sirva María convivia com todas as potências do amor livre na senzala dos escravos. Deixou-se guiar por ela, tateando no escuro, mas se arrependeu no último instante e desmoronou num cataclismo moral.Ficou deitado de costas, com os olhos fechados. Sierva María se assustou com seu silêncio e sua quietude de morte, e o tocou com um dedo.

-O que houve? - perguntou.

-Deixe-me agora - murmurou ele- estou rezando." P.191-2

 

eu, agarrada no meu livrinho

Acho que é isso,  até o próximo livro ! Acho que , em breve, volto ao fantástico mundo do Gabo, veremos!  

Um último comentário:

Sierva Maria

Essa é mais uma representação de Sierva Maria de Todos Los Angeles em alguma capa. Mas dessa eu não gostei muito. A menina tem mesmo uma cabeleira enorme, mas é muito escura (no livro Gabo fala de cor de cobre ou quase loiro) , ela usa tranças, mas não assim, são tranças afro (não esqueçamos que "de branca ela só tinha a cor)... é. Que é tão difícil representar tranças afro, né?


Detalhes :)

RECEPÇÃO 

POR ESSA EU NÃO ESPERAVA - Tinha comentado sobre possíveis comentários do século XXI  sobre Sierva Maria de  Todos  Los Angeles ser uma marquesinha que se branca só tinha a pele, né? 

Pois vendo um pouco da recepção do livro no YouTube e esse "detalhe" não foi mencionado, já o fato dela ter doze anos e seu amor ser um homem adulto e isso não é passado com crítica pelo Gabo sempre aparece e por essa eu não esperava.

Bom, para mim isso não foi problema tão grande assim, principalmente por dois pontos que se entrelaçam no romance  : 1 Gabo se propôs a escrever de um romance histórico mais clássico, ambientado no século XVIII e por isso o que vale são os modos de época e dai temos o ponto 2 : naquele longínquo período colonial  essa diferença de idade não era um escândalo,  a ideia de infância era mesmo outra (sim, existe uma história da infância) não tanto quanto a presença ou ausência do demônio na vida das pessoas. 

Ou seja, discutir isso é colocar uma perspectiva válida para nossa época  como mediadora de uma história do século XVIII, Sei lá, não gosto muito!

 Na faculdade de História a gente aprende que o passado é como um país estranheiro, nele as pessoas fazem coisas de um jeito diferente do que nós fazemos:


 

 

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