“Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo de
meus pensamentos não entende minhas palavras; só sabemos de nós mesmos com muita
confusão.” (Guimarães Rosa. Se eu seria personagem. In Tutaméia.P.199)Para um texto de Antonio Candido, já mais antigo que eu, a personagem de romance (que estou entendendo aqui como personagem de ficção escrita no geral) :
“a personagem é um ser fictício, -expressão que soa como paradoxo.Mas por que eu trago estas colocações tão teóricas e literárias neste texto? Existe uma motivação real.
De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No
entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da
verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício,
isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da
mais lidima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se
baseia,antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser
fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização
deste.” (Antonio Candido. A personagem do romance. In A
personagem de ficção. P.55)
Faz cerca de duas semanas eu acompanhei pela televisão a história de um homem que se inventou, como se ele mesmo fosse uma personagem de ficção. Falo da História de Julio César Santos, que foi contada em uma reportagem do Globo repórter.
Julio Cesar, nome que foi a única informação que ele recebeu sobre sua origem desde quando foi entregue a um abrigo no Rio de Janeiro em 1970, com menos de 2 anos de idade e sobre o qual não se sabia quase nada além deste primeiro nome, nem o sobrenome, nem a data de nascimento, nem a identificação dos pais...isso ele, com mais de 40 anos, ele foi buscar, com a ajuda de uma assistente social, pois ele pensava (e com razão) que ele tinha direito a ter na certidão de nascimento um sobrenome e o nome da mãe.... aí foi dado a ele o direito de inventar sua realidade. Escolheu o sobrenome Santos porque ele assistia muitos filmes evangélicos e a idéia de alguma coisa “santa” rondava sempre sua cabeça, e o que eu achei mais importante: para a mãe ele escolheu um nome extraído do seu nome, se ele era Julio César, a mãe poderia ser Juliana...
Começou assim a criação da personagem Julio César Santos, bombeiro,que adotou pais depois de adulto ...sim, ele não foi adotado por ninguém quando criança, e nos relatórios de sua internação nos abrigos sempre só constou que “não se sabia de ninguém que o tivesse vindo procurar” , mas depois que saiu do abrigo ele mesmo “adotou” um casal que apresentou a esposa e aos filhos como sendo seus pais...sim, ele nunca dizia a ninguém sobre o que realmente tinha lhe acontecido, que tinha sido entregue em um abrigo, ainda bebê e lá permaneceu, pois tinha medo de ser rejeitado pelas pessoas. Esta verdade lhe doia muito. Eu entendo muito bem do que ele está falando e o tamanho da dor que ele sente.
Eu não conseguia escrever sobre isso (e ainda é difícil), porque embora eu saiba que minha história não é como a dele, eu tenho pais e família que me acolheram desde sempre e ainda me acolhem (os meus me adotaram, não precisei adotá-los depois de adulta), o que é ótimo para mim, claro, e significa uma ferida a menos, mas eu também sei que a ferida mais aberta não está na adoção – que é um história bela e de acolhimento-, mas sim no que aconteceu antes dela... quando a gente sabe que a primeira coisa que lhe aconteceu quando surgimos no mundo foi que fomos abandonados, como ter uma grande auto estima? Como qualquer abandono, tolo que seja, pode não doer mortalmente em você?
Não pode.
Julio César precisou contar a sua história para a Globo, e o fez na esperança de que a sua mãe (que pode não se chamar Juliana, mas é a “única pessoa que ele gostara que ouvisse seu relato”),porque pensa que isso fizesse com que doesse menos. Será?
Comigo a história é ligeiramente diferente. Me dói muito aquilo que a minha mãe (a mulher que me adotou) contou a história de como eu apareci aqui em casa, uma linda história, da qual eu só posso me orgulhar, mas quando me narrou ela ainda comentou (um pouco sem ter noção de quanto doeria) “achei estranho que a sua mãe (ela referia-se a mulher que me pariu) nunca ter te procurado,nem por curiosidade...
Claro, você pode achar isso um detalhe tolo, mas digo-lhe que não é. No fundo, no fundo, eis a base desse meu (inexplicável a primeira vista) sentimento de não pertencimento a esse mundo onde vivo...
Não vou procurar a mulher que me pariu há 30 anos atrás, nem procurar a Globo numa atitude desesperada de resgatá-la, porque ela já significa quase nada naquilo que eu vim a me tornar, mas não sei se é intencional ou não, não posso esquecer que eu escolhi -e lutei muito para sustentar essa escolha- estudar as crianças abandonadas da literatura de Guimarães Rosa com0o tema do meu doutorado e como anunciei claramente na defesa do meu mestrado em março, aquela dissertação só existiu porque Guimarães Rosa escreveu “Lá, nas campinas” , que é a história de Drijimiro, que é mais ou menos como a de Julio César Santos, alguém que sabia quase nada da sua origem ... estudar essas questões e tocar profundamente em feridas são formas de tentar digerir o que não é digerível.
Boa sorte para Julio César, para mim, e para todos que começaram a vida a partir de um nada, porque é possível, sim, que este “quase nada” se transforme em tudo, como na palavra Tutaméia, que quer dizer “quase nada”, mas também quer dizer “tudo o que é meu”.
2 comentários:
apesar de dor, é tão doce a sua auto análise. (:
Obrigada querida,
Um dia, depois de anos e anos de estudos de Guimarães Rosa, a gente vai conseguindo ver lirismo até nas realidades mais duras DA NOSSA VIDA.
Eu ainda estou tentando aprender a fazer isso.
Grande abraço
Ca
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