Entre
o autor e o seu texto existem caminhos, existem tempos. O caminho que
separava Rosa do texto rosiano foi
o da poesia. Os tempos foram os do
Sertão. João Guimarães Rosa trilhou o caminho da poesia para poder sair de
todos os existentes caminhos. Os tempos
do sertão fizeram com que ele escapasse do tempo. Porque esse sertão,
construído com poesia, não era da ordem da geografia.
Cada
escritor procura, nessa ausência de lugar, o seu universo único. Essa procura
faz-se para além daquilo que ele próprio pode entender. Porque essa criação se
furta ao território da racionalidade. A maior parte das vezes, os escritores
escrevem exatamente porque não sabem. E
quando sabem eles escrevem para deixarem de saber.
Certa
vez, José Saramago me confessou que, já depois de muito livro escrito, ele se
encontrou numa espécie de encruzilhada existencial no que respeita à adoção de
um estilo que, sendo inovador, fosse a
marca da sua individualidade. Para definir essa hesitação, Saramago fez uso do
célebre verso drummondiano ‘e agora José?’. Por muito que explicasse Saramago
sabia que não dava nenhuma explicação. Na verdade, o modo de operar de cada
escritor pertence ao domínio que está para além daquilo que ele pode
racionalizar.
Tal
como acontece com Rosa, não parece haver nos primeiros textos de Saramago algo
que faça adivinhar o estilo já maduro e que, depois, ficou consagrado como
marca pessoal do autor. E, no entanto, já há qualquer coisa nas primeiras
criações que indiciam uma inquietação, e atuam como a forja do que seria não
exatamente em ‘estilo’ mas um idioma particular. O edifício que daí resulta é
uma escrita que se deixa apropriar pela oralidade, uma escrita plural que se
deixa inundar pela Vida. Uma escrita que não pode ser apenas lida. Mas precisa
ser escrutada. Porque ela é feita de vozes, de margens, de veredas.
Um
dos segredos da maturação de Rosa está no quanto ele tornou a página permeável
a falas e sotaques que não são exatamente apenas do Brasil, mas surgem como um Brasil
pessoal, o Brasil de Rosa, uma nação encantada que só pode ser dita por palavra
que por inventar.
A
viagem que, após a sua chegada de Paris, Rosa empreende pelos sertões de Mina
Gerais é, afinal, uma deslocação interior, um revoltear do seu chão mais
íntimo. Terá sido aí que Rosa descobriu a sua linguagem causadora, a um tempo,
de proximidade e estranhamente? Não sei. Duvido. Porque em todo escritor há um
percurso lento e cego que não se tanto de revelações como de esquecimentos. É
verdade que o próprio JGR defende que a inspiração é uma espécie de transe. Mas esse transe
serve mais para calar e ocultar o que é certo e sabido.
Rosa
não escreveu sobre o universo sertanejo. Ele inventou esse universo. E usou
essa invenção contra aquilo que ele sentia como ameaça: a invasão de um
território uniformizado, modernizado, à custa da anulação do espaço mítico.
Onde o mundo sugere a diluição de afetos o escritor propõe um clã, onde a
modernidade impõe a uniformidade, o escritor contrapõe a soberania da intimidade.
Onde os novos tempos sugerem uma aldeia
global, o escritor ergue uma casa, uma residência para a alma, uma raiz para a individualidade.
Mia
Couto
(texto de apresentação do livro
“Antes das Primeiras Estórias”, de João Guimarães Rosa)
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