Meus exemplos de historiadores
Como eu disse nos agradecimentos da minha tese, Nicolau e Elias me ensinaram como ver a história sempre como se fosse a primeira vez...
NICOLAU SEVCENKO(1952-2014) para a ANPUH
20/08/2014
Por Elias Thomé Saliba(USP)
“Tempo presente e tempo passado, são ambos presentes no tempo futuro”. De especial predileção de Nicolau Sevcenko, este trecho de um dos quartetos de T. S. Eliot, nos vem à memória ao refletir sobre o repentino e brutal desaparecimento do historiador, que nasceu em São Vicente(SP) em 1952. Filho de imigrantes ucranianos, perdeu o pai aos cinco anos e foi criado pela mãe, que trabalhava como tecelã e morava numa colônia de imigrantes eslavos que abrangia os bairros de Vila Alpina e Vila Zelina. Começou trabalhando precocemente com o irmão, recolhendo metais de sucatas das indústrias do ABC.
Conheci Nicolau Sevcenko em 1972, ainda quando estudante de História na USP e ele, como eu, éramos procedentes da escola pública. No curso de História o clima era meio constrangedor, com a saída de mestres importantes como Emilia Viotti e Sérgio Buarque de Holanda e com a polícia ainda circulando ao redor do campus. Época de ânimos exaltados, na qual todos achavam que você ou era um aliado incondicional ou era necessariamente um inimigo.
Quem nos estimulou a prosseguir nos estudos foi a nossa mestra Maria Odila da Silva Dias, que se tornou responsável pela formação de vários e importantes historiadores. Rejeitando uma concepção arcaica de História, que a concebia como fluxo evolutivo, genético ou finalista, já partilhávamos com nossa mestra muitas outras coisas, esforçando-nos por observar o passado com desprendimento, considerando toda singularidade histórica como objeto de conhecimento de igual relevância. O que nos atraía para uma visão mais libertária da história, uma história fluida, ligada aos fluxos da vida, constantemente inventada e reinventada e distante, muito distante dos blocos graníticos das velhas ideologias.
Em 1981, Nicolau defendeu sua tese de doutorado, em sessão histórica, que contou com a presença de Sérgio Buarque de Holanda na sua ultima aparição pública, pouco antes do seu falecimento. Ali ouvimos o professor Sérgio traduzir uma frase paradoxal de Nietzsche, que dizia: “Todos os conceitos que se congregam num processo esquivam-se à definição: só o que não tem história é definível.” Naquela época era um tanto incomum historiadores utilizarem-se preferencialmente de fontes literárias, como foi o caso de Literatura como Missão.Brincadeiras superficiais diziam tratar-se de “literatura como omissão”, sem perceber o engajamento crítico daquele trabalho que teve um enorme impacto fora da universidade, arrebatando a maioria dos prêmios no ano de sua primeira publicação. Com olhares simultâneos - um na história social e outro na história da cultura -, Sevcenko propunha uma analise original das consciências polarizadas de Euclides da Cunha e Lima Barreto, demonstrando brilhantemente o quanto a literatura transformou-se naquele “testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.”
Já Orfeu Extático na Metrópole - originalmente apresentado como livre-docência em 1993 - é um densa sondagem dos impasses da modernidade na cultura brasileira, tendo como epicentro a urbanização acelerada de São Paulo nos frementes anos de 1920. O que impressiona neste livro é a capacidade de articulação entre a cultura internacional e a cultura brasileira. O mundo após a Ia. Guerra irradiava uma inédita forma de mobilização coletiva: em lugar da razão e da palavra, o universo imprevisível da ação que inaugurava uma curiosa espécie de cidadania fundada na emotividade. Nunca será demais lembrar que o livro é uma releitura original do modernismo brasileiro, através do seu enquadramento ambíguo neste cenário de desenraizamento e fragmentação, onde tudo convergia para repotencializar atitudes nacionalistas e mitos de mobilização coletiva.
Impossível falar de toda a obra de Nicolau Sevcenko e fazer justiça a sua surpreendente versatilidade sem mencionar A Revolta da Vacina. Dedicado às centenas de mortos de Vila Socó(Cubatão), que resultaram da histórica irresponsabilidade do poder político brasileiro, o livro alcançou quatro edições em 2010 e (se é que os rankings são de alguma serventia) foi o livro mais citado naquela mesma década. Muitos dos temas desprezados ou marginalizados por outros intérpretes constituíam para Sevcenko um pretexto para desentranhar uma história mais autentica, como se comprova pelo volume III da História da Vida Privada no Brasil, por ele organizado e, em inúmeros outros estudos, de temas sempre surpreendentes, das raízes xamânicas das narrativas aos impactos das inovações tecnológicas na vida cotidiana.
Impossibilidade maior ainda é descrever a competência e a criatividade de Nicolau Sevcenko como professor, sem descontentar as centenas de historiadores que foram seus alunos ou orientandos, na PUC-SP, na UNICAMP, na USP ou em Harvard. Muitos dos seus alunos o descrevem como um daqueles professores inesquecíveis: suas classes na USP, nunca com menos do que 80 alunos, em sessões diurnas e noturnas(algo que ninguém divulga quando, nos últimos tempos, tanto se ataca a universidade pública) eram tão disputadas que já se tornara hábito colocar cadeiras no corredor para assisti-las. Afável, generoso, solícito, sempre bem-humorado, trabalhador infatigável, dificilmente conseguia dizer “não” quando solicitado – e sempre foram muitas as solicitações. Havia nele um coração de criança, que conservava sempre aquela possibilidade de se surpreender com a vida e de enxergar o passado como uma criança vê as primeiras imagens que chegam aos seus olhos. Seu desaparecimento precoce é, para nós, a perda de um amigo e do mais formidável dos nossos interlocutores intelectuais. O que é quase nada diante da perda irreparável para a historiografia e para a cultura brasileira de um dos mais brilhantes dos seus historiadores.
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Elias Thomé Saliba.
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