"Rosa Cabarcas tinha me aconselhado a tratar a menina com cuidado, pois ela ainda sentia um resto do susto da primeira vez. E tem mais: acho que a própria solenidade do ritual havia agravado o medo e tinha sido preciso aumentar a dose de valeriana, pois dormia com tal placidez que teria sido UMA PENA DESPERTÁ-LA SEM ARRULHOS. Assim comecei a secá-la com a toalha enquanto cantava para ela em sussurros a canção de Delgadina, a filha mais nova do rei, requerida de amores pelo pai. À medida que secava ela ia me mostrando os flancos suados ao compasso do meu canto :'Degaldina, Degaldina, tu serás minha prenda amada'. Foi um prazer sem limites, pois ela tornava a suar por um lado quando eu acabava de secá-la pelo outro, para que a canção não terminasse nunca. 'Levanta, Degaldina, ponha tua saia de seda' , eu cantava junto ao seu ouvido. No final, quando os criados do rei a encontraram morta de sede em sua cama, achei que minha menina estava a ponto de despertar ao escutar o nome. Então, essa era Degaldina.
Voltei para a cama com minha cueca de beijos estampados e me estendi ao lado dela. Dormi até às cinco ao acalanto de sua respiração apaziguada." Gabriel García Márquez . Memória de minhas putas tristes, p. 64
Mas que beleza de narrativa! É um trecho da segunda noite que o nonagenário passa ao lado da garota virgem adormecida, a influência do Kawabata é muito forte pela valeriana e tudo mais, e eu nem comento que no livro do Gabo, o velho sabe que a mocinha virgem passa o dia todo em seu trabalho FIANDO e que tem muito medo de que seu trabalho lhe arranque algum SANGUE ( aqui, referências diretas à Bela Adormecida), mas mais que isso... ele não queria deixá-la sem arrulhos (que é uma das formas de se chamar a canção de ninar), por isso ele canta para ela continuar dormindo como se a canção 'não terminasse nunca' e ela continuasse acalentando também o seu sono com sua 'respiração apaziguada' ...
Estou adorando !
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