Depoimento de Oxum, publicado na Carta Capital e disponível neste link
Dizem que sou linda! Um pouco vaidosa, talvez.
Gosto de estar arrumada, de harmonizar cores e acessórios, gestos e movimentos,
olhares e palavras. Também dizem que sou elegante, orgulhosa, sofisticada.
Permitam que me apresente: sou Oxum, senhora de muitas águas.
Vim das terras de Ijexá e Oxobô, da
Nigéria, da África. De lá transborda meu rio, o Rio Oxum, de águas douradas e
calmas que se expandem e tomam muitas formas, que se transformam e se
confundem, que se ampliam e desaguam. Águas sinuosas, um dia calmas, outro
revoltas, mas nunca as mesmas.
A mim, não importa o que sou, mas tudo que posso ser. Posso ser chuva, cachoeira, rio e mar. Água é água? Engano seu! Se pensa que me conhece, aí que te surpreendo. Lembre-se: há rios que se cruzam, mas não se misturam. Posso ser a donzela, a madrasta e a bruxa. Mato sua sede, mas posso te matar.
Sobre a terra, sou riacho, sou bênção. Sob a terra, sou infiltração, sou tragédia. Cantando faço uma revolução. Com um espelho na mão, venço uma guerra. Não se engane comigo, sou vaidosa, mas não sou fútil. Sei onde posso chegar e sei o que quero. Sou Oxum, sou mãe sem deixar de ser mulher.
Se tenho uma arma? Sim, a sedução! Continuo plena diante do rei, olho diretamente em seus olhos e deixo que meu corpo fale. Nunca quis estar à frente de nada, mandar em quem manda já me basta. Sou o poder mais genuíno, a força propulsora de toda existência, sou água, sou vida.
Sou amor e, acredite, sou razão. Alcione cantou-me assim: “sou doce, dengosa, polida. Fiel como um cão, sou capaz de te dar minha vida. Mas olhe, não pise na bola…” Sou Oxum e te amo intensamente, enquanto me convém.
Não me apraz a simplicidade. Não saberia viver sem brilhos, sem luzes, sem espelhos. Não aprendi a praticar o desapego, muito menos a viver modestamente. Sim, sou amor, mas só amor não me é suficiente. Quero mais, quero a riqueza e tudo que ela proporciona, quero a glória, a opulência. Quero a felicidade, quero a mesma alegria da terra seca ao receber as águas do verão. Ser fértil, brotar, florescer. Ser mãe!
Sou Oxum. Transparecendo doçura venci todos os meus inimigos. Resisti com meu povo à escravidão, à fome, à humilhação. Minhas filhas, essas mulheres tão lindas, essas negras que exalam o doce perfume do macassá, sofreram as mais terríveis violências. Corpos expropriados, almas destruídas, ventres violados. Chorei ao parir esses filhos. Filhos da pior desgraça, filhos do medo, do abuso, da crueldade. Filhos que nem sempre pude amamentar, mas que amei como minhas mais belas joias, como minhas maiores riquezas.
Abençoei a luta dessas mulheres. Com mel e água curei suas chagas. Mesmo as dores mais profundas, abrandei. Nascer mulher é uma sina, um castigo? Que homem disse isso? Só quem desconhece a força da vida é capaz de negar o poder feminino. Sou Oxum, sou mulher. Sou a grande dama da sociedade, a Iyalodê! Sou rainha, sou mãe, sou feiticeira.
“Eu gosto de ser mulher. Sonhar, arder de amor…” Se Oxalá, o maior de todos, curvou-se a meus pés, quem poderá negar-me a coroa? Teve o “Senhor das Alturas” de reconhecer que sem mim a vida perece. A regra, o sangue, o símbolo do poder das mulheres. O ventre gerando, o ciclo, a vida. Mas parir não me resume, dar à luz é muito mais que isso. Não se engane. Não sou só um útero, uma reprodutora. Não sou só mãe, sou mulher!
E me insurjo a cada outono. De flor a fruto, faço surgir o múltiplo, o diverso, o único. Sou Oxum e todas as mulheres me pertencem. Todas, todas elas! Todas as que tiveram dom e vontade: as que nasceram, as que se descobriram, as que se revelaram, as que se transformaram. Todas, sem exceção. Todas as que tiveram coragem de se tornar mulher. Sou matrona e protetora de todas elas.
Esse ventre é o mundo… Porque um dia eu quis engravidar e não pude. Um dia eu quis gerar e me vi incapaz. Mas não há mulher que não possa ser mãe. Eu sou a prova. Se você acha que o que define uma mulher é o útero, lamento informar que lhe sobra estupidez. Não sou só um corpo, mas meu corpo me pertence. Não me force, não me obrigue, não me condene. Se não conhece minha dor, não determine meu lugar, muito menos o que devo ou não fazer. Respeite meu corpo, respeite meu ser e respeite minhas escolhas.
Lembre-se: essa doçura, essa calma, esse meigo olhar me levam onde eu bem quiser. Sei fingir, sei enganar, sei mentir e trair. Mas não o farei se você não me obrigar. Não se trata de cinismo, apenas um instinto de sobrevivência. Não nasci pra agradar a ninguém, mas se for preciso…
Sou Oxum. Sou menina, sou jovem, sou velha. Sou mulher sempre. Não se assuste com essas minhas confidências, mas não teste meus limites. Um rio, um regato, uma nascente, seja como for, não os desafie. Não afronte essa força intensa e inesperada, não provoque Oxum, não provoque as águas.
Meu silêncio é sempre uma ameaça. Como cantou lindamente Maria Bethânia, sou a “Senhora das águas que correm caladas”. Minha divindade se encanta na água doce. Não, eu não moro no rio. Na verdade, eu sou o rio. Um rio sinuoso, caudaloso. Embora ínfimo na fonte, até minha foz tomo formas surpreendentes. Fertilizo e devasto, sacio e afogo, arrefeço e aqueço. Um rio é uma divindade, portanto, tenha respeito e cuidado. Orixá nenhum aceita acintes, mas a natureza não ataca, apenas revida.