sexta-feira, 14 de agosto de 2020

"Todo Homem precisa de uma mãe": Sobre "Pontos de fuga", de Milton Hatoum


Terminei de ler o segundo volume da trilogia “O Lugar mais sombrio”, o chamado “Pontos de Fuga”, que continua narrando a saga de Martim. Não foi nada fácil de ler, me perdi, reclamei muito e, em muitos momentos, cheguei até a perder as esperanças de gostar do livro. Houve uma ocasião em que o próprio Milton Hatoum, em uma troca de mensagens em um grupo sobre ele do qual ele também participa, me pediu para ter paciência com esse livro, e não é que no final, devo dizer que gostei, especialmente do encaixe com o "A noite da espera"? 

Se no anterior falávamos de um adolescente  ambientado em Brasília, neste volume ele se muda para São Paulo para terminar sua faculdade de arquitetura e vai morar numa república na rua Fidalga, onde conhece um grupo de amigos,  a maioria também estudante de arquitetura, com os quais vai ingressar na vida adulta e tentar sobreviver aos duros tempos ditatoriais. Se no primeiro a narrativa estava mesmo mais centrada em Martim, neste livro ouvimos mais relatos de outros, e a até a imagem do próprio Martim, refletida pela visão dos outros,  foi ficando mais clara aos poucos e como eu já vinha de uma certa impaciência com o rapaz, no começo briguei muito com o livro, não conseguia ter empatia por ele, nem pelos seus amigos, mas Hatoum foi diluindo essa má impressão e ao final já estava entendendo e sofrendo junto com esses personagens, que viveram um dos piores momentos para se viver no Brasil.

Falando do livro, propriamente dito, destaco seu título, altamente relacionado à formação de arquiteto de Hatoum e da  maior parte destes seus personagens, lembro que : 

“o ponto de fuga é a referência no horizonte para fazer as linhas em um desenho e construir uma perspectiva”. 

No romance,portanto, talvez cada uma das personagens, especialmente as que moraram na república da Fidalga, poderia ou deveria representar um ponto de fuga para tentar construir alguma perspectiva, ainda que fosse colocando um questionamento, como faz o personagem Nortista (o melhor da trilogia até agora),  em cena em palco teatral:

“como viver num tempo trágico e numa terra trágica?”(p.160)

***

Uma cena tristemente emblemática da leitura do país experimentada neste romance é quando, em 3 de novembro de 1977,o trapezista Julião, que está se preparando para se exilar, e sofria demais por isso, deita em um sofá na casa dos amigos e fica ouvindo a bela e terrível canção Sargaço Mar, de Dorival Caymmi, como se fosse um lamento de despedida, uma carta de adeus antes de morrer:

"Quando se for esse fim de som
Doida canção
Que não fui eu que fiz
Verde luz verde cor de arrebentação
Sargaço mar, sargaço ar
Deusa do amor, deusa do mar
Vou me atirar, beber o mar
Alucinado desesperar

Querer morrer para viver com Iemanjá"

Então Julião sente uma sonolência, dorme e sonha com:


"o impulso no trapézio volante, o sumiço dos braços do trapezista aparador, 5 ou 6 segundos no espaço, meu corpo bateu na rede de proteção e quando subiu, vi no horizonte a praça dos Três Poderes ocupada por um monte de pessoas de pedra sob um céu de enxofre, parecia uma poeira atômica cobrindo Brasilia" (p.282)

 

Não é fácil MESMO a leitura desse romance, como não foi fácil a realidade que ele procura retratar, justamente na época em que eu nasci, final dos anos 1970! Eu até tinha uma imagem mais positiva de 1979, não pensava em uma horda de desterrados, sequelados por anos e anos de repressão e violência, como encontramos nesse livro, mas ao menos tem uma bela trilha sonora.

                                                ***

Voltando ao Martim, é preciso registar que há momentos em que ele realmente se desespera, como quando Anita comenta com Mariela, na casa da Fidalga, que ele e Dinah estava se esguelando lá em cima, e Mari responde:

 "Dinah está em Londres ou Paris, Anita, Martim conversa com ela, com a mãe, com os livros, com o mundo. Mas sempre sozinho" (p. 168). 

 

Ou então, em uma das cenas mais simbólicas, como quando ele  literalmente  rasga
 

“o desenho do Sérgio San com os pontos de fuga”. (p. 198)

Mas, enfim compreendi bem, para Martim, insustentável é a dor de estar sem suas mulheres - a mãe Lina e a amada Dinah - que aos poucos vão se diluindo e, enfim, acabaram tendo o mesmo final, transforma-se em um só sofrimento,  mais intenso : 

“A dor mais profunda e verdadeira só encontra alívio nos sonhos?” (p.223)

Acho que a resposta a essa pergunta é não. Martim não teve um segundo de alivio, nem em sonho. Sobre sua história, caiu como uma luva a delicada canção "Todo Homem",  do Zeca Veloso  com o seu pai  Caetano Veloso, cantada num falsete cheio de lembranças e esquecimentos:

 “Eu sou cordão umbilical

   Pra mim nunca 'tá bom(...)

  Todo homem precisa de uma mãe...”


 Mas o que perturba, o que Martim define como “lugar mais sombrio da vida” (p. 196) ,é aquilo que é


“impossível lembrar. O esquecimento e a lembrança estavam no centro do monólogo do Martim”. (p. 196)

 

   

Se “amargura” foi a palavra chave de “a noite da espera”, neste volume, as palavras chave são “memória” e “esquecimento”, já que 

“a memória é uma voz submersa, um jogo perverso entre lembrança e esquecimento”(p. 182). 

 

E este jogo foi mesmo muito perverso com Martim, a ponto de fazê-lo surtar de verdade: “Todo homem precisa de uma mãe”.

Dando um pequeno spoiler (que era até um pouco previsível), digo que ao final desde livro ficamos sabendo que, de alguma forma, os três personagens centrais – Martim, Lina e Dinah-  não morrem, pelo menos ainda não, afinal temos mais um volume inteiro para concluir esta saga.

 


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