sexta-feira, 29 de agosto de 2014
Manuscrito achado num bolso
"Agora que escrevo, para outros isto podia ter sido a roleta ou o hipódromo, mas não era dinheiro que eu procurava, em dado momento tinha começado a sentir, a decidir que uma vidraça de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro com uma felicidade, precisamente aqui, onde tudo acontece sob o signo da mais implacável ruptura, dentro de um tempo subterrâneo que um trajeto entre estações desenha e limita assim inapelavelmente embaixo. Digo ruptura para compreender melhor (teria de compreender tantas coisas desde que comecei a jogar o jogo) aquela esperança de uma convergência que talvez me fosse dada no reflexo em uma vidraça de janela. Ultrapassar a ruptura que as pessoas não parecem observar embora sabe-se lá o que pensam essas pessoas agoniadas que sobem e descem dos vagões do metrô, o que procura além do transporte essa gente que sobe antes ou depois para descer depois ou antes, que só coincide numa zona do vagão onde tudo está decidido por antecipação sem que ninguém possa saber se sairemos juntos, se eu descerei em primeiro lugar ou esse homem magro com um rolo de papéis, se a velha de verde continuará até o fim, se esses meninos descerão agora, é claro que descerão, porque recolhem seus cadernos e suas réguas, aproximam-se rindo e brincando da porta enquanto lá no canto uma jovem se instala para demorar, para permanecer ainda por muitas estações no assento enfim livre, e aquela outra jovem é imprevisível, Ana era imprevisível, mantinha-se muito tesa contra o encosto no assento da janela, já estava lá quando subi na estação Etienne Marcel e um negro abandonou o assento em frente e a ninguém pareceu interessar e eu pude escorregar com uma vaga desculpa por entre os joelhos dos dois passageiros sentados nos assentos externos e fiquei defronte de Ana e quase em seguida, porque tinha descido ao metrô para jogar mais uma vez o jogo, procurei o perfil de Margrit no reflexo da vidraça da janela e pensei que era bonita, que eu gostava de seu cabelo preto com uma espécie de asa breve que penteava em diagonal à testa." Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p. 39-40 "
"Assim foi com Paula (com Ofélia) e com tantas outras que se tinham concentrado na tarefa de verificar um fecho, um botão, a dobra de uma revista, mais uma vez foi o poço onde a esperança se enredava com o temor numa intensa cãibra de aranhas até a morte, onde o tempo começava a latejar como um segundo coração no pulso do jogo; desde esse momento cada estação do metrô era uma trama diferente do futuro porque o jogo decidira daquela maneira; o olhar de Margrit e meu sorriso, o recuo instantâneo de Ana à contemplação do fecho da bolsa eram a abertura de uma cerimônia que um belo dia começara a celebrar contra tudo quanto fosse razoável, preferindo os piores desencontros às correntes estúpidas de uma casualidade cotidiana. Explicá-lo não é difícil mas jogá-lo tinha muito de combate às cegas, trêmula suspensão coloidal na qual todo itinerário erguia uma árvore de imprevisível percurso." Manuscrito achado num bolso', p. 42.
".. continuar vivendo até que, pouco a pouco, horas ou dias ou semanas , a sede de novo reclamando a possibilidade de que tudo coincidisse eventualmente, mulher e vidraça da janela, sorriso aceito ou rejeitado, conexões de trens e então finalmente sim, então o direito de aproximar-se e dizer a primeira palavra, espessa de tempo estancado,de incacabável pilhagem no fundo do poço entre as aranhas de cãibra. " Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p.43
"Não é possível que nos separemos assim, antes de nos termos encontrado" Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p. 46
Esse conto abre infindáveis caminhos ... amo literatura!
Marcadores:
Julio Cortázar,
Manuscrito achado num bolso,
Octaedro
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário