domingo, 3 de julho de 2011

O SABOR DO ARQUIVO






Estou trabalhando em arquivo, achei que poderia ler alguma coisa sobre como se trabalha com isso, mas apesar de eu achar que os trabalhos de história que saíram de leituras de material em arquivos costumam ser os melhores, não achava nenhum texto de historiador que abordasse essa prática (só autores da crítica genética), então meu orietador me indicou esse livrinho rasil) e ele, partindo da sugestão do seu nome, é uma delícia! Claro que a autora comenta seu trabalho ns arquivos judiciários franceses (documentos bem oficiais) e eu consulto o fundo pessoal e manuscritos de um autor literário brasileiro, mas apesar de ser diferente, o sabor de trabalhar com o que não foi montado para publicação me coloca em contato com a própria ideia de história: Milhões de possibilidades reias ou fictícias a serem sondadas e quem sabe "descobertas". Vejamos um trechinho:

“ Desconcertante e colossal, o arquivo atrai mesmo assim. Abre-se brutalmente para um mundo desconhecido em que os rejeitados, os miseráveis e os bandidos fazem sua parte em uma sociedade vigorosa e instável. Sua leitura provoca de imediato um efeito de real que nenhum impresso, por mais original que seja, pode suscitar. O impresso é um texto dirigido intencionalmente ao público. É organizado para ser lido e compreendido por um grande número de pessoas; busca divulgar e criar um pensamento, modificar um estado de coisas a partir de uma história ou de uma reflexão. Sua ordem e sua estrutura obedecem a sistemas mais ou menos fáceis de decifrar e, independentemente da aparência que assuma, ele existe para convencer e transformar a ordem dos acontecimentos. Oficial, ficcional,polêmico ou clandestino, difunde-se a grande velocidade no Século das Luzes, rompendo as barreiras sociais, muitas vezes perseguido pelo poder real e seu serviço de livraria. Disfarçado ou não, ele é carregado de intenções, sendo que a mais singela e mais evidente é a de ser lido pelos outros.
Nada a ver com o arquivo; vestígio bruto de vidas que não pediam absolutamente para ser contadas dessa maneira, e que foram coagidas a isso porque um dia se confrontaram com as realidades da polícia e da repressão. Fossem vítimas, querelantes, suspeitos ou delinquentes, nenhum deles se imaginava nessa situação de ter de explicar, reclamar, justificar-se diante de uma polícia pouco afável. Suas palavras são consignadas uma vez ocorrido o fato, e ainda que, no momento, elas tenham uma estratégia, não obedecem à mesma operação intelectual que o impresso. Revelam o que jamais teria sido exposto não fosse a ocorrência de um fato social perturbador. De certo modo, revelam um não dito. Na brevidade de um incidente que provocou a desordem, elas vêm explicar, comentar, relatar como ‘aquilo’ pôde acontecer em suas vidas, entre vizinhança e trabalho, rua e escadas. Sequencia curta em que, a propósito de uma lesão, de um tumulto ou de um roubo, se erigem personagens, silhuetas barrocas e claudicantes, cujos hábitos e defeitos logo se fica conhecendo, e cujas boas intenções e formas de vida às vezes são detalhados.
O arquivo é uma brecha no tecido dos dias, a visão retraída de um fato inesperado. Nele, tudo se focaliza em alguns instantes de vida de personagens comuns, raramente visitados pela história, a não ser que um dia decidam se unir em massa e construir aquilo que mais tarde se chamará de história. O arquivo não escreve páginas de história. Descreve com as palavras do dia a dia, e no mesmo tom, o irrisório e o trágico, onde o importante para a administração é saber quem são os responsáveis e como puni-los. Perguntas e respostas se sucedem; cada queixa, cada auto é uma cena na qual se diz aquilo que normalmente não vale a pena ser dito. E menos ainda escrito; os pobres não escrevem, ou muito pouco, sua biografia (o arquivo judiciário, domínio do pequeno delito antes de ser o do grande crime, mais raro, guarda mais incidentes de pouca importância do que assassinos graves, e exibe a cada página a vida dos mais carentes).
Esse tipo de arquivo foi comparado algumas vezes com ‘notas’, essas pequenas matérias jornalísticas destacadas por meio de fios que informam sobre aspectos insólitos da vida das pessoas. O arquivo não é uma nota; não foi composto para surpreender, agradar ou informar, mas para servir a uma polícia que vigia e reprime. É a coleta de palavras (falsificadas ou não, verídicas ou não – esse é outro problema), cujos autores, coagidos pelo fato, jamais imaginaram que pronunciariam um dia. É nesse sentido que ele obriga a leitura, ‘cativa’ o leitor, produz nele a sensação de finalmente captar o real. E não mais de examiná-lo através do relato sobre, do discurso de.
Nasce assim o sentimento ingênuo, porém profundo, de romper um véu, de atravessar a opacidade do saber e de chegar, como depois de uma longa viagem incerta, ao essencial dos seres e das coisas. O arquivo age como um desnudamento; encolhidos em algumas linhas, aparecem não apenas o inacessível como também o vivo. Fragmentos de verdade até então retidos saltam à vista: ofuscantes de nitidez e de credibilidade. Sem dúvida, a descoberta do arquivo é um maná que oferece, justificando plenamente seu nome: fonte.”
FARGE, Arlette.O Sabor do arquivo.São Paulo: Edusp. 2009 Pp. 12-15

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