segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Uma antologia dos bilhetes que as crianças italianas mandavam ao Menino Jesus




No Natal de  2008 Elias Thomé Saliba publicou esta resenha de um livro interessantíssimo, especialmente para historiadores que se dedicam a infância e história, como eu:

''Quero seu autógrafo, eu faço coleção''
Editora italiana reúne em antologia bilhetes enviados por crianças a Jesus
Elias Thomé Saliba

E, na Itália, Jesus desbancou o Papai Noel como patrono de tantos pedidos, sonhos e esperanças infantis. É o que se conclui depois que a Editora Sonzogno anunciou a publicação da terceira antologia que reúne as melhores cartas que as crianças italianas, de até 11 anos, escreveram, no final de 2007, ao menino Jesus - Querido Jesus, Poderia Tirar o Gosto de Alho do Aspargo? (Caro Gesu, Potresti Cambiare il Sapore Agli Asparagi?, Sonzogno, R$32). Cartas de crianças nos levam sempre a desconfiar: será que os pais não "ajudaram" na tarefa? A reprodução fiel dos manuscritos, sem nenhuma intervenção gráfica, elimina tais dúvidas. Seguindo o mesmo formato adotado em todos os volumes, os editores reproduziram os cem melhores bilhetinhos, mantendo fielmente os erros e a hesitante caligrafia original, incluindo os desenhos rabiscados pelas crianças. A tradição de enviar pedidos escritos para o menino Jesus é, entretanto, bem mais disseminada do que parece - pelo menos em países de tradição cristã. Desde 1950, em várias cidades da Áustria, o sistema de correios chegou a criar até uma seção especial - o "Correio do Menininho Jesus" (Christkindl Postamt) - aberta apenas nos três últimos meses do ano, que recebe milhares de cartas de crianças. Mas até agora, ninguém tinha realizado um trabalho editorial tão apurado, transcrevendo e coligindo, com paciência, tato e delicadeza, os bilhetinhos espontâneos escritos pelas crianças. 



Revelando uma lógica pertinaz e inusitada, a grande maioria dos bilhetes não se limita às costumeiras solicitações de brindes e presentes - embora comecem quase sempre com pedidos diretos e imediatos, como: "Querido Jesus, por favor, me mande o seu autógrafo. Faço coleção. (Cristina)". Ou então, aproveitam a deixa para incluir também um pedido de presente: "Querido Jesus, quero pedir-lhe apenas uma coisa: mais paz no mundo! E, aproveitando o embalo, um par de tênis novos no Natal. Beijos. (Edoardo)". Já o menino Carlo, de 10 anos, imaginando Jesus como seu parceiro de futebol, em vez de pedir, apenas oferece o que tem nas mãos: "Querido menino Jesus, posso mandar-te a nova tabela no campeonato italiano?".




Nos limites de sua linguagem - de uma honestidade quase chocante, pois ignoram malícias veladas ou desvios metafóricos -, muitas crianças preocupam-se, à sua maneira, até mesmo com os mistérios da onisciência divina. Como Aleksandra, que pergunta: "Querido Jesus, você comparece em todos os casamentos ou só em alguns?". Ou Manu, de 10 anos, que interroga: "Querido menino Jesus, você vê tudo mesmo, como na televisão? Há um canal só para Roma, onde eu moro?". Já Eleonora, livrando-se, por antecipação, de ser tachada de enredeira, escreve: "Caro Jesus, o que você faz com aqueles que não vão à missa? A família de um amigo meu não vai mais. Mas não te digo o nome dele de jeito nenhum". E por fim, uma menina de Milão, Débora, incapaz de esconder um certo exibicionismo, desafia: "Querido Jesus, você era poderoso quando caminhava sobre a água, mas devia mesmo ver-me quando estou esquiando!". 




Muitas cartinhas expressam o desejo de que Jesus intervenha apenas como um simples mediador. Como Martina, que escreve: "Querido menino Jesus, minha avó morreu ano passado, e meu pai disse que este assunto é contigo. Por favor, poderia entregar-lhe esta carta?"; e emenda logo com um outro bilhete, que diz: "Querida Vovó, a escola é boa e tenho muitos amigos. Portanto, tudo vai bem. Um beijão". Longe das trivialidades consumistas, as frases curtas, cerradas, incisivas, revelam uma renitente intensidade afetiva, quando não uma lógica que beira ao implacável: "Querido menino Jesus, diga-me: os santos ainda existem ou já foram extintos, como os dinossauros?". "Meu jesuscristinho, com que cara ficamos quando você faz um milagre? Não te dá vontade de cair na risada?". Mas há também aquelas que dispensam quaisquer mediações e pedem apenas um gesto de boa vontade, como Carlotta, que relata seus sonhos: "Querido Jesus, sonho sempre contigo. Te reconheço porque está sempre com a sua auréola e sempre pescando. Da próxima vez que apareceres, será que poderia me acenar?". 




É bem possível que teólogos sisudos venham a torcer o nariz diante de tantas puerilidades. É possível também - a um leitor com pendores voltairianos - ironizar, assegurando que tudo isto não passa de uma "correspondência passiva" de Jesus, que permanece em silêncio diante de tantas perguntas e nos deixa na dúvida e na resignação. Já um leitor de Pascal provavelmente argumentaria que as próprias perguntas das crianças já trazem, em si mesmas, a insondável presença divina. Seja como for, suas frases simples e tocantes produzem um duro contraste com a tortuosa retórica dos adultos, garantindo um humor lúdico, espontâneo, sem ferrugem - cheio de leveza e graça. Graça divina ou humana, à escolha do leitor. 

Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de Raízes do Riso

SALIBA, Elias Thomé. Quero seu autógrafo, eu faço coleção.Caderno 2 de O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. D-8, 24 dez. 2008.

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