No Natal de 2008 Elias Thomé Saliba publicou esta resenha de um livro interessantíssimo, especialmente para historiadores que se dedicam a infância e história, como eu:
''Quero seu autógrafo, eu faço coleção''
Editora
italiana reúne em antologia bilhetes enviados por crianças a Jesus
Elias
Thomé Saliba
E, na Itália, Jesus desbancou o Papai Noel como patrono de tantos
pedidos, sonhos e esperanças infantis. É o que se conclui depois que a Editora
Sonzogno anunciou a publicação da terceira antologia que reúne as melhores
cartas que as crianças italianas, de até 11 anos, escreveram, no final de 2007,
ao menino Jesus - Querido Jesus, Poderia Tirar o Gosto de Alho do Aspargo? (Caro Gesu,
Potresti Cambiare il Sapore Agli Asparagi?, Sonzogno, R$32). Cartas de crianças nos levam
sempre a desconfiar: será que os pais não "ajudaram" na tarefa? A
reprodução fiel dos manuscritos, sem nenhuma intervenção gráfica, elimina tais
dúvidas. Seguindo o mesmo formato adotado em todos os volumes, os editores
reproduziram os cem melhores bilhetinhos, mantendo fielmente os erros e a
hesitante caligrafia original, incluindo os desenhos rabiscados pelas crianças.
A tradição de enviar pedidos escritos para o menino Jesus é, entretanto, bem
mais disseminada do que parece - pelo menos em países de tradição cristã. Desde
1950, em várias cidades da Áustria, o sistema de correios chegou a criar até
uma seção especial - o "Correio do Menininho Jesus" (Christkindl
Postamt) - aberta apenas nos três últimos meses do ano, que recebe milhares de
cartas de crianças. Mas até agora, ninguém tinha realizado um trabalho
editorial tão apurado, transcrevendo e coligindo, com paciência, tato e delicadeza,
os bilhetinhos espontâneos escritos pelas crianças.
Revelando uma lógica pertinaz e inusitada, a grande maioria dos bilhetes não se
limita às costumeiras solicitações de brindes e presentes - embora comecem
quase sempre com pedidos diretos e imediatos, como: "Querido Jesus, por
favor, me mande o seu autógrafo. Faço coleção. (Cristina)". Ou então,
aproveitam a deixa para incluir também um pedido de presente: "Querido
Jesus, quero pedir-lhe apenas uma coisa: mais paz no mundo! E, aproveitando o
embalo, um par de tênis novos no Natal. Beijos. (Edoardo)". Já o menino
Carlo, de 10 anos, imaginando Jesus como seu parceiro de futebol, em vez de
pedir, apenas oferece o que tem nas mãos: "Querido menino Jesus, posso
mandar-te a nova tabela no campeonato italiano?".
Nos limites de sua linguagem - de uma honestidade quase chocante, pois ignoram
malícias veladas ou desvios metafóricos -, muitas crianças preocupam-se, à sua
maneira, até mesmo com os mistérios da onisciência divina. Como Aleksandra, que
pergunta: "Querido Jesus, você comparece em todos os casamentos ou só em
alguns?". Ou Manu, de 10 anos, que interroga: "Querido menino Jesus,
você vê tudo mesmo, como na televisão? Há um canal só para Roma, onde eu
moro?". Já Eleonora, livrando-se, por antecipação, de ser tachada de
enredeira, escreve: "Caro Jesus, o que você faz com aqueles que não vão à
missa? A família de um amigo meu não vai mais. Mas não te digo o nome dele de
jeito nenhum". E por fim, uma menina de Milão, Débora, incapaz de esconder
um certo exibicionismo, desafia: "Querido Jesus, você era poderoso quando
caminhava sobre a água, mas devia mesmo ver-me quando estou esquiando!".
Muitas cartinhas expressam o desejo de que Jesus intervenha apenas como um
simples mediador. Como Martina, que escreve: "Querido menino Jesus, minha
avó morreu ano passado, e meu pai disse que este assunto é contigo. Por favor,
poderia entregar-lhe esta carta?"; e emenda logo com um outro bilhete, que
diz: "Querida Vovó, a escola é boa e tenho muitos amigos. Portanto, tudo
vai bem. Um beijão". Longe das trivialidades consumistas, as frases
curtas, cerradas, incisivas, revelam uma renitente intensidade afetiva, quando
não uma lógica que beira ao implacável: "Querido menino Jesus, diga-me: os
santos ainda existem ou já foram extintos, como os dinossauros?".
"Meu jesuscristinho, com que cara ficamos quando você faz um milagre? Não
te dá vontade de cair na risada?". Mas há também aquelas que dispensam
quaisquer mediações e pedem apenas um gesto de boa vontade, como Carlotta, que
relata seus sonhos: "Querido Jesus, sonho sempre contigo. Te reconheço
porque está sempre com a sua auréola e sempre pescando. Da próxima vez que
apareceres, será que poderia me acenar?".
É bem possível que teólogos sisudos venham a torcer o nariz diante de tantas
puerilidades. É possível também - a um leitor com pendores voltairianos -
ironizar, assegurando que tudo isto não passa de uma "correspondência
passiva" de Jesus, que permanece em silêncio diante de tantas perguntas e
nos deixa na dúvida e na resignação. Já um leitor de Pascal provavelmente
argumentaria que as próprias perguntas das crianças já trazem, em si mesmas, a
insondável presença divina. Seja como for, suas frases simples e tocantes
produzem um duro contraste com a tortuosa retórica dos adultos, garantindo um
humor lúdico, espontâneo, sem ferrugem - cheio de leveza e graça. Graça divina
ou humana, à escolha do leitor.
Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de Raízes do Riso
SALIBA, Elias Thomé. Quero seu autógrafo, eu faço coleção.Caderno 2 de O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. D-8, 24 dez. 2008.
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