"Há em Moçambique um provérbio que diz : a vida de cada um é um rio. Assim pensando, o tempo que nos cabe para viver é alimentado por uma fonte eterna : a infância. E assim dita, a infância não é um tempo passado, mas a capacidade infinita de nos renovarmos entre nascentes e estuario.
Este conto de Marie Dianye (A Diaba e sua filha) é uma história extraordinária, repleta de mistério e sedução, que confirma , em mim, a ideia de que aquilo que chamamos de literatura infantil é, muitas vezes, um esteriótipo fundado numa falsa menoridade da criança e na verdadeira arrogância do adulto. Este conto fala desse rio que apenas existe se nos olharmos como eternos inventores da nossa própria infância. Na margem desse rio, nenhuma história tem idade porque toda a narrativa está fora do tempo.
Nesta história não há lugar, não há nomes, tudo é nocturno, o que sucede está envolto em brumas. Todos nós habitámos essa casa de luz calorosa onde uma diaba se recorda de ter sido feliz. Todos nós fechamos a porta do preconceito, e nada mais queremos saber sobre os que ficam confinados na outra margem. longe da nossa existência.
NDiaye escreve sobre os nossos medos e o modo como eles são colectivamente construídos. Escreve sobre a necessidade de classificarmos os outros e os arrumarmos em bons e mauls, em anjos e monstros. Nestas páginas se inscreve, enfim, a facilidade em culparmos e diabolizamos os que são diferentes e o modo como os sinais de aparêcia ( no caso, os pés de cabra) se erguem como marca de fronteira entre os "nossos" e os"do lado de lá".
Terminou com o recurso a um outro provérbio africano, que diz : eu sou os outros. Marie Dianye confirma a verdade desse aforismo numa história em que se desfazem as fronteiras entre homem e animal, entre humanidade e demónios, os do bem e os do mal. Os outros que somos (ou que poderíamos ser) desfilam neste apelo para reencontrarmos, na diversidade das criaturas que somos, a nossa própria humanidade."
Mia Couto. Orelha do livro A Diaba e sua filha, de Marie Dianye
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