Em relação aos romances do Gabo, em homenagem póstuma, lembrei de "Cem anos de solidão" e do meu favorito "O Amor nos tempos do cólera", mas este último também está vinculado ao primeiro do Gabo que eu li quando foi lançado no Brasil em 1994 e foi com ele que eu conheci o Gabo. Trata-se de romance menos citado, porém deveras interessante (especialmente aos historiadores que leram as obras da Laura de Mello e Sousa sobre as feiticeiras das Minas Gerais coloniais), porque a ideia nasceu nos anos 1940, quando o jornalista Gabo acompanhou a remoção das criptas funerárias de uma capela e viu o impressionante túmulo de uma marquesinha com uma cabeleira imensa, como a das personages das histórias tradicionais da América Central... falo de "Do Amor e outros demônios", que conta a história de amor colonial, bastante histórica, em que uma marquesinha, que diziam ser possuída por demônios, envolve-se com o padre espanhol Cayetano Delaura, encarregado de exorcizá-la. Mas tem que ler a narrativa inventada por Gabo, vai ver que ela, embora fosse marquesa, era uma criança rejeitada e teve criação entre os escravos (culturas diferentes) e até de raiva sofreu (talvez por isso as febre intensas)... uma narrativa absurdamente histórica e antropológica, muito interessante. Porém, a história de amor que eu mais gosto neste romance nem é essa da Sirva Maria de La Sierra e seu exorcista, mas uma ocorrida bem antes de seu nascimento, quando o seu pai, o segundo Marquês D. Ynácio de Alfaro y Dueñas - que foi analfabeto até a idade adulta e era anti social-, aos vinte anos se apaixona por uma das reclusas da Divina Pastoral
"cujos cantos e gritos arrulharam sua infância. Chamava-se Dulce Olivia. Era filha única numa família de seleiros de reis, e tivera de aprender a arte de fazer arreios de montaria para que não se extinguisse com ela uma tradição de quase dois séculos. A essa rara intromissão num oficio de homens se atribuiu o ter ela perdido o juízo, e de tão triste modo que deu trabalho ensiná-la a não comer suas próprias misérias. Afora isso, teria sido excelente partido para um marquês crioulo de tão parcas luzes.Dulce Olivia tinha uma inteligência viva e um bom caráter, de sorte que foi difícil descobrir que estava louca. Logo à primeira vez que a viu, o jovem Ynácio a distinguiu no tumultodo terraço, e nesse mesmo dia se entenderam por sinais. Exímia no corte, ela mandava mensagens em gaivotas de papel. E ele aprendeu a ler e escrever para se corresponder-se com ela, e assim principiou a paixão autêntica que ninguém quis entender. Escandalizado, o primeiro marqês determinou ao filho que fizesse um desmentido público.
-Não é verdade - replicou Ynácio-, como tenho licença dela para pedi-la em casamento. - E ante ao argumento da loucura, replicou com o seu:
-Nenhum louco é louco para quem entende as razões dele." (54-5)
O casamento com Dulce não se efetivou e tempos depois, por interesse de linhagem, Ynácio acaba desposando D. Olalla de Mendonza - a que tinha sido aluna de Scarlatti Domenico (o mesmo músico citado no Memorial do Convento, de Saramago)- e ela, pacientemente o introduziu ao universo musical debaixo das laranjeiras, então em um 9 de novembro
"o ar era puro e o céu alto, e sem nuvens, quando um relâmpago os cegou, um estampido sísmico os fez estremecer e dona Olalla caiu fulminada pela centelha.A cidade estupefata interpretou a tragédia como a deflagração da cólera divina por alguma falta inconfessável. O marquês encomendou um enterro de rainha, no qual se mostrou pela primeira vez com tafetás negros e a cor macilenta que havia de carregar consigo para sempre. Ao voltar do cemitério, foi surpreendido por uma nevada de gaivotas de papel sobre as laranjeiras. Apanhou uma ao acaso e, desfazendo-a, leu: 'Esse raio era meu'." (58-9)
Gabriel Garcia Marquez. Do amor e outros Demônios. 8a. ed. RJ: Record, 1995.
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