Outro texto belo de recepção de Primeiras Estórias (1962), encontrado no acervo João Guimarães Rosa no IEB e retirado dos anexos da tese de 2014. Este escrito por Dinah Silveira de Queiroz, que estava em uma viagem a Moscou quando leu o lançamento de Rosa e fez considerações maravilhosas.
Foto do recorte encontrado no Fundo JGR no IEB |
MOSCOU – Como começa no escritor essa tal nostalgia? – Perguntaram-me, aqui em Moscou, pois correu um zumbido entre pessoas que ela chegava a dar enjoo de estomago, dor de cabeça, distração no trabalho, mau gênio e às vezes até uma pontinha de febre. Tal pergunta nascia de uma conversa em que se tratava seriamente do fenômeno. Alguns usavam tranquilizantes,outros se encharcavam de música brasileira, ainda outros simplesmente se obstinavam a folhear velhos álbuns com menininhas em jardins mães serenas. É preciso não caçoar da nostalgia – ela existe. Ouvi que russos ai também a sentem. A mesma insônia, a mesma moleza com o calor, aqui tocada pelo recolhimento do frio. E a gente se envergonhando no Brasil perante os que se ressentem da falta da neve. – ‘Pois olhe, meu amigo, verão maior do que este eu passei na Espanha’! Aqui, cidadãos procurarão convercer-nos de que frio, frio mesmo, é da Áustria. Mas voltando à pergunta:’Como começa essa tal nostalgia?’ Direi que ela chega meio imperceptivelmente, quando principiamos a enfeitar demasiado nossa vida quotidiana no Brasil. A tal ponto, que o insólito ruído da Avenida Copacabana,bem lembrado de longe, vira a mais alegre das sinfonias. Remédio para nostalgia? Sim,conheço paliativos; um deles será, por exemplo, ler o gostosíssimo livro de Guimarães Rosa, Primeiras Estórias , editado pelo nosso caro José Olympio e festejado por Luiz Jardim e sua pena feiticeira.
Convém que se peça a algum amigo de boa voz para ir lendo. Então Guimarães Rosa se faz canto da Pátria. Seus bandidos, suas santinhas, seus personagens cercados de mistérios – e vai ver tudo isto é encantamento simples – pertencem aos ‘causos’, isto é, às ‘Estórias’ contadas e não lidas. Tudo tem graça, tudo é apetitoso, tudo faz nascer em mim a longíqua menina que ainda sem saber ler chupava a ficção por um canudo :’Conta mais!’ – e se tornava um monstrinho devorador de histórias. Agora, quieta, os olhos cravados no rodopiar das lentas pétalas brancas que caem manso na paisagem , atravesso o campo branco de neve, abro os olhos para os façanhudos irmãos Dagobé, penetro na misteriosa casa onde Guimarães Rosa montou sua maquininha de assombro e construiu um italiano misterioso que tinha um cavalo empalhado, o pudor de um irmão doente, e morreu por ter feito de verdade, como se desencantado.
Conheço, pois, algum remédio para nostalgia. E pena que ele aqui se torne racionado, porque ‘Estórias’ como essas, de Guimarães Rosa, bem nos conduzem ao Brasil melhor que existe. Todo ele feito de graça e de cor, e que a gente ama ainda melhor assim de longe, com a perspectiva infinita da distância e a ressonância tão íntima da nostalgia.
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