terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Walmir Ayala fala sobre infância nas estórias de Rosa

Walmir Ayala, década de 1960


Na íntegra um dos textos mais belos que encontrei no acervo de Rosa, sobre a temática "infância", nas Primeiras Estórias...

Código Arq. IEB JGR R7,100                                                                            

Título  Primeiras Estórias
Autor Walmir Ayala
Data  02 de outubro de 1962
Periódico Jornal do Comércio RJ
Guimarães Rosa volta à praça surpreendentemente. E nos dando a lição de que, com fidelidade à sua linguagem, logo seremos dono dela.  E se é difícil? Difícil é. Pois  não regate-a  o novo em instante nenhum, e cria um “falar” que nos comunica a entonação certa da região onde é falado; restitui-nos aquele viço popular da formação de palavras a partir de outras, fundindo duas numa só, e o faz de forma a passar logo para os dicionários, isto é, certo, científico, inegável. Palavras como: ‘diligentil’, ‘brumava’, se multiplicam, mas todas perdidas (ou achadas) num discurso de alta poesia em rigorosa prosa, num constante depoimento humano que nos conduz ao inevitável  suspiro de concordância e pena:Mas, a mãe, sendo só a alegria de momentos. Soubesse que um dia a mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com força, sabendo muito que estava e que espiava com tanta força, ah.”  Depois de tanto atravessar suas selvas, seguimos enfim, quase em totalidade, apreciar o frescor das águas que nos derrama. E é assim, como um verídico hausto de amor que nos chega. Saber contar uma história é assunto superado em Guimarães Rosa .  Isto ainda advogar mais a seu favor, no terreno de lhe acusarem de complicado, porque a ‘estória’ sobrenada à experiência, ao laboratório, e nos fica o seu forte incenso humano, seu sangue e sua doçura de flor silvestre, impregnando nosso atribulado instante:“De repente, a velha se desapareceu do braço de Soroco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. -"Ela não faz nada, seo Agente... – a voz do Sorôco estava muito branda: - Ela não acode quando a gente chama...” A moça, aí, tornou a cantar, virada para, o povo, o ao ar, a cara. dela era um repouso estatelado, não  queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito  antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém  não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.”Seus personagens são sempre simples, os que nada leram, nada mais ouviram falar do que de sucedimento espontâneo e  mágico da vida.Geralmente em sertões que são dissimuladas Bagdás. Delicia-se no entrosamento das onomatopeias para discriminar o instante ou o animal. Tem a permanente visão da paisagem, dando-lhe alma, comprometendo a gente com a  verdura e o panorama. Descreve com uma riqueza em que a imaginação vem servida de um caprichoso vocabulário, trançando verdadeiras filigramas plásticas.
“Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo  se proclamara. Grugulejou, sacudindo o        abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas  e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto - o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonltriante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruzlou outro gluglo. O menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para o passeio.”O sentido de acesso de Guimarães Rosa ao mundo que o rodeia é de extremada inocência. Pega pelo sentido da criança, toda a matéria de que necessita. Fala preferencialmente de crianças e ao falar delas vai escorrendo um pensamento multifacetado e inventivo, de bom pueril. Faz sua sabedoria do arrepanhado de sensações de quem vê o mundo pela primeira vez, acrescenta a isto uma cultura que apenas sedimenta as impressões e as legaliza. Pesquisa a linguagem infantil (vide o conto “A menina de lá”) ressaltando  a pureza poética dos seus vestígios, fazendo disso acertos para sempre.Sobretudo, em cada conto começado temos uma história perfeita, sem palavra a mais, que nos dá, acima do conflito sempre positivo pelo movimento emocional de rara beleza e humanidade em que se interpreta, uma definição completamente nova de sombra, do raio, do animal, do verdor, da água, e de mil elementos naturais pelos quais passamos cotidianamente e que nossos olhos não mais distinguem sob o pó do hábito e de nossa nublada solidão.  Então temos em Guimarães Rosa o milagre de ver-o-mundo, nisto reside seu dom efetivamente divino: ele cria inelutavelmente a partir de um material estritamente seu, inimitável. Como contista só lhe encontro paralelo em Clarice Lispector, diferentemente, é claro. Clarice é menos panorâmica, é mais restritiva e febril em sua paixão penumbrosa. Guimarães Rosa faz um exercício rente permanente de saltimbanco e nos transmite lugares inesquecíveis, coloca as pessoas em paisagens certas, reflete costumes tribais de extrema fatalidade, tem muito sol, e uma saudade indefinível em cada alma posta ali em terreiros, matagais, ambientes de intima pobreza. A morte sobrevoa suas histórias-estórias, não podia ser de outra forma em se tratando de um poeta de raro acento. Mas há uma contante para a vida que emoldura seus enredos: para o menino que viajou enquanto a mãe sarava, e que ia perseguido pela ideia dos tucanos, disso tudo criando uma fábula dramática e forte, para este menino ele reserva a frase final do conto assim: “Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida”; para o outro menino num simples passeio onde vê tantas coisas, inclusive a estranheza de um peru e sua morte, um menino perplexo diante das coisas inexplicáveis para um menino, para este menino ele  reserva outra frase final, ou seja: “ Era, outra vez em quando, a Alegria”; para Sorôco, acabado de levar a um trem de partida a filha e a mãe, loucas, o contista reserva aquele abrigo:” A gente estava levando agora o Soroco para a casa dele, de verdade. A ,gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.”Assim prossegue, abraçando todos os personagens numa emoção de lágrimas, este grande prosador, sobre o qual é muito perigoso falar com armas de técnica literária, de estilística ou coisas mais. Um prosador para estar nas escolas e na afeição singela do povo, pois o povo as que ele quer comunicar. Difícil, já o dissemos no princípio deste artigo.Mas como atingirmos esta outra facilidade de sua música, se não nos debatermos no difícil de sua cartilha.
E depois, aprendidos em ler, como nos são dadas delícias com seu desenho primitivo e gritante. Quantos revoos para nossa alma vazia, quanta cor para nossa solidão brumosa, quanto amor para o nosso momento de apatia.Prosseguimos o livro: de repente se adensa em considerações sobre o espelho, bem menos eficientes, a meu ver, do que as considerações sobre a vaquinha fugida. Mas é no Espelho que vamos surpreender por um momento a exigentíssima oficina de Guimarães Rosa. Ao confessar-se um perquiridor, surpreendido num determinado ângulo de um espelho, e desconhecendo-se repelindo-se sob esta visão, ele começa a praticar o seu ‘urgir científicos de surpreender outros estágios de fisionomia, então: Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma Inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos - de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente  a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim.”
Eis o homem. Astucioso, incansável, lúcido. Com as palavras o mesmo. Sobretudo sabedor de que os olhos da gente não tem fim. Os olhos de sua inteligência literária são dessa natureza: indefinidos. Mergulhadores incansáveis de um caos enumerável, ordenadores de sequencias latentes de gramática, simplificador de complexidades. Que mais dizer de um alquimista tão inevitável? Nada. Apenas convidar, insistir, impelir, a ler seus contos de “primeiras estórias” onde encontramos os mais belos momentos desse gênero literário no Brasil. E podemos entender melhor o que é o novo. E a quem isso não interessar lhe servirá o eterno, inerente e claro na narrativa de João Guimarães Rosa.
         (Texto retirado da tese RODRIGUES, Camila. Escrevendo a lápis de cor: Infância e história na             escritura de Guimarães Rosa)

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