domingo, 19 de julho de 2020

“Ceddo”, Senegal, 1977, direção Ousmane Sembène


Nesse final de semana nós chegamos ao penúltimo filme da Mostra de Cinemas Africanos 2020 ,  e é novamente uma obra de Ousmane Sembène, mas achei tudo tão estranho. Primeiro achei que não tivesse me desligado de Félicité, mas talvez nem seja isso. Mais provável que essa travessia virtual de meses, de ver filmes e lives em casa tenha me cansado um pouco e , à essa altura, encarar a complexidade de um Sembène deixou um pouco exausta. Lá no começo da Mostra tínhamos visto o filme "Moolaadé"(2004), que , mesmo crítico, deixou aspecto positivo. Ceddo,dos anos 70, foi  uma outra experiência, é um filme difícil. Foi para assistir, está sendo para escrever sobre ele, mas vou tentar um registro. 
Sinopse
Em uma aldeia  africana a cultura local é ameaçada pela aproximação do islamismo e do cristianismo. O Rei Demba é convertido ao islã, mas os guerreiros Ceddo se recusam a abandonar suas tradições. Em protesto contra a obrigatoriedade da  conversão à nova religião, um Ceddo sequestra a princesa  Dior Yacine, dando início a uma  guerra civil. O filme retrata de maneira cirurgica o contexto pré colonial, com a chegada dos Europeus mercadores  que estão instaurando o contexto da escravidão  e, simultaneamente, da aproximação das duas religiões exteriores, bem como a participação ou resistência dos africanos, mostrando uma trama de disputas políticas e religiosas . 
Eu, na ocasião 

Impressões gerais
É um belo filme , com uma trilha sonora louvável. As canções originais, de Manu Dibango e você pode ouvir um aperitivo aqui, mas os sons do filme vão mais além,  misturando percussão, jazz,  sons tribais a música gospel norte americana. O som está perfeito, combinando com as temáticas do filme, mas ela não alivia o impacto de assistir ao filme. Talvez o mais estranho seja que estamos diante de uma situação nem um pouco desconhecida para nós, o que seria comum em um filme africano, no caso , parece, e é, uma encenação de processos históricos ocorridos simultaneamente em África, mais precisamente em um cenário pré "Senegal", justamente naquele período ainda anterior ao colonialismo , quando coabitam a mesma aldeia: a realeza local; a população; o europeu; o mercador; o cristão e o islamita e instaura-se uma disputa pelo poder, com a religião filtrando tudo, que a gente sabe onde foi dar, ainda está dando (não vou abordar aqui sobre as recentes disputas religiosas em África, questão da Igreja Universal em Angola, por exemplo).
Sembené não bota açúcar para a gente engolir mais facilmente.Ainda bem.
Na cena : o padre, um convertido ao islã e o mercador

As cenas de disputas políticas e brigas são cruas e diretas, dá até uma agonia ao assistir os africanos que, para sobreviverem ou não virarem escravos, tiveram que que se desfazer de suas coisas, de toda a sua simbologia, para se convertem a Alá, que é uma divindade que nem conheciam. Aquelas cenas deles raspando os cabelos, desfazendo-se de deus símbolos, saindo da frente do rei e sentando-se atrás nas reuniões da tribo, pois agora Alá teria tomado o poder do rei e toda a antiga hierarquia estava sendo desconfigurada. No filme aparece um resumo, mas esse processo deve ter durado mais tempo para ocorrer e eu só me lembrava do longo trabalho de tentativa de resgate cultural, inclusive feito aqui no Brasil, pelas religiões afro-brasileiras e outras organizações culturais de negritude. Este retorno pode ser possível, ainda que não se retorne a exatamente a mesma coisa, mas é um processo bem longo. No filme,estranhamos assistir ao início de  todo aquele complexo processo histórico de apropriação cultural e colonialismo ocorrido em África onde se iniciaram as diásporas, que no filme aparece sintetizado em personagens alegóricas "a realeza", o mercador", o cristão", o islamita. A sensação é bem estranha, chega a faltar o ar em alguns momentos.

A contestação de Sembené
Como já ficou claro até para mim, que ainda estou engatinhando em cinemas africanos, o nome de Sembené é uma referência para se falar de cinema em África no contexto do pós colonialismo, mas não apenas isso, seu nome também remete ao uso do cinema como adoção de uma postura crítica, pois é sempre político. Nesse filme também vemos esta situação. A protagonista do filme é a única mulher em cena, a bela princesa Dior Yacin,  e eu,  aqui do Brasil, não tinha condições de interpretar, mas suspeitei desde o princípio, que  todos aqueles gestos e posturas dela e dos homens em relação a ela, apresentavam uma postura em relação às mulheres na época. Vejamos imagens de cenas de Dior Yacin e sua altivez e beleza negra exorbitante: 





A live com os professores Detoubab Ndiaye e Marcelo Ribeiro - Sempre necessárias na Mostra de Cinemas Africanos 2020, as lives sobre os filmes de Sembéne chegam a ser fundamentais, devido à complexidade das obras. Sobre Ceddo ouvimos uma palestra  professor da UEBA, o Senegalês Detoubab Ndiaye, que falou muito sobre Sembéne  sua cinematografia, destacando o papel crítico de instituições como as religiões, que em sua obra são sempre contestadas, e sobre o papel das mulheres naqueles filmes pois, já desde os anos 1960, são protagonistas e no caso de Ceddo, percebemos isso quando, à parte toda a discussão em volta, Dior Yacin , quando informada de que o seu pai,  o rei, havia sido envenenado e ela só poderia se exilar, se não deveria se converter ao islã, ela decide que não fará isso e tem  volta triunfal, mostrando a todos que seu pai pode ter sido assassinado, mas a realeza não morreu naquele terroir (vilarejo), cenários de todos os filmes de Sembéne,  e ainda é ela, com suas vestimentas e símbolos, quem  vai se sentar na rede (símbolo de poder) .
Se Detoubab falou bastante sobre os significados, a simbologia e o teor crítico do filme, o  professor Marcelo Ribeiro levantou um questionamento político bastante incômodo para os africanos no filme: a escravidão em África no contexto em que se iniciam as diásporas os exploradores (religiosos ou não) chegaram, os próprios africanos já trocavam pessoas por dinheiro, poder, ou outras coisas. A esse questionamento, Detoubab responde que na época do início das diásporas, a África já vinha lutando por mais justiça e a busca pela adesão a religião teria interrompido essas lutas  sociais,  pois o caráter religioso é mais importante. Marcelo termina lembrando a importância de termos um legado como esse construído por Sembéne, que sempre nos coloca discussões complexas.

Não sei mais o que dizer sobre esse filme, talvez daqui uns anos de estudos e experiências consiga tratar disso tudo.

 




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