quarta-feira, 2 de junho de 2021

O avesso da pele do pai preto morto

 

Eu e O avesso

Fácil não foi, desde que terminei de ler Marrom e Amarelo em janeiro muita gente recomendou que eu lesse o romance O Avesso da pele do Jeferson Tenório, mas que eu fosse com cuidado porque ele carregava mais nas tintas. Como adorei o livro de Paulo Scott, mesmo o achando bem pesado,  ao mesmo tempo que tive muita curiosidade de ler o Tenório, também tive medo. Pois em fevereiro tive que parar as leituras por prazer, tinha um grande trabalho a ser feito, mas em março e abril, assim que tive mais tempo, não foi ao Tenório que voltei, eu achava que não estava preparada. E não estava. Mas ouvi metade de algumas entrevistas como esta  (não via inteiras porque não queria saber demais, mas precisava saber alguma coisa). Desse período de investigação, o que trouxe comigo foi uma dica do próprio Tenório em algum lugar: para escrever o romance, ele voltou  ao Hamlet, à ideia do filho que vinga o pai morto. Baixei a peça e fui ler todinha, que delicia entrar em contato com aquela excelente literatura que, depois, foi fundamental para guiar minha leitura, a "presença de Hamlet" não é acessória, é fundamental e eu achei isso excelente.

Ilustração de Dani (1986) com o príncipe Hamlet falando com espectro do rei Hamlet

O fato foi que eu comprei o romance de Tenório, um livro novo, chegou da Amazon, com cheirinho de novo, mas demorei muito para abri-lo, ficava olhando a caixinha: 

me aguardou por muito tempo

Sabia que não ia ter tempo de ler como eu gostaria, preferi antes reler o Gabo, aqui e aqui e depois até uma homenagem a ele, marcando maio como mês de Gabo, o que de fato aconteceu. Mas no finalzinho do mês, com muita coragem, mergulhei no livro de Tenório. Que experiência, meus senhores!

Começou um arraso, e Hamlet aparece logo na epígrafe 



E publiquei as primeiras impressões :

O AVESSO DA PELE, CAP.1 - Esta epígrafe sheakesperiana, informando que quem está aqui é Hamlet (o rei morto)  cria o ambiente da história para o leitor do romance, o que é reafirmado naquele primeiro capítulo,  MUITO BEM ESCRITO, tratando da percepção do pai já morto na casa, que tanto me impactou, e que termina  reafirmando esta presença pairando sobre a história contada por J.Tenório. O primeiro capítulo foi uma experiência ímpar, tive que transcrever um trecho

"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca  soube ir embora." O avesso da pele, Jefferson Tenório,p. 13. 😱  

O livro começa assim! Um dos mais incríveis começos de livro de que me lembro! Reli inúmeras vezes, deixando as palavras me  invadirem pelos meus ouvidos. Sabia que ia me demorar na leitura,  mas nunca esquecendo que o capitulo termina reafirmando a presença do pai morto :

"Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir . Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você.  OS OBJETOS SERÃO O TEU FANTASMA A ME VISITAR."p. 14.

Para além deste início, o livro se desenvolve muito bem: logo após a morte do pai, por uma batida policial, o narrador Pedro, tal qual o príncipe Hamlet, visita a casa do pai morto e narra ao espectro do seu pai a vida de seus pais , da família de negros em Porto Alegre ,  numa mistura bem temperada de realidade, invenção e depoimento. Centrado na trajetória paterna,  um professor de literatura negro às voltas com os conflitos raciais em uma das cidades mais frias e  conhecida como racista do país.  Em um dos vários trechos em que o narrador fala de uma investida policial que o pai passou narra da seguinte forma: "era o mês de junho. As ruas estavam desertas. Fazia frio, mas você não sentia frio por fora, o frio estava dentro" (150). A ideia do frio por dentro me lembrou uma das mais tristes e belas crônicas do Caio Fernando Abreu, Agostos por dentro, na qual,  embora ele  tenha vivido sua agonia em POA, essa escreve do Rio, mas o frio do hotel  não era por "viver em outra cidade", era de dentro. (Pequenas epifanias, p. 161-2).  

Mas voltando ao livro do Tenório. não é brincadeira de se ler. Ainda que tenhamos retratos belos da cultura black no Brasil, quando são citados alguns músicos de destaque como Milton Nascimento, Racionais MC, Itamar Assunção, Jardes Macalé e especialmente para mim, Luiz Melodia, pois é dele a trilha sonora da minha leitura, a sua Abundantemente Morte :  "...sou um morto que viveu, corpo humano que venceu, ninguém morreu..."

Mais ou menos na metade do livro, ele já tinha me feito pensar tantas coisas, chorar, me indignar, ter raiva e amor, eu fiz a seguinte reflexão :

  De algum jeito esse livro se parece com "Marrom e Amarelo" (os dois tratam da questão racial na Porto Alegre contemporânea), embora a experiência de leitura seja outra. Se no "Marrom" temos o colorismo e a força motriz é o ódio do narrador Federico por esse lixo de  sociedade racista e a leitura é eletrizante; neste, até pela sinopse fúnebre de revisitar a vida do pai morto, temos uma melancolia, uma tristeza profunda embrenhada em cada página, tanto que é até resignada, como que cansada de carregar quatrocentos anos de racismo nas costas. Uma fala do narrador Pedro ao espectro de seu pai , logo na primeira página, resume o que estou dizendo:"você entrou e saiu da vida  e ela continuou áspera".

Ainda bem que não sorri na foto de quando abri a caixa da Amazon, pois tenho quase certeza de que termino esse belo livro (apesar de tudo) num grande banzo

Dureza, como tudo envolvendo o racismo. Mas ainda preciso explicar melhor o que quer dizer o título do romance, se você achar que pode ser  spoiler, pode parar de ler aqui . No livro o narrador lembra o dia que o pai explicou o que era o avesso da pele:

"Você me dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito  e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas  atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afeto  que nos mantém vivos." (grifo meu,p.61)

Para o pai de Pedro,  o professor de literatura,  o avesso da pele preta era a sensibilidade literária, que aparece em momentos como o que comentei aqui, resolvendo um problema até  banal, e principalmente nessa bela cena, onde essa mesma arma é capaz, literalmente, de salva-lo de alguma violência policial.

Quando acabei de ler,como previsto, estava num banzo só:



Tem muitas outras coisas a comentar sobre esse livro, que ele precisa urgentemente de bons leitores, porque é bom, é belo, contundente e necessário: Arrisquem-se em um dos melhores lançamentos da literatura brasileira contemporânea.

 

 


 

 

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