O filme angolano “Ar condicionado” (2020), dirigido por Fradique e produzido pela Geração 80, uma produtora audio visual angolana interessante que, segundo Jorge Cohen, preocupa-se em interagir com imagens e sons de produções do "sul do mundo", que certamente devem diferir do norte do mundo, referências com as quais estamos acostumados. Abaixo um momento da live sobre o filme, acontecida em 10 de junho de 2020, da direita para a esquerda, no alto Ana Camila (mediadora da Mostra), Saymor (jornalista da Mostra), abaixo Fradique e Jorge Cohen (da Geração 80):
O filme conta a história misteriosa de quando muitos
aparelhos de ar condicionado começam a cair dos apartamentos na cidade de Luanda
e Matacedo e Zezinha, empregados dos prédios, recebem do chefe a missão de
recuperarem os aparelhos e com isso chegam até Kota Mino, o proprietário de uma
loja de eletrônicos que está montando, secretamente, uma máquina de recuperar
memórias.
No início lemos a seguinte explicação sobre que ar e que condicionamento iremos tratar
Alguns pontos me chamaram a
atenção no filme, como a figura autoritária do chefe, que ao mesmo tempo em que
diz ser o presidente do prédio e é a ele que os empregados devem respeito, obedece à
ordem de uma mulher que o acompanha,
deixando claro que seu domínio vale para alguns.
Sobre Matacedo, que o diretor comentou que é um nome fictício, inventado por causa do seu passado de soldado de guerra, como todos os seguranças dos prédios de Luanda, e refere-se aos que acordavam cedo para comer o “mata bicho” (café da manhã) nos batalhões, já grisalho e muito magro, e depois ficamos sabendo mais sobre ele quando ele registra suas memórias, mas no começo só sabemos que ele tem problema de audição, certamente consequências da guerra, tem momentos em que não ouve (e nós também não ouvimos, embora a legenda embutida em inglês nos conte o que estão falando para ele). Ele fica muito ligado nas informações da televisão, que leva para comentar com Zezinha. Dela sabemos alguns fragmentos de história, que veio com a família de perto do mar. Fala muito do pai, da importância do vento que aprendeu com ele, o vento natural, não esse do AC.
Em cenas gravadas na parte
superior do prédio, o segurança Matacedo observa algumas manifestações de
rappers pensando criticamente sobre heranças e perdas, como se fosse um
meta-comentário do próprio filme. Outro comentário pertinente e poético é feito
pelo Kota Mino ao comentar a queda dos ACs
lembrar que eles caem, assim como nas árvores, frutos maduros soltam-se dos
galhos. Isso é interessante vindo deste personagem, que arma toda uma ligação
entre os ACs e os registros de memórias, lembrando inclusive que “sem som não
há memórias”.
Além das cenas do prédio,
que os realizadores contaram que existe de verdade e fica perto da Geração 80, é enorme
e velho e, segundo os realizadores, existem aos montes em Luanda, são prédios
invisíveis, não saem nas fotos dos postais de Luanda, assim como seus
moradores funcionários, então o filme
escolheu registrá-los.
Por muito tempo no filme, a
câmera vai andando atrás das personagens, daí vermos claramente suas costas em
contraste com o entorno de uma Luanda
feia, em ruínas mesmo, com aparelhos enferrujados nas ruas, como em um futuro
diatópico? O que os realizadores negaram, afirmando que aquela é mesmo a Luanda de 2020. Na
oficina do Kota Mino, quando este fala da possibilidade de sua máquina reter as
memórias através dos ACs, Zezinha duvida, pois no bairro onde mora ninguém tem
AC, como retriam as memórias deles? Então Mino explica que as deles “caíram com
as árvores”, agora só restaram as dos ACs. Daí ele
explica que sua máquina de memória é construída com AC, mas é fundamental que ela esteja
preservada e “funcione” em meio às plantas. E aquelas eram as últimas da
cidade. Realmente o filme não mostra nenhum verde, só ruínas, fragmentos de
vida na metrópole e referências às mídias como televisão e rádio, onde as
personagens se “informam” sobre a tragédia que está ocorrendo. Isso me remeteu aos curtas de afro futurismo
que assisti no ano passado.
No mais belo momento do
filme, Zezinha e Kota Mino deixam Matacedo sozinho na máquina da memória, que
funciona com um AC ligado a um carro, muito ao modo de De volta para o futuro, flerte confirmado pelo diretor
Fradique, e Matacedo fecha os olhos e
vamos vendo o carro passear por uma Luanda bonita, de dia, de noite, na chuva,
com prédios novos com a seguinte canção, cantada por Aline Frazão, de forma
muito sincopada, assim como o filme, a música dá um passo e volta dois, como é
o ritmo da memória de Matacedo, mas também uma fala da própria Angola:
quando eu fecho os olhos imagino um país novo
quando eu fecho os olhos eu me lembro de novo
para não me dissolver no cassino da lembrança aperto passo na dança,
obstinada dos dias
tudo era bem melhor no tempo em que ainda me vias
tempo tempo tempo, tempo, tempo
de noite adormece o meu corpo
antigo
enferrujado e doído, como um sobrado em ruínas
Sonho para não esquecer e esqueço ao amanhecer
Segundo Fradique, o filme apresenta três lados principais : Matacedo e seu passado de guerra/ Zezinha e sua praticidade em resolver as coisas apontando para um futuro/ Kota Mino e sua peocupação em salvar o que resta das memórias. Essas três personagens seriam testemunhas daquilo que, nesse momento, se está a perder em Luanda e está sintetizado na imagem dos aparelhos de ar condicionado que absorveriam as memórias e ficam cheios e pesados, por isso caem. E é importante resgatar as memórias , não deixar que elas se percam. Filme maravilhoso, confiram o trailer:
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