quinta-feira, 2 de julho de 2020

Eu: leitora de Milton Hatoum


4 livros na estante

Desde o ano passado eu falo frequentemente deste autor, vocês devem ter percebido. Foi uma "descoberta" de 2019 e fazia tempo que não me deparava com um autor desta forma e isso vem modificando minha postura como leitora. Não foi por querer, mas em um primeiro momento eu encontrei o texto de Hatoum como uma verdadeira historiadora lê suas fontes : realmente lê, mergulha, aceita ou rejeita se possível, aprende algo com ela, sem conhecimentos externos, sem ouvir entrevistas do autor, sem saber quantos livros, quais são os romances, se há crônicas, se há contos, simplesmente lê.

 Eu gosto muito da forma como ele escreve, isso em todas as obras, de algumas  gosto mais do que em outras, mas sei que esta qualidade de bom escritor está sempre garantida, por isso ele me acompanhou em momentos difíceis de longas espera em hospital em 2019, dessas coisas a gente não se esquece. Dele eu li somente os romances,  e com eles aprendi muito sobre o que seria escrever um romance no Brasil contemporâneo através dos seus questionamentos. Por curiosidade, achei esse depoimento de Ricardo Ballarine sobre a leitura de algumas obras de Hatoum e apesar de eu já ter escrito um post sobre minhas primeiras impressões a cada romance lido, agora, decorridos alguns meses,  quis sintetizar um pouco a minha impressão sobre as quatro primeiras obras.

O primeiro Hatom que eu li foi
Dois Irmãos (2000), que inspirou uma minissérie da Globo, muito emocionante, muito bem produzida  dirigida por Luiz Fernando Carvalho, que eu assisti a maior parte, sobre a qual comentei aqui. Mas, evidentemente, o livro é outro mundo, muito mais intrigante, que também comentei aqui,  em cuja leitura, eu já me interessava mais pelos meus trajetos de leitora daquela escrita, percebia que Hatoum despertava em mim uma leitora diferente e ainda que ele abordasse nesse livro vários assuntos dos quais, naturalmente, eu fugiria , o texto é tão bem escrito que fui me deliciando com todas aquelas sensações. Reparei de cara que a chave dos romances hatunianos é o narrador. Em Dois Irmãos , mais do que a mãe, mais do que os gêmeos, mais do que qualquer outro personagem, o livro é o seu narrador misterioso. Que ao final achei que fosse muito eu. Como dói.

De todos, o meu favorito é o Relato de um certo oriente (1989) , primeiro que ele publicou e o segundo dele que li e sobre o qual comentei aqui. Mas gostar ou não de um livro tem a ver com muitos fatores,  nosso repertório literário ou expectativas de leitores, por exemplo, o Ricardo Ballarine, no texto comentado acima, disse que tentou ler por duas vezes, na primeira largou e na segunda, “pelo menos”, conseguiu terminar, o livro que li e reli tantas vezes e aplaudi sempre.  Mas não recomendo começar por ele, fundamental é provar  primeiro o gostinho de Hatoum. Desde o início percebi que o volume é difícil de ler para leitores mais habituados a uma narrativa mais fluída, mas talvez por isso mesmo seja um livro imprescindível. E não é apenas pela ourivesaria (na minha primeira impressão de leitura  eu já usava  essa mesma palavra) com as palavras que o torna peculiar, mas também a estrutura do texto que me lembra a de alguns reconhecidos autores estrangeiros, especialmente os que tratam da narrativa de memórias de refugiados europeus que li , como W. G. Sebald, cujas obras dialogariam facilmente com o romance ambientado em Manaus no início do século XX. O interessante dessa obra é que ela mostra coisas novas , sem mostrar claramente (ele garante o beneficio da dúvida sobre se é aquilo mesmo, o tempo todo), muitas que não desejamos enxergar o que eu chamaria de boa literatura, isso pensando mundialmente.


A terceira leitura foi Cinzas do Norte (2005) , que comentei aqui. Achei muito diferente dos dois primeiros, muito menos poético ou sensorial, foi a primeira vez que senti  aquele vazio de esperar algo tão grande quanto o que ele já havia me oferecido, mas não ser atendida. Também por isso o Cinzas demorou a chegar até mim, mas chegou, muito mais pela razão do que pela emoção, como havia sido nos dois primeiros. Estava lendo um escritor, um escritor brasileiro, foi muito bonito constatar isso. Depois que terminei essa leitura, comecei a ouvir um pouquinho  o que ele fala e me deliciei ao perceber como ele sabe o que é um romance, o que significa escrever um romance no Brasil e essa contribuição me fez gostar do Cinzas. Até agora é meu terceiro favorito.


O quarto livro é o Orfãos do Eldorado (2008) não é um romance e eu só percebi durante a leitura, e isso me fez estranhar muito o livro de cara, como comentei aqui , enquanto lia não sabia o que era, até pensei que pudesse ser um poema, mas o ouvi explicar que se trata de uma novela encomendada. Lamentei um pouco, porque ele trata de lendas manauaras, é tão bonito, mas falta mais recheio e se fosse um romance, não faltaria. O choque da comparação entre os dois primeiros e os dois últimos livros dele que li me fez ficar um pouco decepcionada e eu resolvi parar de ler um tempo. Podia ler os contos, as crônicas, mas dei um tempo mesmo.

Embora eu saiba que Hatoum não precisa corresponder às minhas expectativas,  não posso calar meu desejo, muito menos o fato de que ele não foi atendido. A psicanálise já explicou como é difícil, ou até impossível,  ao ser humano superar uma frustração. Até mesmo se ela for de leitor(a) e é preciso falar dela, por isso precisei voltar ao tema dos primeiros romances de Hatoum, apesar de já ter começado a ler a trilogia  O lugar mais sombrio , acho melhor falar deles só depois de ler os três, por enquanto ainda preciso tocar nessa ferida, “a perda do meu autor querido”, e o questionamento sobre a possibilidade ou impossibilidade de gostar dele, da forma como ele vier.



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