terça-feira, 30 de março de 2010

CRIANÇAS DE LÁ



CRIANÇAS DE LÁ

Miguilim, Dito, Nhinhinha, Brejeirinha, Diadorim e o poder alegre criativo e livre do Homo ludens na obra de Rosa
Micheliny Verunsck

A obra de João Guimarães Rosa é povoada de seres miúdos, assombrados com os mistérios do mundo, encantados com as promessas da palavra. Se o leitor aguçar o ouvido, as risadas de meninos e meninas podem ser percebidas facilmente deslizando pelas páginas dos livros do escritor mineiro.
Rosa foi, ele mesmo, uma dessas crianças alumbradas. Joãozito, como era chamado pela família, gastava horas entretido em observar o mundo natural ao seu redor e brincar com ele. Pequenos insetos, como formigas e besouros, eram seus companheiros de infância. Construtor de alçapões, ilhas e cidades imaginárias, o menino, sem saber, ia lapidar o olhar do escritor que seria no futuro.
Na antológica entrevista dada ao poeta paraibano Ascendino Leite em 1946. O autor revela:
“Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagens, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas, numa combinação mais limpa e mais plausível, porque – como muita gente já compreendeu e já falou – a vida não passa de histórias mal arranjadas, de espetáculo fora de foco. A arte e o céu serão, pois, assunto mais sério, e também são países de primeira necessidade.”
Ainda nessa mesma entrevista, Guimarães Rosa revelou o desejo de escrever um tratado sobre brinquedos para meninos quietos. O tratado não foi escrito, mas a julgar pela propriedade com que trata da infância em seus livros o autor acreditava e defendia plenamente o Homo ludens, aquele ser total e livre que faz da alegria da brincadeira o seu modo de estar no mundo, de reger o universo.
Entre perdas e ganhos
Publicada originalmente no volume Corpo de Baile (1956), “Miguilim: Campo Geral, conta sobre Miguel de 08 anos de idade, que vive com a família na localidade chamada Mutum.Nesse cenário, os dramas familiares conduzem a vida e o crescimento do personagem-título. Miguilim, como é chamado, é companheiro inseparável do caçula, Dito. Se Migulim é mais velho, Dito é mais sábio, ponderado, a bússola que rege as atitudes do irmão:
“Dito, menor, muito mais menino e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava na dúvida, achava que podia ser errado. Até as coisas que ele pensava, precisa de contar ao Dito, para o Dito reproduzir com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar que era mesmo verdade.” (Em Ficção Completa. Nova Aguiar, 1994)
Eles se completam e complementam numa combinação entre razão e sensibilidade. Numa família em que a criança não tem voz, Miguilim, com sua fragilidade, busca, ainda que de modo instável, se fazer ouvir e mais, marcar sua presença. E daí seus conflitos com o pai, Nhô Beto, responsável pelas violentas surras que o menino leva e por algumas das grandes perdas pelas quais passa, como a cadela predileta, Cuca Pingo-de-Ouro, que o pai dá a tropeiros, e os passarinhos que ele criava, que o pai solta depois de uma contrariedade.
O único adulto atencioso para com Miguilim é o irmão do pai, o Tio Terêz. No entanto, o menino está colocado no meio do conflito dos grandes, já que pai e tio disputam o amor da mãe, Nhanina. Solicitado a entregar a ela um bilhete do tio, Miguilim sente que isso não deve ser feito. Entre desapontar o único amigo adulto e agir contra sua consciência, o menino passa por uma crise dolorosa até optar pelo caminho moral e devolver o bilhete ao tio.
“Campo Geral” é, de certo modo, uma fábula sobre o crescimento, a partir da infância. A cena em que o menino queima no quintal todos os seus brinquedos é emblemática. E nesse percurso, Dito age como um mestre que ensina Miguilim a ouvir seu coração e também a cultivar e manter uma alegria intima mesmo perante acontecimentos ruins ou a própria morte.
O crescimento do personagem é metaforizado pelos óculos que recebe ao se constatar a miopia de que sofria e pela partida para o Curvelo para estudar. A morte de Dito, por tétano, é também importante nesse processo de crescimento, já que Miguilim carece de autonomia, de ser dono de seus próprios caminhos.
Todo poder da palavra
Na prosa de Guimarães Rosa a palavra e seu poder encantatório merecem lugar de destaque. A palavra faz e desfaz, reside nela a capacidade demiúrgica de inventar (ou reinventar o mundo). E essa parece ser a lição que Primeiras Estórias, publicado em 1962, oferece. Em várias passagens desse livro de 21 contos as crianças manipulam palavra e linguagem e,com isso, se empoderam.
No conto “A Menina de Lá” , Nhinhinha, de menos de 4 anos, vive a palavra em estado poético, espantando os adultos que não sabem que viver e fazer poesias são mesmo uma coisa uma coisa só. Basta falar que a menina tem qualquer desejo magicamente realizado, numa radicalização tanto da força da palavra selvagem e limpa de vícios como a onipotência infantil. Para a menina, tudo se realiza : ver um sapo, pamonhinhas de goiabada, tudo, mesmo aquilo que ao adulto pareça mais irresponsável e repreensível.
“Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendeu a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram (...) É vai: Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que de má água desses ares (...) Ai Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes...”
Nhinhinha como poesia “natural”, anímica, não é desse mundo, é “de lá”, de outra lógica, de outra relação com a linguagem e com a natureza. Ela não se diferencia dessas instâncias. Ao contrário de Brejeirinha, personagem do conto “Partida do audaz navegante.” Irmã mais nova de Pele e Ciganinha, Brejeirinha é literatura inaugurada, “formadora de artes”, para usar uma expressão do narrador. Embora ainda não domine de todo os significantes, ela os toma para seu uso sem medo, apodera-se deles a seu modo, dando-lhes forma com uma plasticidade infantil. Ao contar a história do Audaz Navegante, que ela chama de Aldaz, Brejeirinha brinca com o vocabulário,o flexibiliza. A palavra reveste-se, então, de novos significados, é reinventada.
Brejeirinha é dona da narrativa e faz poesia de caso pensado, elabora-a. É uma menina cerebral, com inquietações mentais. “Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?”, indaga ela. As irmãs e o primo, Zito, orbitam em torno da contadora de histórias, vivem os dramas que ela inventa. Mesmo Pele, que a confronta continuamente, não é capaz de se desvencilhar do fio de suas histórias:
“O Aldaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele dentro,escrutínio. O Aldaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original... ”
Em “Pirlimpsquice”, do mesmo livro, um grupo de crianças ensaia uma peça. “Os Filhos do Doutor Famoso”, para apresentar em um evento do internato. Até a estréia, isso se torna seu segredo, [ou brinquedo]. Os meninos giram em torno da peça, sentem-se importantes, tocados pelo maravilhoso. O conto, narrado por um dos atores anos depois, fala dessas sensações e emoções vividas pelo grupo. E mais, conta da manifestação da poiesis como atuação do divino, que vai se encontrar, por exemplo, na concepção grega do poeta que, recebendo dos deuses o sopro sagrado [chamado de hierón pneûma], entra em transe e canta, faz poesia.
Ao esquecerem o texto tão exaustivamente ensaiado, os garotos são tomados por “palavras de outro ar .” Diz o narrador:
“Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava o forte o belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez e nunca mais.”
Vêem o não-visto
A infância na obra de Guimarães Rosa nunca é figurante. O “menino” Diadorim, de Grande sertão: Veredas (1956) por exemplo, tem coragem e brilho ímpares. O encontro com ele, na infância, marcará para sempre Riobaldo, será determinante para o amor sem-nome que lhe dedicará. Diadorim menino,carrega consigo uma aura de escolhido, de enviado. Não é uma criança comum: “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que careço de ser diferente, muito diferente...”.
Aliás, não há lugar comum para as crianças de Guimarães Rosa. Do garoto de “As Margens da Alegria” e “Os Cimos” [Primeriras Estórias] ao menino Guirigó, que conduz o cego Borromeu em Grande sertão: Veredas, toda criança vê mais do que os adultos em sua volta podem imaginar. Vêem o não-visto. A poesia que inaugura todas as coisas.

Texto originalmente publicado em:

VERUNSCHK, Micheliny
2008 Crianças de lá: Miguilim, Dito, Nhinhinha, Brejeirinha, Diadorim e o poder alegre, criativo e livre do Homo ludens na obra de Rosa. Revista Discutindo Literatura- especial Guimarães Rosa. Ano 1, no. 04. P.p. 41-3

sexta-feira, 19 de março de 2010

Manoel de Barros ou Guimarães Rosa?

Quem assume ter uma paixão literária, como eu tenho por Guimarães Rosa, frequentemente é chamado a se JUSTIFICAR por sua "escolha". Isso é claro para mim, afinal já perdi a conta de quantas vezes tive de responder "Por que Guimarães Rosa e não... - a lista de comparações é enorme, mas os mais comumente usados são Machado de Assis, Goethe, João Cabral...)?
Ora, no filme "O Segredo dos seus olhos" a resposta a essa pergunta -seja qual for o escritor proposto para substituir minha paixão por Guimarães Rosa- é dada:
NINGUÉM MUDA O OBJETO DE UMA PAIXÃO. ISSO NÃO SE SUBSTITUI, NÃO SE TROCA, NÃO SE CONTROLA.
É isso.
Mas atualmente, talvez pelo lançamento do livro "Menino do Mato", sempre me perguntam por que faço doutorado sobre infância e uso Guimarães Rosa e não Manoel de Barros?
Ora, além da minha paixão, tenho outras 2 0u 3 colocações racionais :
1-Se trato de crianças em Rosa, devo lembrar que não são quaisquer crianças: são crianças pobres migrantes brasileiras, que tem, incrivelmente, sua delicadeza, sensibilidade e inteligência representadas ... as crianças de Barros são crianças, no geral. Não sou pedagoga, saca?
2-No universo de Rosa não tem só ele - o que já seria ótimo - mas tem também o sertão - emblema e alegoria do desconhecido - e os sertanejos - os moldadores de linguagem. E mesmo Barros era grande admirador de Rosa, como podemos ler aqui.
Em Rosa não só crianças vivem em "estado de infância", em barros só elas.
3- Não estou fazendo uma pesquisa sobre "crianças" e usando o Guimarães Rosa para isso.
A verdade é o oposto: FAÇO UMA PESQUISA SOBRE GUIMARÃES ROSA E, NESSE MOMENTO, ESTOU CENTRADA NO TEMA INFÂNCIA.
Para mim está mais do que claro, se a você não está, deixe-me em paz com minha paixão.
Obrigada!

quarta-feira, 17 de março de 2010

O BRASIL AINDA PRECISA SE ENCONTRAR!


Fala-se muito - especialmente no meio acadêmico- que precisamos encontrar Brasil, e tal...
Acho que isso é pular etapas... penso que o Brasil é como o diabo do Grande Sertão:"não queria existir"! Ele ainda é tão fluído!
Isso me (re) lembra o filme que eu amo "Central do Brasil" -e, aquele cujo subtítulo podia ser a"a verdadeira História do Brasil"- que começa e termina com o samba "Preciso me encontrar"... e esse "deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar rir pra não chorar..."
Sentir/pensar isso é, para mim, uma razão de vida!
Pensei muito isso no meu mestrado, agora no início do doutorado, penso no Brasil mais profundamente: Como tudo aqui ainda está em fase inicial!
Assim como pensava Oswald de Andrade nos anos 1920, o Brasil é um Estado criança, a ser formado, e ainda é? Acho que sim!
Aqui ainda existe esse tipo de coisa:





O que faremos ? O que podemos fazer?



domingo, 14 de março de 2010

Rir para não chorar- professor sustenta que humor compensa a falta de identidade

Recebi esta manhã, repassei aos contatos por e-mail e colo aqui:
Dá um certo trabalhinho acessar pois tem que fazer inscrição no site .... mas vale a pena, é um comentário bem interessante, começando pelo título ( o mesmo deste post) que chama a atenção do leitor :"Rir para não chorar- professor sustenta que humor compensa a falta de identidade"
O texto rápido e ágil da resenha desperta a vontade de ler (ou reler) o livro, especialmente para mim que tenho pensado em e sentido na pele, mais do que nunca, os descompassos desta terra onde vivemos. Não sei porque só agora "descobriram" esse livro, mas acho que é fundamental ler esse livro nesse contexto de comemorações sobre a Copa do mundo e das Olimpíadas, onde todos se sentem orgulhosos de serem brasileiros e se emocionam com o Hino Nacional, mas alguém sabe o que significa, de verdade, ser brasileiro?
Espero, mesmo, que mais pessoas leiam esse livro do Elias porque é, ao meu ver, um daqueles trabalhos de pesquisas que muita gente tem que fazer até que se possa pensar em alguma identidade brasileira, que é toda mal costurada e construída sobre os paradigmas da individualidade e da exclusão.
Acessem o link
http://home.dgabc.com.br/diariovirtual/zomm.asp?pg=DiáriodoGrandeABC_14262/64002&prt=1
Grata pela atenção e boa leitura aos que se interessarem

sábado, 13 de março de 2010

Engessamento cultural de um bebê, por Clarice Lispector

Vou colar aqui, na íntegra, o conto onde Clarice Lispector tenta representar o início do processo de "engessamento" cultural de um bebê... de como ele é livre e vai se formatando... é muito interessante! Vejam só:




Menino a Bico de Pena - Clarice Lispector

Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, é inútil: não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o mesmo que será médico ou carpinteiro.

Enquanto isso – lá está ele sentado no chão, de um real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar.

Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera.Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu autossacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.

Mas por enquanto ei-lo sentado no chão, imerso num vazio profundo. Da cozinha a mãe se certifica: “você está quietinho aí?” Chamado ao trabalho, o menino ergue-se com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno. Conseguindo isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. Pois levantar-se teve consequências e consequências: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita.

E na parede tem o retrato de O Menino. É difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não treinou. Mas eis que sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Ter pestanejado desliga-o por uma fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz – num único gesto total, ele cai sentado. Da boca entreaberta pelo esforço de vida a baba clara escorre e pinga no chão. Olha o pingo bem de perto, como a uma formiga.

O braço ergue-se, avança em árduo mecanismo de etapas. E de súbito, como para prender um inefável, com inesperada violência ele achata a baba com a palma da mão. Pestaneja, espera. Finalmente, passado o tempo necessário que se tem de esperar pelas coisas, ele destampa cuidadosamente a mão e olha no assoalho o fruto da experiência. O chão está vazio. Em nova brusca etapa, olha a mão: o pingo de baba está, pois, colado na palma. Agora ele sabe disso também. Então, de olhos bem abertos, lambe a baba que pertence ao menino. Ele pensa bem alto: menino. “Quem é que você está chamando?”, pergunta a mãe lá da cozinha.
Com esforço e gentileza ele olha pela sala, procura quem a mãe diz que ele está chamando, vira-se e cai para trás. Enquanto chora, vê a sala entortada e refratada pelas lágrimas, o volume branco cresce até ele – mãe! absorve-o com braços fortes, e eis que o menino está bem no alto do ar, bem no quente e no bom. O teto está mais perto, agora; a mesa, embaixo. E, como ele não pode mais de cansaço, começa a revirar as pupilas até que estas vão mergulhando na linha de horizonte dos olhos. Fecha-os sobre a última imagem, as grades da cama. Adormece esgotado e sereno.

A água secou na boca. A mosca bate no vidro. O sono do menino é raiado de claridade e calor, o sono vibra no ar. Até que, em pesadelo súbito, uma das palavras que ele aprendeu lhe ocorre: ele estremece violentamente, abre os olhos. E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe. O que ele pensa estoura em choro pela casa toda.

Enquanto chora, vai se reconhecendo, transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe.
Até que o ruído familiar entra pela porta e o menino, mudo de interesse pelo que o poder de um menino provoca, para de chorar: mãe. Mãe é: não morrer. E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá.

É mãe, sim é mãe com fralda na mão. A partir de ver a fralda, ele recomeça a chorar. “Pois se você está todo molhado?” A notícia o espanta, sua curiosidade recomeça, mas agora uma curiosidade confortável e garantida. Olha com cegueira o próprio molhado, em nova etapa olha a mãe. Mas de repente se retesa e escuta com o corpo todo, o coração batendo pesado na barriga: “fonfom!”, reconhece ele de repente num grito de vitória e terror – o menino acaba de reconhecer!

“Isso mesmo!”, diz a mãe com orgulho, “isso mesmo, meu amor, é fonfom que passou agora pela rua, vou contar para o papai que você já aprendeu, é assim mesmo que se diz: fonfom, meu amor!”, diz a mãe puxando-o de baixo para cima, inclinando-o para trás, puxando-o de novo de baixo para cima. Em todas as posições o menino conserva os olhos bem abertos. Secos como a fralda nova.

sexta-feira, 12 de março de 2010

SOBRE O JOGO DO SANTÁSTCO



Nesta semana, nós torcedores do santástco, pudemos assistir a mais um espetáculo dos meninos da vila!

Não falo só da goleada de 10 a 0, mas muito mais da forma de jogo ali apresentada... ali estavam os "meninos e bola", que caracteriza o futebol arte!

E as comemorações? Que performances!

Se for assim, dá vontade de pensar mais no futebol - nosso veneno remédio- porqui vi sendo executada ali a "imagem do pensamento" de Benjamin:

"O jogo tem devotos apaixonados, que o amam por ele mesmo e de modo algum pelo que ele dá"

Isso eu também sempre percebi -salvo alguns momentos isolados - no Corinthians...

Mas no Santos tivemos esta semana esse mesmo pensdamento expresso em momentos lúdicos ... que a ténica maquinal não nos roube esse prazer intenso!

quinta-feira, 11 de março de 2010

Projeto que regulamenta profissão de historiador é aprovado na CAS

A Comissão de Assuntos Sociais do Senado (CAS) aprovou nesta quarta-feira (10) o PLS 368/09, projeto de lei que regulamenta a profissão de historiador. O autor da proposta é o senador Paulo Paim (PT-RS). O texto foi votado em decisão terminativa.

O relator da matéria, senador Cristovam Buarque (PDT-DF), afirmou durante a votação desta quarta que "esse projeto não impede o desempenho da atividade de historiador por aqueles que o fazem por vontade própria ou vocação; apenas garante para os respectivos cargos públicos a exigência do diploma de historiador".

O projeto define que a profissão de historiador poderá ser exercida pelos diplomados em curso superior de graduação, mestrado ou doutorado em história. As atividades desse profissional são, de acordo com o projeto, o magistério; a organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas históricos; o planejamento, a organização, a implantação e a direção de serviços de pesquisa histórica; o assessoramento para avaliação e seleção de documentos para fins de preservação; e a elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.

Em seu voto pela aprovação do projeto, Cristovam observa que, atualmente, a atividade do historiador não está mais restrita à sala de aula e que a presença desse profissional é cada vez mais requisitada pelos centros culturais, museus, assessoria e consultorias a empresas de publicidade, turismo e produtores de cinema, jornalismo e televisão. Por esse motivo, o relator se manifesta favoravelmente a que a profissão seja valorizada e reconhecida legalmente.


O QUE ISSO SIGNIFICARÁ?
TEM QUE ALTERAR NA CARTIRA DE TRABALHO? (rs)

terça-feira, 9 de março de 2010

DEM (ônio) E O PAÍS DA HIPOCRISIA



Hoje, dia 09 de março de 2010, eu completo um ano com título de mestra! Não tenho muito o que comemorar por enquanto, afinal o que eu fiz com isso? Nada!
Quero dizer, consegui passar por algumas experiências amarguíssimas, como passar por processos seletivos de emprego (e nem era um emprego assim tão bom) e sofrer descarado preconceito racial, afinal não podemos esquecer que uma negra, no Brasil, ainda não passa no quesito "boa aparência" e o título não vale muito!
Claro, afinal aqui, lugar onde impera a hipocrisia, pode existir um partido político como o DEM, que tem representantes que
corresponsabilizam os negros pela escravidão! Sim, é isso mesmo que você leu!
Penso que a questão das cotas raciais é algo a ser muito discutido ainda, mas para uma mestra historiadora, dói imaginar que argumentos como o da "miscigenação consensual" (eca), que é uma leitura atravessada de Gilberto Freyre... Mas o título não vale nada frente à força do discurso excludente! Por isso que uma professora mestra não consegue se recolocar no mercado de trabalho facilmente, já que apresenta essa característica horrenda: É negra, é descendente daqueles que teriam sido os maiores responsáveis pela escravidão no Brasil! Não consigo suportar uma coisa dessas!

Como podem ver, se quisemos sermos gratificados por prezuízos históricos que recebemos, logo alguém inventa um discurso que consegue reverter nosso argumento e esse discurso é prontamente aceito... agora só falta inventarem uma proibição para negros de fazerem vestibular , não será muito difícil, "afinal eles foram os grandes culpados!"
Viram? Não dá para acreditar!
Pessoalmente, eu sei muito bem que a igualdade nem sempre é a melhor escolha: Não acho que mulher tenha que ser sempre considerada como igual a homem, nem criança igual a adulto, muito menos branco igual negro: temos que respeitar as diferenças, não homogeneizar os tipos!
Quando vamos ler e usar particamente a idéia de Ricoeur e aceitar o que é diferente?
Infelizmente acho que nunca!
Desculpem o gosto amargo, mas tá osso!

domingo, 7 de março de 2010

História da infância ou pré pré-história da criança?

Conhecemos a história social da infância, aquela que se debruça sobre os lugares que as crianças vieram ocupando no decorrer do tempo em diversas sociedades. Ou então, história da infância, que pode corresponder ao processo de invenção da criança como a conhecemos hoje e que é uma idéia moderna.
Sabe-se que chamamos de História tudo o que foi registrado como ocorrido no tempo após a invenção da escrita.
Segundo autores contemporâneos, infância é um fenômeno que não pode ser considerado independentemente da linguagem, que para as crianças, seria oral. (AGMBEN, Giogio.Infância e História: Destruição da experiência e origem da história.Belo Horizonte: Humanitas. UFMG.2008) Então como pensar numa história da criança, se a criança é pura vivência e a História pressupõe reflexão e narrativa?
Apesar de esforços como o de Mary DelPriore e seu livro muito ao modo dos franceses da História da Vida Privada, ouviu vozes de pesquisadores, sociólogos, historiadores, pedagogos, etc, para organizar seu livro "História das crianças no Brasil", onde, como vocês podem imaginar, vemos um excelente livro sobre história da infância no Brasil, não sobre história da criança brasileira.
Atualmente -e isso cabe aqui como o registro inicial de um processo de pesquisa- acho que se a criança pode ser conceituada como uso/não uso de linguagem e sua linguagem não considera a escrita, talvez possamos pensar com mais propriedade em uma pré-história da criança.
Como seria isso? (ótima pergunta, não acharam?) rs
Penso que para respondê-la teríamos que recuar para muito antes do advento da linguagem escrita e até mesmo da linguagem oral, quando tudo era silêncio e ruído:

Mas acredita-se, hoje em dia, que o cérebro humano possui um "módulo de linguagem", que seria inato e corresponderia a comunicação não verbal (daí a hipótese do ser humano ser possivelmente um ser narrativo), ou à fala.
Para podermos falar, precisamos regular a passagem do ar (preciso estudar mais sobre isso). Ora, o que é regular e sistematizar a passagem do tempo? É adquirir ritmo!
A primeira linguagem da criança pode não ser nem escrita nem oral, mas sim rítmica.
Crianças são muito atraídas por experiências rítmicas, não são? Elas adoram músicas ritmadas, que conseguem seguir facilmente... sim, estamos no mundo pré histórico, no máximo de primitivo possível.Eu estudo um escritor que se voltou para a linguagem não verbal de sertanejos, ou seja, linguagem de seres que vivem no sertão (que é alegoria do primitivo, do desconhecido, do pré histórico?), uma linguagem que não deve ser considerada sem valorizar o que nela está expresso pelo ritmo... por isso que deve ler Guimarães Rosa em voz alta e atentar para o que nele pulsa ritimicamente!
Vocês devem achar que eu estou louca, não duvido dessa possibilidade...mas tudo isso ainda está muito no começo. Veremos no que vai dar.

sexta-feira, 5 de março de 2010

ABRACADABRA

As crianças acreditam e usam PALAVRAS MÁGICAS, já nos disse Todorov, que essa utilidade lhes era confirmada cotidianamente, muito rapidamente elas "percebem" que bata falar "mãe" ou "mamá", qu essas coisas se tornem realidadem, como desejaram... como acontece com Nhinhinha, do conto rosiano "A Menina de lá"...
Mas pensando além da esfera cotidiana, qual é a palavra mágica mais conhecida po excelência?
é ABRACADABRA!
Nunca me esquecerei de ter visto em algum dicionário etimológico (não lembro a referência) a seguinte explicação (que reencontrei na wikipédia:
Hoje a palavra é normalmente usada como encantamento por mágicos de palco, principalmente por ilusionistas. Antigamente, porém, acreditava-se no poder de tal palavra para a cura de febres e inflamações. A primeira menção conhecida à mesma foi feita no segundo século depois de Cristo, durante o governo de Septímio Severo, num poema chamado De Medicina Praecepta (em um tratado médico escrito em versos), pelo médico Serenus Sammonicus, ao imperador de Roma Caracala, que prescreveu que o imperador usasse um amuleto com a palavra escrita num cone vertical para curar sua doença:

A B R A C A D A B R A

A B R A C A D A B R

A B R A C A D A B

A B R A C A D A

A B R A C A D

A B R A C A

A B R A C

A B R A

A B R

A B

A

De acordo com Godfrey Higgins, tinha origem em "Abra" ou "Abar", o deus Celta, e "Cad", que significa Santo. Era usado como um talismã, com a palavra gravado sobre um Kameas (Amuleto quadrado), transformando-se em um amuleto. Segundo Helena Petrovna Blavatsky, Higgins estava quase certo, o termo era uma corruptela da palavra gnóstica "Abrasax" e essa, por sua vez, era uma corruptela de uma palavra antiga sagrada copta ou egípcia, uma fórmula mágica que significava "não me firas", sendo que seus hieroglifos se referiam à divindade como "Pai". Era comumente utilizado sobre o peito sob as vestimentas.


A origem da palavra "abracadabra" ainda não foi totalmente esclarecida, havendo diversas teorias sobre a mesma:

"Eu crio ao falar" [SACA A IDÉIA DE PALAVRA MÁGICA E REALIZAÇÃO DOS DESEJOS? ENTÃO...]
Uma possível origem seria do Aramaico: אברא כדברא avra kedabra que significa "Eu crio ao falar".

Maldição e pestilência
Aqui há o ponto de vista de que a palavra deriva do Hebraico, ha-brachah, que significa bênção, e dabra, forma em Aramaico da palavra em Hebraico dever, que significa pestilência.

Pai, Filho, Espírito Santo
Abracadabra viria das palavras em Hebraico av (pai), ben (filho) e ruakh hakodesh (o espírito santo).

Desapareça como essa palavra [QUE VIOLÊNCIA! RS]

Alguns argumentam que a palavra viria do Aramaico abhadda kedhabhra, que significa 'desaparecer como essa palavra'. Acredita-se que tal forma era usada para combater diversas doenças.

Abraxas
É também dito que a palavra provém de Abraxas, uma palavra gnóstica para Deus. Ela também é atribuída a Abracalan (ou Aracalan), que diziam ser tanto um deus sírio quando símbolo mágico judaico.

Outras teorias
[MAIS VIOLÊNCIA! RS]
Outras teorias dizem que a palavra "abracadabra" deriva da união das palavras hebraicas abreg - ad - habra que juntas significam "fulmine com seu raio". Há também a teoria de que "abracadabra" tenha surgido pela união das palavras celtas abra (Deus) - cad (Santo). Uma curiosidade notável a respeito de "abracadabra" é que a pronúncia da palavra é praticamente igual em quase todas as línguas.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A Coruja tailandesa e Guimarães Rosa

Nas imagens do dia do portal UOL vemos a fotografia de uma coruja tailandesa piscando em Bancoc. Vejamos:

Vocês podem me perguntar: E daí?
Eu respondo: Daí que me lembrei da minha dissertação, pois em Tutaméia, Guimarães Rosa colocava ao fim de cada conto ou o desenho de um caranguejo ou o de uma coruja...
Sobre a coruja eu escrevi o seguinte nas páginas 37-8:

"Esta é uma ave que assumiu a simbologia da inteligência, do ser ensimesmado, dotado de um olhar sábio, pois possui a capacidade de ver no escuro, daí que este animal também é associado à transformação dos processos, algumas vezes trazida pela idéia de morte de uma ordem anterior, uma tradição.
Segundo uma conhecida afirmação de Hegel sobre o papel da filosofia em sua época, esta assemelha-se à coruja de Minerva, que é uma ave que só levanta vôo ao entardecer e, nesse aspecto, aponta para o que só pode ser compreendido quando começa a deixar de acontecer.
Esta referência já havia sido indicada por Guimarães Rosa em seu texto A estória de Lélio e Lina, quando Lina – a velhinha – apresenta-se assim a Lélio – o seu mocinho:
'Rosalina. Você acha bonito o nome? Já fui mesmo rosa. Não pude ser mais tempo. Ninguém pode... Estou na desflôr. Mas estas mãos já foram muito beijadas. De seda... Depois, fui vendo que o tempo mudava, não estive querendo ser como a coruja – de tardinha, não se voa...'
Pensando neste texto de Guimarães Rosa, a imagem da coruja como representação de mudanças rápidas no cotidiano, trazidas por progressos ou modernidades - quando Rosalina foi vendo 'que o tempo mudava'- era preocupação comum nas representações literárias executadas pelas obras rosianas. " RODRIGUES, Camila. Mãos vazias e pássaros voando: Memória, invenção e História em Tutaméia de Guimarães Rosa. Pp. 37-8

O que acham dessas simbologias?

Eu acho muito interessante!


segunda-feira, 1 de março de 2010

Meu momento íntimo com José Midlin



Ontem, dia 28 de fevereiro de 2010 morreu o bibliófilo José Mindlin.
Não vou escrever sobre a Biblioteca Brasiliana (que está sendo organizada sob a coordenação do meu ex professor de História do Brasil colonial na USP, o Pedro Puntoni), nem sobre o amor aos livros e ao conhecimento - que são as mais difundidas características deste homem notável - porque sobre isso qualquer um pode pesquisar na Web e "aprender" sobre...
Quero escrever sobre um rápido momento de intimidade que vivi com Mindlin já nos anos 2000, afinal narrativa alguma pode superar a força da morte, que só pode ser vencida pelos sentimentos, como o que nasceu depois daquele momento "íntimo"!
Foi no inesquecível dia 15 de maio de 2006 (o dia do ataque do PCC), quando foram inaugurados os trabalhos do Seminário internacional "Cinqüentenário Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile" aqui na USP...
Mindlin e Antonio Cândido foram os convidados para a inesquecível palestra inicial e eu estava no céu: De repente todos os rosianos, toda a bibliografia no meu mestrado estava ali para ouvir, em pessoa! (rs)
Foi uma emoção sem par... mas o momento que me recordo sempre com emoção foi quando, ao fim da primeira manhã dos trabalhos, antes de sairmos do anfiteatro para o almoço, vi Mindlin sozinho aguardando a chegada de alguém para acompaná-lo (ele estava bem velhinho já) e com a minha cara de pau característica não pude perder a oportunidade de falar com ele, queria dizer que adorava, todas as noites, ir dormir ouvindo ele ler o "Encontro de Riobaldo com o menino" no CD "7 Episódios do Grande Sertão: Veredas":






Mindlin não conseguia me ouvir direito em meio ao barulho de tanta gente , então me pediu que falasse bem perto do seu ouvido, assim eu fiz e ele abriu um sorriso lindo, como se me reconhecesse "aqui uma outra amante de Rosa!" e disse que a maravilha estava toda no texto de Rosa, que ele apenas havia tentado ler com a grandiosidade que ele emanava!
Que prazer foi aquele momento!
Eu ainda ouço o CD com a leitura de Mindlin com freqüência e nada pagará esta memória de mim!
Eu poderei dizer que compartilhei com Mindlin nosso amor pelo maior escritor brasileiro, João Guimarães Rosa