No dia 23 de maio de 2020 foi apresentado e discutido o segundo filme da Mostra de Cinemas Africanos 2020, que esse ano está acontecendo online. Tratou-se do "Moolaadé" (2004), o último filme do famoso diretor senegalês Ousmane Sembène (1923-2007).
Assim como no último filme discutido, este também se passa numa aldeia do Senegal e conta a história de Colle, uma mulher que não permitiu que sua filha sofresse a mutilação genital –como de costume na aldeia de tradição islâmica – e no momento do filme se apegar a ela é a única saída para as seis meninas , com idades entre 4 e 9 anos, que devem passar pelo ritual num determinado dia e não querem ser “cortadas". Colle, então, lança mão do “mooladé” (proteção sagrada dos ancestrais) para tentar evitar que as jovens sejam tocadas no período indicado.
Como se mostra pela sinopse, o filme se estrutura sobre a questão das tradições, uma vez que mostra que uma prática antiga, que na verdade já começa a ser vista como mais uma violenta tentativa de dominação mulher, só pode ser combatida com outra tradição sagrada.
Diferentemente do que acontece no filme da Safi Faye , a vida aldeã retratada por Sembène me pareceu muito peculiar, porque nem no cotidiano, nem na ritualística, se enquadra a nada parecido com o que eu reconheceria como algo africano herdado por nós no Brasil. Apenas nas atrizes eu vi muito das negras brasileiras, não jovens mocinhas, mas senhoras casadas e felizes com seus corpos. Acho que isso se deve ao fato de que na aldeia de Moolaadé se aborda diretamente a questão da África islâmica, com famílias poligâmicas e tradições muito específicas.
Para comentar o filme, a Mostra convidou o historiador e professor Márcio Paim que nos esclareceu que a tradição de onde nasceu Sembène é muito mais antiga do que aquela centrada nas lutas anti coloniais da década de 1970, pois ele descende de uma etnia muito mas antiga, referente ao Império do Mali, aproximadamente no século VIII! Em sua rica participação Paim abordou muitas questões extra filme e pontuou três temas principais comumente abordados criticamente na escola de cinema africano liderada por Ousmane Sembène, e nesse filme inclusive: a religião/a questão de gênero/a colonização. Sobre a questão da mutilação , para Paim, esse é um processo de hierarquização que remonta a períodos antigos e aborda o tema da preservação de tradição entre os grupos, mas atualmente sua manutenção tem vendo questionada por trazer dor e sofrimento à mulher.
As mulheres no filme se revoltam contra essa tradiação, não todas, mas muitas seguem a líder Colle, porque já tinham sido “informadas” pelo rádio (elemento de modernização da aldeia) e pelos programas ocidentais franceses, de que esse tipo de tradição violenta não seria mais necessária. Para Sembène, a crítica à postura submissa das mulheres, trazidas pela colonização islâmica, negava a possibilidade de resgate de uma cultura de matriliearidade, presente em diversas tradições africanas mas que, com a entrada do islã, acabaram submetendo certos poderes femininos, como a de indicar sucessão de líderes por exemplo, à uma figura masculina, quase sempre o filho mais velho.
A luta dessas mulheres contra a castração feminina, além de um retorno à crença na ancestralidade africana em oposição à imposição da religião islâmica trazida com a colonização, seria também um aceno para que a mulher volte a ocupar um papel importante na sociedade, mas assim era antes da instauração o Islã.
Esse filme tem muitas questões, não posso desenvolver todas agora, em breve assinto de novo e penso melhor sobre tudo.