sexta-feira, 18 de junho de 2021

O passado movente em "As reputações" de Juan Gabriel Vásquez

 No Brasil o romance “As reputações”(2013) do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez foi traduzido por Joana Angélica d’Ávila Melo e publicado em uma belíssima edição Bertrand Brasil em 2016:

capa Angelo Allevato Bottino, mostrando um busto na ponta de um lápis grafite.

Depois de uma entrada no mundo do Gabo, queria conhecer mais da literatura colombiana além dele, além do Nobel, o que se está escrevendo na Colômbia no século XXI. Ai peguei essa indicação de Rodrigo Vilela, do Canal ler para viver e, pela sinopse me atraiu.

O livro tem 140 páginas com uma narrativa dividida em três partes, com uma reviravoltinha em cada uma delas. Narra a história do cartunista Javier Mallarino, famoso pelos “comentários” políticos no maior jornal da Colômbia e que por sua atividade crítica tão importante, chegou a receber muitas ameaças para si, sua esposa Magdalena e sua filha Beatriz, o que acabou obrigando-o a se separar e morar só nas montanhas, perto do Páramo ( o real, geográfico), vivendo como um eremita.

O livro começa com uma homenagem que ele recebe, pelos 40 anos de serviços prestados nos jornais e nessa ocasião, uma mulher de 35 anos, Samantha Leal,que ele não sabia, mas já havia encontrado há 28 anos e chega para lhe revelar um fato muito importante para as mulheres latino americanas, que pode vir a mexer com toda sua vida, memória e reputação.

Como tenho gostado muito dos últimos livros que li recentemente, a expectativa com esse não era pequena, achei que ia quebrar o clima mórbido das duas últimas leituras (pesou muito no meu espírito todo aquele luto e morte de O avesso da pele e Pedro Páramo), afinal o livro é recomentado por um grande autor latino americano, o Mario Vargas Lhosa, esperava algo meio clássico , esperava muito e a queda foi dolorosa porque a leitura não fluiu. Não que seja mal escrito, nem nada, ou que seja um livro cômico, mas o ritmo é leve demais, não sei. Me me lembrou muito algumas anedotas que lia quando pesquisava humor no pós-doc e descobri que talvez eu nem tenha tanto senso de humor assim.

O fato é que eu demorei muito para ler esse livrinho, tinha muita vontade de fechar o volume logo, talvez porque o narrador, em terceira pessoa, dá muitas voltas em todos os temas, talvez para nos apresentar melhor Javier Mallarino, o que ele fazia e pensava, mas como fazia isso sempre, foi ficando muito enfadonho. Todas as noites olhava para ele e ia fazer outra coisa, algum ranço louco, como se ele fosse mesmo muito ruim. Não é. Tudo bem que eu venho de obras maravilhosas, clássicos, mas isso não é motivo de eu realmente não querer ler esse livro, essa é a verdade. 

Tem uma citação atribuída ao Kafka que eu sempre me lembrava enquanto lia e não gostava do livro colombiano :

"Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?"

Ora, por vários motivos. Para conhecer um jovem autor  colombiano, para ver como ele tratava de temáticas humorísticas na construção do seu romance, quem sabe indicá-lo ao grupo de estudos, porque ele discute não só a importância social do humor, como também as práticas em trechos como este discurso de Mallarino, na cerimônia em sua  homenagem:

"... As coisas não mudaram muito. Nestes quarenta anos, me ocorre agora, há pelo menos duas que não mudaram: primeiro, aquilo que nos preocupa; segundo, aquilo que nos faz rir. Isso continua igual, igual como há quarentena anos, e temo bastante que continuará igual nos próximos quarenta anos. Às boas caricaturas buscam encontrar a constante de uma pessoa: aquilo que nunca muda, aquilo que permanece e nos permite reconhecer quem não vimos em mil anos."(p.38)

Ou quando Mallarino se refere ao seu mentor, em trecho fundamental para pensarmos no que, depois, vai acontecer no romance :

“Ricardo Rendón, meu mestre, certa vez comparou a caricatura a um ferrão, mas recheado de mel. Eu tenho essa frase em meu local de trabalho, mais ou menos como um marinheiro tem uma bússola. Um ferrão recheado de mel. A identidade do caricaturista depende das medidas com as quais ele mistura os dois ingredientes, mas os dois ingredientes devem estar ali. Não há caricatura sem ferrão e tampouco sem mel. Não há caricatura se não houver subversão, porque toda imagem memorável de um político é, por natureza, subversiva: desequilibra o solene e delata o impostor. Mas também não há caricatura se não houver sorriso, ainda que seja um sorriso amargo , na cara do leitor...”p.40

Ou esse , quase metalinguístico :

“as caricaturas podem exagerar a realidade, mas não inventá-la. Podem distorcer, mas nunca mentir” (p.39)

Importantes teorias sobre humor, adequadas à construção ficcional. Não deve ter sido fácil entrelaçar, assisti entrevistas de Vasquez e ele conta que demorou muito para escrever esse livro, teve que estudar bastante o mundo dos caricaturistas. A isso eu dou imenso valor. No entanto, para mim, pessoalmente,  não serviu para deixar o livro mais sedutor.

Para não dizer que o livro que me desagradou por completo, eu  gostei de como ele aborda a questão da memória, base mantenedora ou devastadora das reputações, a partir de uma personagem da história de Alice de Carroll, quando lembra que

“é muito pobre a memória que só funciona para trás” (p.122)

Esse passado móvel e instável trazido pelas memórias era como uma outra versão legítima do acontecido, que ganhamos de presente quando narramos o lembrado, mas sempre o modificamos. 

Nas memórias de uma festa há muitos anos, na casa de Mallarino ele diz:

"... não sei que coisas me passaram pela cabeça, mas não fui o único: todos os que estávamos na sala paramos de fazer o que estávamos fazendo. As taças foram deixadas na mesa. As conversas se interromperam. Os que estavam sentados se levantaram. Em minha memória, até a música se desligou, mas isso é impossível, que a música tenha se desligado automaticamente messe exato momenti, e no entanto eu me recordo assim: a música se desligou. A memória faz essas coisas, não é? A memória desliga as músicas e coloca pintas na pele das pessoas e muda de lugar as casas dos amigos.”(p.79, grifo meu)

Pois então, se o acontecido no passado não pode mais ser mudado, a narrativa dele , trazida pela memória, pode e essa é uma das graças de se contar a História.