No Brasil o romance “As reputações”(2013) do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez foi traduzido por Joana Angélica d’Ávila Melo e publicado em uma belíssima edição Bertrand Brasil em 2016:
capa Angelo Allevato Bottino, mostrando um busto na ponta de um lápis grafite. |
Depois de uma entrada no mundo do Gabo, queria conhecer mais da literatura colombiana além dele, além do Nobel, o que se está escrevendo na Colômbia no século XXI. Ai peguei essa indicação de Rodrigo Vilela, do Canal ler para viver e, pela sinopse me atraiu.
O livro tem 140 páginas com uma narrativa dividida em três partes, com uma reviravoltinha em cada uma delas. Narra a história do cartunista Javier Mallarino, famoso pelos “comentários” políticos no maior jornal da Colômbia e que por sua atividade crítica tão importante, chegou a receber muitas ameaças para si, sua esposa Magdalena e sua filha Beatriz, o que acabou obrigando-o a se separar e morar só nas montanhas, perto do Páramo ( o real, geográfico), vivendo como um eremita.
O livro começa com uma homenagem que ele recebe, pelos 40 anos de serviços prestados nos jornais e nessa ocasião, uma mulher de 35 anos, Samantha Leal,que ele não sabia, mas já havia encontrado há 28 anos e chega para lhe revelar um fato muito importante para as mulheres latino americanas, que pode vir a mexer com toda sua vida, memória e reputação.
Como tenho gostado muito dos últimos livros que li recentemente, a expectativa com esse não era pequena, achei que ia quebrar o clima mórbido das duas últimas leituras (pesou muito no meu espírito todo aquele luto e morte de O avesso da pele e Pedro Páramo), afinal o livro é recomentado por um grande autor latino americano, o Mario Vargas Lhosa, esperava algo meio clássico , esperava muito e a queda foi dolorosa porque a leitura não fluiu. Não que seja mal escrito, nem nada, ou que seja um livro cômico, mas o ritmo é leve demais, não sei. Me me lembrou muito algumas anedotas que lia quando pesquisava humor no pós-doc e descobri que talvez eu nem tenha tanto senso de humor assim.
O fato é que eu demorei muito para ler esse livrinho, tinha muita vontade de fechar o volume logo, talvez porque o narrador, em terceira pessoa, dá muitas voltas em todos os temas, talvez para nos apresentar melhor Javier Mallarino, o que ele fazia e pensava, mas como fazia isso sempre, foi ficando muito enfadonho. Todas as noites olhava para ele e ia fazer outra coisa, algum ranço louco, como se ele fosse mesmo muito ruim. Não é. Tudo bem que eu venho de obras maravilhosas, clássicos, mas isso não é motivo de eu realmente não querer ler esse livro, essa é a verdade.
Tem uma citação atribuída ao Kafka que eu sempre me lembrava enquanto lia e não gostava do livro colombiano :
"Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?"
Ora, por vários motivos. Para conhecer um jovem autor colombiano, para ver como ele tratava de temáticas humorísticas na construção do seu romance, quem sabe indicá-lo ao grupo de estudos, porque ele discute não só a importância social do humor, como também as práticas em trechos como este discurso de Mallarino, na cerimônia em sua homenagem:
"... As coisas não mudaram muito. Nestes quarenta anos, me ocorre agora, há pelo menos duas que não mudaram: primeiro, aquilo que nos preocupa; segundo, aquilo que nos faz rir. Isso continua igual, igual como há quarentena anos, e temo bastante que continuará igual nos próximos quarenta anos. Às boas caricaturas buscam encontrar a constante de uma pessoa: aquilo que nunca muda, aquilo que permanece e nos permite reconhecer quem não vimos em mil anos."(p.38)
Ou quando Mallarino se refere ao seu mentor, em trecho fundamental para pensarmos no que, depois, vai acontecer no romance :
“Ricardo Rendón, meu mestre, certa vez comparou a caricatura a um ferrão, mas recheado de mel. Eu tenho essa frase em meu local de trabalho, mais ou menos como um marinheiro tem uma bússola. Um ferrão recheado de mel. A identidade do caricaturista depende das medidas com as quais ele mistura os dois ingredientes, mas os dois ingredientes devem estar ali. Não há caricatura sem ferrão e tampouco sem mel. Não há caricatura se não houver subversão, porque toda imagem memorável de um político é, por natureza, subversiva: desequilibra o solene e delata o impostor. Mas também não há caricatura se não houver sorriso, ainda que seja um sorriso amargo , na cara do leitor...”p.40
Ou esse , quase metalinguístico :
“as caricaturas podem exagerar a realidade, mas não inventá-la. Podem distorcer, mas nunca mentir” (p.39)
Importantes teorias sobre humor, adequadas à construção ficcional. Não deve ter sido fácil entrelaçar, assisti entrevistas de Vasquez e ele conta que demorou muito para escrever esse livro, teve que estudar bastante o mundo dos caricaturistas. A isso eu dou imenso valor. No entanto, para mim, pessoalmente, não serviu para deixar o livro mais sedutor.
Para não dizer que o livro que me desagradou por completo, eu gostei de como ele aborda a questão da memória, base mantenedora ou devastadora das reputações, a partir de uma personagem da história de Alice de Carroll, quando lembra que
“é muito pobre a memória que só funciona para trás” (p.122)
Esse passado móvel e instável trazido pelas memórias era como uma outra versão legítima do acontecido, que ganhamos de presente quando narramos o lembrado, mas sempre o modificamos.
Nas memórias de uma festa há muitos anos, na casa de Mallarino ele diz:
"... não sei que coisas me passaram pela cabeça, mas não fui o único: todos os que estávamos na sala paramos de fazer o que estávamos fazendo. As taças foram deixadas na mesa. As conversas se interromperam. Os que estavam sentados se levantaram. Em minha memória, até a música se desligou, mas isso é impossível, que a música tenha se desligado automaticamente messe exato momenti, e no entanto eu me recordo assim: a música se desligou. A memória faz essas coisas, não é? A memória desliga as músicas e coloca pintas na pele das pessoas e muda de lugar as casas dos amigos.”(p.79, grifo meu)
Pois então, se o acontecido no passado não pode mais ser mudado, a narrativa dele , trazida pela memória, pode e essa é uma das graças de se contar a História.