"História como missão
Nicolau Sevcenko encontrou no estudo da história o caminho para defrontar-se com os enigmas de seu passado
Publicado em 06 de agosto de 2010
TAGS: A Revolta da Vacina, Entrevista, história, Nicolau Sevcenko
Wilker Sousa
Nem todos podem se gabar de terem feito do desejo pessoal o fator preponderante na escolha de uma profissão. Ainda mais raros são aqueles capazes de fundir trajetória pessoal e profissional de tal modo a tornar obscura a fronteira entre elas. Separar Nicolau Sevcenko da história não é tarefa das mais fáceis. Nos idos da Revolução Russa, seu avô – oficial do exército daquele país – lutara ao lado dos tsaristas contra os bolcheviques, o que incutiu em sua família uma série de infortúnios que se arrastou por gerações. Forçados a fugirem do país, ante a implacável perseguição das tropas stalinistas, os Sevcenko perambularam por diversos países; muitos foram dizimados, outros conseguiram refúgio em regiões remotas como o Brasil. Embora distante dos olhos de Stalin, sua família aqui permaneceu sob o signo do medo, confinada em seu mundo particular. Uma vez firmada residência em terras brasileiras, optou-se então por bloquear esse passado, o que despertou a curiosidade do jovem Nicolau pelo estudo da história, na tentativa de desvendar aquele enigma pessoal.
Somado à busca por compreender o passado familiar estava o interesse por conhecer a cultura brasileira, da qual fora igualmente privado nos primeiros anos de vida. Tornou-se então uma referência na articulação entre o pensamento historiográfico e a cultura do Brasil, como atestam as obras Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República (1983), Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo Sociedade e Cultura nos Frementes anos 20 (1992) e A Revolta da Vacina (1983), cuja reedição chega às livrarias neste mês. Professor titular de história contemporânea na USP, acumula também experiência internacional, tendo lecionado nas universidades de Londres, Georgetown e Illinois, além de ser atualmente professor na célebre Universidade de Harvard.
Nicolau Sevcenko nos recebeu em sua casa no bairro do Belém, em São Paulo, onde vive na companhia de sua mulher – a artista plástica Cristina Carletti –, além de 12 gatos e dois cachorros: Tobby e Biruta, uma simpática vira-lata que anda em movimentos circulares. E não seria exagero dizer que aquela residência parece ser uma extensão de sua estreita relação com a história. Construída por arquitetos normandos em 1920 por ocasião do surto industrial paulista, preserva em sua fachada e interiores os resquícios de um passado com vistas a ser demolido pela desenfreada especulação imobiliária. Felizmente ainda nos resta quem deseja mantê-lo de pé.
CULT – O passado de sua família teve influência na sua escolha por estudar história?
Nicolau Sevcenko – Paradoxalmente, eu acho que sim porque meus familiares têm uma história muito trágica por serem refugiados políticos. Eles deixaram a Rússia literalmente fugidos, deixando para trás tudo o que tinham para poder comprar o direito de fugir e de sobreviver. De modo que, quando vieram para o Brasil, este era o lugar mais remoto do mundo, onde seria mais difícil encontrá-los. Sempre houve uma preocupação na família em bloquear esse passado. Havia uma instrução direta para os filhos das novas gerações nunca usarem o sobrenome, nunca dizerem quem são nem de onde vieram. Mesmo em casa, mantínhamos as cortinas fechadas, como uma espécie de blindagem em relação ao mundo externo. Então me acostumei a não cogitar, a não perguntar nada. Quando hoje penso por que fui fazer a opção por história, que é totalmente incomum na minha família, sem dúvida foi decisiva essa espécie de curiosidade sobre o passado longamente obscuro na minha memória.
CULT – O senhor perdeu seu pai aos cinco anos e foi obrigado a trabalhar desde cedo. Quais lembranças o senhor guarda daquele tempo?
Sevcenko – Eu e meu irmão nos tornamos órfãos de pai quando eu tinha cinco anos e ele sete. Então, nos pusemos a ajudar minha mãe a manter a família, porque, pouco tempo depois da morte do meu pai, ela também perdeu o emprego. Aí eu e meu irmão entramos no sistema informal e nos especializamos na coleta de metais para a reciclagem. Nós morávamos na zona leste de São Paulo, próximo ao Vale do Tamanduateí, onde estavam instaladas as primeiras grandes montadoras de automóveis. Elas jogavam toda a sucata industrial nas margens do rio, então nós íamos até lá, fazíamos a seleção e coletávamos os materiais que tinham valor para reciclagem.Era uma loucura. Imagine duas crianças subindo o vale do rio até a parte de cima do planalto da Vila Prudente e depois arrastando aqueles carrinhos o bairro inteiro, carregados de zinco, cobre, chumbo, latão, metais incrivelmente pesados, e a gente fazia isso como nossa rotina de vida.
CULT – E quais as marcas que essa experiência deixou em sua vida?
Sevcenko – Foi algo que tornou minha infância e adolescência incrivelmente penosas, mas ao mesmo tempo me deu essa contrapartida de endurecer o espírito no sentido de dar a ele a força, a energia e o ímpeto necessários para uma conquista intelectual e pessoal. Meu irmão se tornou engenheiro e eu construí uma carreira de historiador. Em nossa família, praticamente todos os outros tinham a orientação para a área das engenharias e das tecnologias aplicadas; fui o único que caiu para as humanidades. Obviamente isso causou uma certa crise familiar porque eles não entendiam e achavam que era uma opção completamente irresponsável. Durante um tempo fui estigmatizado, praticamente excluído do convívio familiar, até que começaram a aparecer notícias de um certo sucesso que deixou todo mundo muito surpreso e restaurou um pouco da minha respeitabilidade no núcleo familiar. Hoje em dia, a situação está muito mais tranquila e cordial.
CULT – Como seus pais eram refugiados políticos e pretendiam voltar para a Rússia, imagino que não havia uma assimilação da cultura brasileira em sua casa. Como foi seu contato com nossa língua e cultura?
Sevcenko – Você tem toda razão. Eles não tinham essa perspectiva de ficarem aqui como imigrantes. Era uma situação de transição e, no fundo, a grande expectativa era que o governo soviético fosse colapsar em algum momento. Eles não tinham a preocupação de criar raízes aqui, então não se deram nunca ao empenho de aprender a língua portuguesa, de assimilar a cultura. Nós fomos educados em russo e com as instituições características da cultura russa, e isso foi um problema muito grande para nossa integração aqui. Quando me dei conta de que as crianças com as quais eu brincava falavam outra língua, me queixei para minha mãe dizendo que eram todas estrangeiras e ela pela primeira vez falou: “Não, estrangeiros somos nós”.Como eu não aprendia a língua portuguesa em casa, tinha que aprender com as crianças. E elas eram cruéis: sempre ensinavam palavras que pudessem me causar algum constrangimento, o que me deixou por muito tempo muito inseguro com o uso da língua. Acredito que isso também contribuiu para que eu me tornasse especialista em história e cultura brasileira, na tentativa de entender o que para mim também era um grande enigma.
CULT – Deve ter sido penoso…
Sevcenko – Há também um outro aspecto da minha cultura familiar. O fato de eu ter nascido canhoto era visto como uma perversão do ponto de vista legal e também como um pecado segundo a Igreja. Isso fez com que minha mãe, contra sua vontade, por muito tempo amarrasse minha mão esquerda nas costas para me forçar usar a direita, o que acentuou uma condição de dislexia. Não a culpo, mas isso criou para mim uma condição irreversível, razão pela qual sou assim gaguejante, me faltam palavras óbvias, o que, para quem é professor, é problemático.
CULT – Muito de seu trabalho tem como base a articulação entre história e literatura. Essa abordagem encontrou resistência entre historiadores?
Sevcenko – Quando fiz minha pós-graduação nos anos 1970, no auge da ditadura, os grandes temas eram história econômica e história política. Eu tinha acentuado interesse pela questão cultural, o que não pegava bem porque parecia ser uma alienação do foco do debate e, nesse sentido, eu era percebido como uma presença que estava tirando o foco das discussões e despolitizando o ambiente. Quando formulei o projeto de doutorado, que daria o livro Literatura como Missão, as pessoas do Departamento de História em geral se acercaram de mim para dizer que aquele tipo de trabalho era incompatível com a pesquisa do departamento e que eu devia procurar o Departamento de Letras. Os responsáveis pela da área de Letras, por sua vez, encaminharam o projeto para o Departamento de Sociologia, que o encaminhou novamente para o Departamento de História. Então completei o ciclo e voltei, meio que contra a maré. Mas, na ocasião da defesa, a banca composta por professores consagrados [Sérgio Buarque de Holanda, Boris Schnaiderman, entre outros] me deu uma resposta tão favorável ao trabalho que pela primeira vez começaram a cogitar que talvez houvesse alguma coisa relevante.
CULT – O senhor possui quase 25 anos de experiência em universidades do exterior. Como analisa o interesse dos alunos estrangeiros pelo estudo da história brasileira e latino-americana?
Sevcenko – A sensação que tenho é a de um interesse contínuo que cresce mais ou menos como cresceu a projeção internacional do Brasil nestas últimas décadas. Houve um momento em que havia uma projeção cultural muito significativa, mas não havia, em contrapartida, uma compreensão do processo de desenvolvimento econômico e de remodelação da sociedade brasileira.
Hoje em dia, porém, sobretudo nos Estados Unidos, onde há um sentido muito forte de se entender a universidade como um ambiente profissionalizante, há uma enorme parcela da juventude que se interessa por trabalhos de sentido social ou ecológico ligados a ONGs. É esse o público que procura os cursos ligados ao Brasil ou à América Latina e que, de maneira geral, tem uma sensibilidade muito aguçada para a questão social, para a democratização, urbanização e melhoria das condições de vida das populações carentes.
CULT – De modo geral, a percepção do exterior com relação à história do Brasil é ainda marcada por estereótipos?
Sevcenko – Cada vez menos. Eu diria que a mídia sempre traz essa visão mais simplificada e redutiva, mas é claro que no ambiente universitário o interesse é sofisticar e qualificar essa visão. Hoje em dia há pessoas nos Estados Unidos e no Reino Unido que conhecem aspectos da realidade brasileira em profundidade e são capazes de discutir em igualdade de condição com os melhores cientistas sociais brasileiros.
CULT – Em comparação a essas universidades, qual a posição do Brasil com relação ao ensino da história?
Sevcenko – O Brasil tem um conjunto muito rico e diversificado de escolas historiográficas. Temos a influência francesa, especialmente na Universidade de São Paulo, a forte influência britânica na Unicamp e, de uma maneira mais equilibrada, a força de universidades no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Por toda parte há importantes centros de estudos históricos e encontros regionais e nacionais de historiadores que mantêm o debate em linha de conta com o melhor da produção internacional. Eu me sinto muito orgulhoso de pertencer à comunidade dos historiadores brasileiros e acho que o reconhecimento que encontrei fora do Brasil é justamente devido à qualidade da historiografia brasileira, não só da USP, mas desse grande contexto nacional.
CULT – Passemos, então ao livro A Revolta da Vacina. No prólogo desta edição, o senhor afirma se tratar de “um livro amargo”, dado o contexto em que foi escrito, em plena ditadura militar. O senhor acredita que muito do ímpeto de indignação característico daquela geração cedeu lugar à acomodação, à manutenção do status quo?
Sevcenko – É obviamente uma impressão pessoal porque eu venho de uma geração que lutou contra a ditadura militar, contra o obscurantismo da censura e da repressão. A juventude era estigmatizada como uma força turbulenta e “baderneira”, pois não se podia viver com espontaneidade a condição de ser jovem. Nós tínhamos a expectativa de que, quando a ditadura acabasse, toda essa enorme massa crítica ia se traduzir em um projeto de transformação do Brasil, traduzir-se em uma sociedade distributiva, democrática e inclusiva, mas absolutamente não foi isso que se deu.
O país tomou a linha de um conservadorismo que se instaurou no mundo a partir de meados dos anos 1970, em especial a partir da liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, responsáveis por trazer esse discurso que hoje domina o planeta. Então foi terrível ver toda aquela corrente de crítica, de indignação e de esperança acabar sendo reduzida a essa plataforma conservadora, representada pelas forças políticas que se tornaram hegemônicas na sociedade civil após o fim da ditadura militar.
CULT – Atualmente, o verbo “revoltar-se” tornou-se sinônimo de “nostalgia tola”?
Sevcenko – É triste, mas é. O verbo “revoltar-se” foi muito incorporado pela indústria, pelo mercado, pelo marketing no sentido de se fazer da revolta uma espécie de atitude fashion. Ser revoltado é o modo esperto de se assumir a juventude, aquilo que na linguagem do marketing se chama atitude. Infelizmente tudo a ver com roupas, marcas e estilos, nada a ver com conteúdo e substância. Até a revolta se tornou mercadoria.
CULT – À época da Revolta da Vacina, já se mostraram ineficazes os meios de se lidar com nossas mazelas sem se preocupar efetivamente com a raiz do problema. Passados mais de cem anos, ainda não aprendemos a lição?
Sevcenko – Quando escrevi o livro, eu o dediquei aos mortos da tragédia de Vila Socó, ocorrida em 1983, em Cubatão. Naquela ocasião houve um vazamento nas redes de distribuição de derivados de petróleo das refinarias e a população pobre da região foi se abastecer daquele combustível precioso. A favela se expandiu em cima das áreas ensopadas e as poucas pessoas que tentaram fazer alguma espécie de clamor para que a autoridade pública removesse a população dali não obtiveram sucesso. O fato é que ninguém tinha coragem de atacar o problema, muito menos a autoridade pública, pois ela negocia votos. Logo, quanto mais gente morasse lá, mais votos. Então aquilo cresceu exponencialmente até o dia em que virou uma tocha e todo mundo que estava ali foi reduzido a cinzas.
Quantas dessas tragédias anunciadas no Brasil se tornam moeda de negociação política? Por que proliferam essas construções em áreas de risco, onde qualquer alteração das condições atmosféricas ou do regime das águas vai causar uma tragédia? Porque justamente são áreas que se valorizam no mercado informal e atraem uma grande quantidade de pessoas, tornando mais fácil para as autoridades criar um sentido de negociação. Tolera-se que se assentem lá e isso significa que estarão em dívida e, portanto, terão que respaldar essas autoridades nas eleições.
CULT – O senhor acredita que por trás do discurso assistencialista à pobreza está, sobretudo, o desejo de preservá-la enquanto elemento essencial para a manutenção do nosso sistema político?
Sevcenko – Sim, é isso que eu chamo de política assistencial remediadora. Não se quer eliminar a pobreza. O que se quer é um modo de se administrar a desigualdade para que ela se torne uma estrutura de manutenção do status quo político. Status esse que prevalece no país e não é muito diferente daquele que ensejou a Revolta da Vacina no início da República. Se então pensarmos ou na Revolta da Vacina ou na Vila Socó ou nas enchentes desencadeadas do sul até o extremo norte do país, estamos vendo o fenômeno em uma estrutura que se mantém a mesma, por mais que se diga que há um discurso de reforma e de transformação social.
CULT – A exemplo do que foi feito nos primórdios da Primeira República, o Brasil ainda busca ocultar a todo custo o flagelo da escravidão?
Sevcenko – Eu acho que sim. Ela é na verdade a nossa herança maldita, a nossa dívida social que o país não consegue contemplar. Essa estrutura retrógrada praticamente nunca foi confrontada e nunca foi substancialmente transformada na passagem do período monárquico para o período republicano. Quando se objetivava fazer a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, optou-se imediatamente pelo trabalho assalariado do imigrante europeu, deixando completamente à margem toda essa enorme população egressa da escravidão, como uma espécie de um estorvo social. Fica muito evidente, no contexto da Revolta da Vacina, como o país não tinha uma resposta para sair da escravidão na direção da construção de uma sociedade integrada, equilibrada e distributiva.
Se olharmos para a história subsequente e pensarmos na condição dos trabalhadores sazonais hoje em dia – como os cortadores de cana que trabalham em condições subumanas, arrastando em suas costas o sucesso do agronegócio brasileiro –, veremos que não estamos tão longe assim das condições de escravidão. Infelizmente o quadro é de profunda indignidade. E dizer que este país é todo dedicado à promoção social hoje em dia? Isso não só é uma inverdade, mas uma afronta."
Pois então, galera, o mais interessante é que casos assim (de pesquisa algo que resgate alguma coisa do seu passado pessoal) é mais comum de se ver entre os historiadores do que pode parecer... eu mesma sou um exemplo: por que as crianças migrantes? As abandonadas? As sem narrativas? Pois é, minha terapeuta enxerga profundas ligações deste tipo na minha pesquisa...
Nicolau Sevcenko encontrou no estudo da história o caminho para defrontar-se com os enigmas de seu passado
Publicado em 06 de agosto de 2010
TAGS: A Revolta da Vacina, Entrevista, história, Nicolau Sevcenko
Wilker Sousa
Nem todos podem se gabar de terem feito do desejo pessoal o fator preponderante na escolha de uma profissão. Ainda mais raros são aqueles capazes de fundir trajetória pessoal e profissional de tal modo a tornar obscura a fronteira entre elas. Separar Nicolau Sevcenko da história não é tarefa das mais fáceis. Nos idos da Revolução Russa, seu avô – oficial do exército daquele país – lutara ao lado dos tsaristas contra os bolcheviques, o que incutiu em sua família uma série de infortúnios que se arrastou por gerações. Forçados a fugirem do país, ante a implacável perseguição das tropas stalinistas, os Sevcenko perambularam por diversos países; muitos foram dizimados, outros conseguiram refúgio em regiões remotas como o Brasil. Embora distante dos olhos de Stalin, sua família aqui permaneceu sob o signo do medo, confinada em seu mundo particular. Uma vez firmada residência em terras brasileiras, optou-se então por bloquear esse passado, o que despertou a curiosidade do jovem Nicolau pelo estudo da história, na tentativa de desvendar aquele enigma pessoal.
Somado à busca por compreender o passado familiar estava o interesse por conhecer a cultura brasileira, da qual fora igualmente privado nos primeiros anos de vida. Tornou-se então uma referência na articulação entre o pensamento historiográfico e a cultura do Brasil, como atestam as obras Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República (1983), Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo Sociedade e Cultura nos Frementes anos 20 (1992) e A Revolta da Vacina (1983), cuja reedição chega às livrarias neste mês. Professor titular de história contemporânea na USP, acumula também experiência internacional, tendo lecionado nas universidades de Londres, Georgetown e Illinois, além de ser atualmente professor na célebre Universidade de Harvard.
Nicolau Sevcenko nos recebeu em sua casa no bairro do Belém, em São Paulo, onde vive na companhia de sua mulher – a artista plástica Cristina Carletti –, além de 12 gatos e dois cachorros: Tobby e Biruta, uma simpática vira-lata que anda em movimentos circulares. E não seria exagero dizer que aquela residência parece ser uma extensão de sua estreita relação com a história. Construída por arquitetos normandos em 1920 por ocasião do surto industrial paulista, preserva em sua fachada e interiores os resquícios de um passado com vistas a ser demolido pela desenfreada especulação imobiliária. Felizmente ainda nos resta quem deseja mantê-lo de pé.
CULT – O passado de sua família teve influência na sua escolha por estudar história?
Nicolau Sevcenko – Paradoxalmente, eu acho que sim porque meus familiares têm uma história muito trágica por serem refugiados políticos. Eles deixaram a Rússia literalmente fugidos, deixando para trás tudo o que tinham para poder comprar o direito de fugir e de sobreviver. De modo que, quando vieram para o Brasil, este era o lugar mais remoto do mundo, onde seria mais difícil encontrá-los. Sempre houve uma preocupação na família em bloquear esse passado. Havia uma instrução direta para os filhos das novas gerações nunca usarem o sobrenome, nunca dizerem quem são nem de onde vieram. Mesmo em casa, mantínhamos as cortinas fechadas, como uma espécie de blindagem em relação ao mundo externo. Então me acostumei a não cogitar, a não perguntar nada. Quando hoje penso por que fui fazer a opção por história, que é totalmente incomum na minha família, sem dúvida foi decisiva essa espécie de curiosidade sobre o passado longamente obscuro na minha memória.
CULT – O senhor perdeu seu pai aos cinco anos e foi obrigado a trabalhar desde cedo. Quais lembranças o senhor guarda daquele tempo?
Sevcenko – Eu e meu irmão nos tornamos órfãos de pai quando eu tinha cinco anos e ele sete. Então, nos pusemos a ajudar minha mãe a manter a família, porque, pouco tempo depois da morte do meu pai, ela também perdeu o emprego. Aí eu e meu irmão entramos no sistema informal e nos especializamos na coleta de metais para a reciclagem. Nós morávamos na zona leste de São Paulo, próximo ao Vale do Tamanduateí, onde estavam instaladas as primeiras grandes montadoras de automóveis. Elas jogavam toda a sucata industrial nas margens do rio, então nós íamos até lá, fazíamos a seleção e coletávamos os materiais que tinham valor para reciclagem.Era uma loucura. Imagine duas crianças subindo o vale do rio até a parte de cima do planalto da Vila Prudente e depois arrastando aqueles carrinhos o bairro inteiro, carregados de zinco, cobre, chumbo, latão, metais incrivelmente pesados, e a gente fazia isso como nossa rotina de vida.
CULT – E quais as marcas que essa experiência deixou em sua vida?
Sevcenko – Foi algo que tornou minha infância e adolescência incrivelmente penosas, mas ao mesmo tempo me deu essa contrapartida de endurecer o espírito no sentido de dar a ele a força, a energia e o ímpeto necessários para uma conquista intelectual e pessoal. Meu irmão se tornou engenheiro e eu construí uma carreira de historiador. Em nossa família, praticamente todos os outros tinham a orientação para a área das engenharias e das tecnologias aplicadas; fui o único que caiu para as humanidades. Obviamente isso causou uma certa crise familiar porque eles não entendiam e achavam que era uma opção completamente irresponsável. Durante um tempo fui estigmatizado, praticamente excluído do convívio familiar, até que começaram a aparecer notícias de um certo sucesso que deixou todo mundo muito surpreso e restaurou um pouco da minha respeitabilidade no núcleo familiar. Hoje em dia, a situação está muito mais tranquila e cordial.
CULT – Como seus pais eram refugiados políticos e pretendiam voltar para a Rússia, imagino que não havia uma assimilação da cultura brasileira em sua casa. Como foi seu contato com nossa língua e cultura?
Sevcenko – Você tem toda razão. Eles não tinham essa perspectiva de ficarem aqui como imigrantes. Era uma situação de transição e, no fundo, a grande expectativa era que o governo soviético fosse colapsar em algum momento. Eles não tinham a preocupação de criar raízes aqui, então não se deram nunca ao empenho de aprender a língua portuguesa, de assimilar a cultura. Nós fomos educados em russo e com as instituições características da cultura russa, e isso foi um problema muito grande para nossa integração aqui. Quando me dei conta de que as crianças com as quais eu brincava falavam outra língua, me queixei para minha mãe dizendo que eram todas estrangeiras e ela pela primeira vez falou: “Não, estrangeiros somos nós”.Como eu não aprendia a língua portuguesa em casa, tinha que aprender com as crianças. E elas eram cruéis: sempre ensinavam palavras que pudessem me causar algum constrangimento, o que me deixou por muito tempo muito inseguro com o uso da língua. Acredito que isso também contribuiu para que eu me tornasse especialista em história e cultura brasileira, na tentativa de entender o que para mim também era um grande enigma.
CULT – Deve ter sido penoso…
Sevcenko – Há também um outro aspecto da minha cultura familiar. O fato de eu ter nascido canhoto era visto como uma perversão do ponto de vista legal e também como um pecado segundo a Igreja. Isso fez com que minha mãe, contra sua vontade, por muito tempo amarrasse minha mão esquerda nas costas para me forçar usar a direita, o que acentuou uma condição de dislexia. Não a culpo, mas isso criou para mim uma condição irreversível, razão pela qual sou assim gaguejante, me faltam palavras óbvias, o que, para quem é professor, é problemático.
CULT – Muito de seu trabalho tem como base a articulação entre história e literatura. Essa abordagem encontrou resistência entre historiadores?
Sevcenko – Quando fiz minha pós-graduação nos anos 1970, no auge da ditadura, os grandes temas eram história econômica e história política. Eu tinha acentuado interesse pela questão cultural, o que não pegava bem porque parecia ser uma alienação do foco do debate e, nesse sentido, eu era percebido como uma presença que estava tirando o foco das discussões e despolitizando o ambiente. Quando formulei o projeto de doutorado, que daria o livro Literatura como Missão, as pessoas do Departamento de História em geral se acercaram de mim para dizer que aquele tipo de trabalho era incompatível com a pesquisa do departamento e que eu devia procurar o Departamento de Letras. Os responsáveis pela da área de Letras, por sua vez, encaminharam o projeto para o Departamento de Sociologia, que o encaminhou novamente para o Departamento de História. Então completei o ciclo e voltei, meio que contra a maré. Mas, na ocasião da defesa, a banca composta por professores consagrados [Sérgio Buarque de Holanda, Boris Schnaiderman, entre outros] me deu uma resposta tão favorável ao trabalho que pela primeira vez começaram a cogitar que talvez houvesse alguma coisa relevante.
CULT – O senhor possui quase 25 anos de experiência em universidades do exterior. Como analisa o interesse dos alunos estrangeiros pelo estudo da história brasileira e latino-americana?
Sevcenko – A sensação que tenho é a de um interesse contínuo que cresce mais ou menos como cresceu a projeção internacional do Brasil nestas últimas décadas. Houve um momento em que havia uma projeção cultural muito significativa, mas não havia, em contrapartida, uma compreensão do processo de desenvolvimento econômico e de remodelação da sociedade brasileira.
Hoje em dia, porém, sobretudo nos Estados Unidos, onde há um sentido muito forte de se entender a universidade como um ambiente profissionalizante, há uma enorme parcela da juventude que se interessa por trabalhos de sentido social ou ecológico ligados a ONGs. É esse o público que procura os cursos ligados ao Brasil ou à América Latina e que, de maneira geral, tem uma sensibilidade muito aguçada para a questão social, para a democratização, urbanização e melhoria das condições de vida das populações carentes.
CULT – De modo geral, a percepção do exterior com relação à história do Brasil é ainda marcada por estereótipos?
Sevcenko – Cada vez menos. Eu diria que a mídia sempre traz essa visão mais simplificada e redutiva, mas é claro que no ambiente universitário o interesse é sofisticar e qualificar essa visão. Hoje em dia há pessoas nos Estados Unidos e no Reino Unido que conhecem aspectos da realidade brasileira em profundidade e são capazes de discutir em igualdade de condição com os melhores cientistas sociais brasileiros.
CULT – Em comparação a essas universidades, qual a posição do Brasil com relação ao ensino da história?
Sevcenko – O Brasil tem um conjunto muito rico e diversificado de escolas historiográficas. Temos a influência francesa, especialmente na Universidade de São Paulo, a forte influência britânica na Unicamp e, de uma maneira mais equilibrada, a força de universidades no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Por toda parte há importantes centros de estudos históricos e encontros regionais e nacionais de historiadores que mantêm o debate em linha de conta com o melhor da produção internacional. Eu me sinto muito orgulhoso de pertencer à comunidade dos historiadores brasileiros e acho que o reconhecimento que encontrei fora do Brasil é justamente devido à qualidade da historiografia brasileira, não só da USP, mas desse grande contexto nacional.
CULT – Passemos, então ao livro A Revolta da Vacina. No prólogo desta edição, o senhor afirma se tratar de “um livro amargo”, dado o contexto em que foi escrito, em plena ditadura militar. O senhor acredita que muito do ímpeto de indignação característico daquela geração cedeu lugar à acomodação, à manutenção do status quo?
Sevcenko – É obviamente uma impressão pessoal porque eu venho de uma geração que lutou contra a ditadura militar, contra o obscurantismo da censura e da repressão. A juventude era estigmatizada como uma força turbulenta e “baderneira”, pois não se podia viver com espontaneidade a condição de ser jovem. Nós tínhamos a expectativa de que, quando a ditadura acabasse, toda essa enorme massa crítica ia se traduzir em um projeto de transformação do Brasil, traduzir-se em uma sociedade distributiva, democrática e inclusiva, mas absolutamente não foi isso que se deu.
O país tomou a linha de um conservadorismo que se instaurou no mundo a partir de meados dos anos 1970, em especial a partir da liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, responsáveis por trazer esse discurso que hoje domina o planeta. Então foi terrível ver toda aquela corrente de crítica, de indignação e de esperança acabar sendo reduzida a essa plataforma conservadora, representada pelas forças políticas que se tornaram hegemônicas na sociedade civil após o fim da ditadura militar.
CULT – Atualmente, o verbo “revoltar-se” tornou-se sinônimo de “nostalgia tola”?
Sevcenko – É triste, mas é. O verbo “revoltar-se” foi muito incorporado pela indústria, pelo mercado, pelo marketing no sentido de se fazer da revolta uma espécie de atitude fashion. Ser revoltado é o modo esperto de se assumir a juventude, aquilo que na linguagem do marketing se chama atitude. Infelizmente tudo a ver com roupas, marcas e estilos, nada a ver com conteúdo e substância. Até a revolta se tornou mercadoria.
CULT – À época da Revolta da Vacina, já se mostraram ineficazes os meios de se lidar com nossas mazelas sem se preocupar efetivamente com a raiz do problema. Passados mais de cem anos, ainda não aprendemos a lição?
Sevcenko – Quando escrevi o livro, eu o dediquei aos mortos da tragédia de Vila Socó, ocorrida em 1983, em Cubatão. Naquela ocasião houve um vazamento nas redes de distribuição de derivados de petróleo das refinarias e a população pobre da região foi se abastecer daquele combustível precioso. A favela se expandiu em cima das áreas ensopadas e as poucas pessoas que tentaram fazer alguma espécie de clamor para que a autoridade pública removesse a população dali não obtiveram sucesso. O fato é que ninguém tinha coragem de atacar o problema, muito menos a autoridade pública, pois ela negocia votos. Logo, quanto mais gente morasse lá, mais votos. Então aquilo cresceu exponencialmente até o dia em que virou uma tocha e todo mundo que estava ali foi reduzido a cinzas.
Quantas dessas tragédias anunciadas no Brasil se tornam moeda de negociação política? Por que proliferam essas construções em áreas de risco, onde qualquer alteração das condições atmosféricas ou do regime das águas vai causar uma tragédia? Porque justamente são áreas que se valorizam no mercado informal e atraem uma grande quantidade de pessoas, tornando mais fácil para as autoridades criar um sentido de negociação. Tolera-se que se assentem lá e isso significa que estarão em dívida e, portanto, terão que respaldar essas autoridades nas eleições.
CULT – O senhor acredita que por trás do discurso assistencialista à pobreza está, sobretudo, o desejo de preservá-la enquanto elemento essencial para a manutenção do nosso sistema político?
Sevcenko – Sim, é isso que eu chamo de política assistencial remediadora. Não se quer eliminar a pobreza. O que se quer é um modo de se administrar a desigualdade para que ela se torne uma estrutura de manutenção do status quo político. Status esse que prevalece no país e não é muito diferente daquele que ensejou a Revolta da Vacina no início da República. Se então pensarmos ou na Revolta da Vacina ou na Vila Socó ou nas enchentes desencadeadas do sul até o extremo norte do país, estamos vendo o fenômeno em uma estrutura que se mantém a mesma, por mais que se diga que há um discurso de reforma e de transformação social.
CULT – A exemplo do que foi feito nos primórdios da Primeira República, o Brasil ainda busca ocultar a todo custo o flagelo da escravidão?
Sevcenko – Eu acho que sim. Ela é na verdade a nossa herança maldita, a nossa dívida social que o país não consegue contemplar. Essa estrutura retrógrada praticamente nunca foi confrontada e nunca foi substancialmente transformada na passagem do período monárquico para o período republicano. Quando se objetivava fazer a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, optou-se imediatamente pelo trabalho assalariado do imigrante europeu, deixando completamente à margem toda essa enorme população egressa da escravidão, como uma espécie de um estorvo social. Fica muito evidente, no contexto da Revolta da Vacina, como o país não tinha uma resposta para sair da escravidão na direção da construção de uma sociedade integrada, equilibrada e distributiva.
Se olharmos para a história subsequente e pensarmos na condição dos trabalhadores sazonais hoje em dia – como os cortadores de cana que trabalham em condições subumanas, arrastando em suas costas o sucesso do agronegócio brasileiro –, veremos que não estamos tão longe assim das condições de escravidão. Infelizmente o quadro é de profunda indignidade. E dizer que este país é todo dedicado à promoção social hoje em dia? Isso não só é uma inverdade, mas uma afronta."
Pois então, galera, o mais interessante é que casos assim (de pesquisa algo que resgate alguma coisa do seu passado pessoal) é mais comum de se ver entre os historiadores do que pode parecer... eu mesma sou um exemplo: por que as crianças migrantes? As abandonadas? As sem narrativas? Pois é, minha terapeuta enxerga profundas ligações deste tipo na minha pesquisa...