sábado, 3 de agosto de 2013

O Amor na obra de Guimarães Rosa - Benedito Nunes (trecho)


“Esses personagens – o Menino, a Menina, o Jovem – dados a encanamento e sortilégios, munidos dos dons extraordinários, e que podem ter das coisas uma visão mais completa do que a comum, pertencem a uma só família mítica. A infância ou a juventude é neles um estado de receptividade, de sabedoria inata, e tem duplo sentido: por um lado, remorso e nebuloso passado, que se confunde com as origens, e, por outro lado, prenúncio de um novo ser, ainda em esboço, que advirá do que é humano e terrenal. Sob o primeiro aspecto, essa infância simboliza a alma que nasceu da Unidade primordial e que, por isso, ainda participa da indistinção caótica, anterior à separação dos elementos e ao conflito dos princípios opostos do mundo sensível. É, por esse lado, potência obscura, indefinida, cuja natureza oscila entre o divino e o diabólico. Mas se assim é em seu aspecto noturno, ancestral, o símbolo da infância, desentranhável dos  personagens a que nos reportamos, exprime, em sua face luminosa, a ideia de um novo nascimento, de reintegração da alma dividida, a qual deverá recuperar a sua unidade congênita e ingressar num estado de plena harmonia consigo mesma, harmonia que superará os contrários –o  masculino e o feminino- que a dividem no estágio terreno de sua peregrinação.

O infante de Guimarães Rosa, pelo seus atributos míticos, pelo seu caráter peregrino, abrange simbolicamente esses dois nascimentos. Por isso é que a estirpe do Menino, com seus muitos avatares, da menina encantada e do Rapaz alado, é espécie representativa de um padrão mitológico, uma essência arquetípica, inserta nas formas religiosas arcanas, e que tem servido de conduto à imaginação poética: a Criança Primordial.

A Criança Primordial ou Criança Divina, ocupa, segundo Jung, um campo mitológico versátil. Apesar de corresponder a certas formas significativas, arquetípicas, as suas manifestações fenomênicas variam: menina algumas vezes, menino de ouro outras e, ainda, jovem, efebo alado, semelhante a representação pictórica do divino Eros (...)

O andrógeno, a que se refere Platão em O Banquete, é a espécie primitiva da humanidade, que se teria dividido em dois seres incompletos que se buscam, movidos pela força original do Eros, cada qual ativada por um princípio complementar do outro. Da união deles resultaria a coincidentia oppositorum.

A Criança Primordial ou Criança Divina pertence a um domínio que é comum à simbologia erótica e mística, porque representa a final restituição do homem à divindade ou, numa interpretação mais condizente com o ensino das correntes ocultistas, que admitem a adroginia, da final conversão do humano ao divino.

O andrógino, desse modo, comporta os mesmos aspectos retrospectivos e prospectivos do infante mítico, da Criança Divina, que Guimarães Rosa recriou poeticamente com seus meninos sábios e extremamente sensíveis, - um dos quais devassa o passado imemorial, chegando ao domínio fugidio das reminiscências – como seu jovem alado, prenúncio de um novo ser, tal como aquele que, na operação alquímica , destinada a produzir a pedra filosofal, resultaria na conjunção dos opostos, encarnando a própria natureza da alma purificada. Reminiscência de um estado originário que foi perdido, a Criança Divina é também a superior excelência de um estado ideal a conquistar. Além dessa ambilência no tempo, ela possui o caráter ambíguo das teofanias primitivas, peculiar à dialética do sagrado, do numinoso. Seduz e fascina, aterroriza e inquieta. Força ambígua, seus efeitos ora tão benéficos ora maléficos,  podendo ser fonte do Bem ou causa do Mal. Possui um polo luminoso, amável e propício, e outro sombrio, repelente e hostil, um polo divino e um polo demoníaco, reversível, pois que o diabo fascina e Deus é, por vezes, sombrio e tortuoso.”
NUNES, Benedito. O Amor na obra de Guimarães Rosa, p. 161-4.
 
Tenho uma relação muito ambígua com este texto, eu amo, concordo, mas não plenamente, tenho MUITA DIFICULDADE com algumas coisas expressas ali... sei que eu vou ter que me haver com ele, muitas vezes... vamos ver