segunda-feira, 14 de maio de 2018

O simbolismo afro-brasileiro no cancioneiro de Jorge Ben


Este texto meu, O simbolismo afro-brasileiro no cancioneiro de Jorge Ben  foi publicado no Blog da Loja Axé. Confiram nesse link

Teoria não é manual de instruções

Imagem de uma garotinha aprendendo a andar, representando Djaiaí

Sou e quero ser uma historiadora da teoria. Nós pesquisadores deveríamos saber todo o tempo, mas tantas vezes nos esquecemos, de que teoria é  muito importante sim, ainda mais nesse contexto fragmentado e sutil que vivemos, é preciso ter um chão  (ainda que de barro ) para nos sustentar. O mais importante, a meu ver, é o modo que vamos lidar com ela: depois de cerca de dez anos estudando o desbunde de invenção de Rosa pela Teoria da História, não consigo mais enxergá-la como método ou receita, mas sim como um convite  ao pensamento, à reflexão mais aprofundada que leva a uma constante recriação de tudo .  Dessa tendência não me desligo, ainda que ela me faça, novamente, a ser expulsa da História  porque não rezei sua missa direitinho (nem para frente, nem para trás)... Não posso deixar de ser quem me tornei depois de travessias profundas no sertão e na teoria para voltar a categorizar as fontes. Nos rituais tribais, depois de uma conquista, o indivíduo  costuma receber um novo nome, como que renascido. Também no conto Tresaventura de Rosa, que analisei na tese,  a protagonista é  uma menininha que, ainda aprendendo a andar, foge de casa em direção ao sonhado (no sentido de sonho como acesso ao inconsciente mesmo) arrozal. Para suas curtas perninhas o caminho é longuíssimo e ela percorre apenas uma pequena parte. No entanto, porque concluiu corajosamente a travessia como podia naquele momento, ao final recebe seu nome e o leitor conhece Djaiaí. Lembrando da reflexão de Heidegger que comecei com o Nicolau, depois de abrir uma picada na mata fechada - no caso não com uma faca, mas com anedotas infantis, lembrando que anedota é "contra Historia, escreveu o Rosa em 1967 e eu estudei no mestrado -, não volto atrás e talvez tenha mesmo que mudar de nome. Talvez adote um mais ligado aos meus ancestrais tribais ... Quem sabe...

"Um clube no céu do Brasil", por

Capa do álbum Clube da Esquina 1972



Um clube no céu do Brasil
Posted by Radiola Urbana on ago 7, 2017 in Arquivo, Matérias | 12 comments

O ensaísta e psicanalista Tales Ab’Saber escreve sobre “Clube da Esquina” (1972), a obra-prima de Milton Nascimento e Lô Borges, que completa 45 anos em 2017 e é lembrada sempre como uma das mais inspiradas da música brasileira. Beto Guedes, Márcio Borges, Wagner Tiso, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Toninho Horta também participam dessa gravação histórica.
Por Tales Ab´Sáber

Se olharmos antes para Milton Nascimento, o Clube da Esquina parece ter sido o desdobramento natural, mesmo que em um outro patamar, altíssimo, de sua primeira aparição musical já bastante significativa no final dos anos de 1960. Desde o primeiro instante Milton estabeleceu suas características de modo claro, e contínuo, surpreendendo com o retorno ao acento forte no afeto pessoal, mesmo que ele também fosse signo de um movimento mais amplo, expressão de uma real melancolia social que nomeava o pior da história de seu tempo. De modo muito autônomo, Milton retornava alguns passos e liberava um tom a mais na ordem do canto e do nome da dor pessoal, reafirmando uma tradição que, então, parecia ter sido banida da música brasileira moderna feita por jovens. Imenso lírico, situado em relação ao país e ao local, “eu sou do mundo, eu sou Minas Gerais”, músico das tendências harmônicas e melódicas mais trabalhadas existentes entre nós, explorando a tradição musical pós bossa nova de modo muito singular – “a palavra inventivo não o define tão bem quanto a palavra original”, diria Caetano Veloso a seu respeito – e sempre marcando o momento de música pura de suas canções, atraindo assim grandes músicos para o seu trabalho, do Tamba Trio a Toninho Horta, Eumir Deodato a Herbie Hancock…, além de todas estas qualidades sociais, também, desde o início, ficou claro que a força de sua música se duplicava no maior e real mistério concreto de sua voz.

De todos os compositores e autores que configuraram a ideia da moderna MPB nos anos de 1960 e 1970 nenhum foi conhecido tão imediatamente pelo valor de sua voz – este real do corpo particular que atravessa a música e a vida – como Milton Nascimento de fato sempre o foi. O apelo significativo ao drama, à dor e a beleza presentes em sua voz sempre pareceu dizer algo de muito próprio de uma certa experiência estética e humana, brasileira, algo que ainda poderíamos pensar tendo raízes na vida musical portuguesa, da afetação da canção e do lirismo acentuado, elegíaco, na esfera própria da saudade. Além disso, sua música carregava traços de um material histórico específico, concreto, percussivo, popular, religioso, que atravessava o espaço subjetivo de sua voz com mínimos elementos épicos, mas de uma vida social ainda contida, um pouco ao modo de uma paisagem mineira, de pequenas igrejas, de céu obscuro e de abismo, de Guignard.

Logo, em 1967, Milton Nascimento foi reconhecido em um festival internacional como melhor cantor, e sua voz, articulada à sua música expressiva, tenderia, desde o início, a ser a matéria de um mito. Um mito que prosseguiria ativo ao longo de pelo menos 20 anos. Músico muito especial, a sua lírica triste e concreta, o seu melodrama modernizado, com inconscientes traços e ecos religiosos, em canções que se desdobravam para a vida da sua interpretação, derramada e marcada por um forte eu lírico, encontrou precisa formação em sua única e própria voz.

A voz, sempre a evocação e a atualização de um corpo e de um caráter, era percebida, no caso, como sendo particularmente rara. E o canto de Milton se encarnava em um corpo historicamente situado. Aquela voz transbordava o seu sujeito para se constituir em um índice social mais amplo, uma entidade e um emblema de algo do Brasil que impunha sua presença. Ela era um estranho amálgama de um grave que não é grave, um grave reduzido e atravessado com lindos timbres femininos, que fez de Milton um contralto único, cujo canto natural, de plena intensidade e precisão, era também um falsete natural, dispersivo e incisivo a um tempo, de modo que nunca se pode evitar a metáfora, de correspondência histórica e onírica com o mundo de sua origem, de estarmos ouvindo algo como a possível voz de um anjo. Havia algo de contraditório naquela voz linda, que forçava e que conquistava a um tempo. Um contralto desde o céu, e de sua terra brasileira, um anjo menino negro, de uma Igreja de Minas Gerais e do chão da terra, que cantou o seu tempo e lugar para todo o mundo.

Aquela voz de homem, de mulher e de criança marcava a personalidade de uma música que poderia ser prosaica, dado os seus vínculos passadistas com o local e com o interior, o seu ar e chão de província e o seu caráter de drama pessoal, que transbordava. Eram marcas algo tradicionais, que deveriam ficar para traz no processo da modernização brasileira que acelerava naquele final dos anos 1960. Todavia, ao contrário, ela era fortemente universal, musical e socialmente expansiva. Desde a experiência do jovem do interior do Brasil aquela voz visava imediatamente o todo, pela força da composição mais ampla: música, arranjos e performances espantosas. Neste ponto Milton realizava de um modo muito pessoal o valor de expressão global, ainda crítico, próprio da arte brasileira dos anos de 1960. Os jovens que estreavam na musica brasileira na segunda metade dos anos 1960 colhiam o fruto da desprovincianização criadora que o modernismo e, principalmente, a bossa nova, a modalidade musical industrial de nosso modernismo, haviam produzido e legado ao país.

Assim, do primeiro disco, do sucesso imediato e permanente de “Travessia” – para muitos uma espécie de hino melancólico do Brasil – ao segundo disco em Nova York, “Courage”, o passo parece ter sido mínimo e justo. Milton soltou a voz, em sua Minas mundo, e também era músico entre músicos, particular, gentil e forte – como a singela e belíssima “Catavento”, onde ele canta e toca com o Tamba Trio, com o arranjo para cordas e sopro de Luiz Eça, não permitia a ninguém esquecer. Me lembro de, ao ouvir esta música aos cinco ou seis anos de idade, ficar impressionado pelo efeito profundo que ela fazia em mim: eu a percebia tão bela e inteligente que, olhando desde hoje, posso dizer que o menino a sentia como talvez a música mais bonita existente no mundo. Não é uma tarefa simples, além do mistério do ato, produzir um real samba jazz brasileiro, oriundo dos grupos instrumentais pós bossa dos anos 1960, como sendo também e simultaneamente uma música para crianças… há muita coisa moderna condensada neste gesto, além do imenso conhecimento musical realizado. Creio que, do mesmo modo, os músicos de jazz que viriam tocar com Milton ao longo do tempo, de Wayne Shorter, Herbie Hancock, Hubert Laws, da gravação da “Canção do Sal” por Stanley Turrentine, até Esperanza Spalding, apenas reconheciam a sua real inscrição em um espaço musical bastante amplo, que simplesmente os interessava, como também interessou ao menino que crescia na virada dos anos 1960 para 1970.

E, como homem muito amado que sempre foi, Milton Nascimento, o anjo barroco moderno, que cantava de modo único a tristeza e a solidão nacional em pleno choque da revolução mais ampla do mercado e da indústria das comunicações que acontecia ao redor, articulou com a força de sua presença artística e humana aquele que seria um dos momentos mais poderosos da arte brasileira do século XX. O anjo lírico e triste, o bom moço negro – filho adotado de uma família de classe média do interior de Minas, como Grande Otelo, de uma mãe que ensinava música, tocava piano e estudara com Villa Lobos –  agregou ao seu poder musical o grupo de compositores, cantores e instrumentistas, de fato todos muito jovens, parceiros da rua, a geração de amigos, que sonhavam e que sabiam tocar com precisão e liberdade a verdadeira complexidade de um dos mais fortes discos de todos os tempos, o “Clube da Esquina”.

Surgia ali uma outra beleza jovem que desdobrava e multiplicava as dimensões próprias da obra de Milton, feita de talho e de corte, de cavaleiros naturais, de vento solar, de pedra e chão, banhados em ribeirão, prontos para cantar o próprio tempo desde suas próprias e precocemente dolorosas experiências, entre o Brasil interior e a vida contemporânea. O disco veio ao mundo sobre o signo amplo de tudo o que eles conseguiam ser, em conjunto com uma precoce consciência da perda da própria continuidade da experiência histórica, numa dissipação dolorosa e negativa do campo contracultural de até então, que se realizava em uma explosão musical maravilhosa. O disco era a potência real de um país barrado, em que tudo ou nada estavam de fato, mais do que nunca, em jogo.

De fato, Milton já havia sinalizado a importância dos amigos, os irmãos Lô e Márcio Borges e Fernando Brandt, para o deslocamento de sua própria lírica rumo ao presente, no célebre manifesto periférico – rock and roll, latino americano, global, porque crítico – que denunciava com alguma precisão e fúria a condição de violência da periferia do capitalismo brasileira vista desde uma geração perdida de jovens, o lixo ocidental, aos ídolos universais do amor pop e industrial, presentes ausentes do destino dos jovens  constrangidos por uma ditadura local, de origem global, nestas paragens históricas. Tudo isso dito em uma única e poderosa canção em seu terceiro disco, “Para Lennon e McCartney”.

Pois naquele novo Clube da arte o anjo popular moderno, com seu canto longo e estruturado que embriaga, iria encontrar definitivamente a força da vida do jovem menino lindo, o amigo real, o hippie mais triste do mundo, o jovem, muito jovem, das melodias que fazem chorar e das letras epifânicas, mesmo que sintéticas, que ainda levavam a vida para um lugar desconhecido e forte, com cheiro de estrada e natureza, nas quais ela pega o trem azul, o sol na cabeça pega o trem azul e é hora de você achar o seu lugar no trem e não sentir pavor dos ratos soltos na casa, sua casa e, ainda, das canções de amor mais belas e tristes, porque emocionalmente reais, de toda a música popular brasileira. Lô Borges.

O jovem de voz humana – derivada, eu acho, da leitura de Caetano Veloso do canto sem excesso de João Gilberto – de pouca força, que canta baixo desde a dor real e encarnada, que parece estar sempre se recuperando de um íntimo choro, e que projetava sua voz numa topologia moderna, da imaginação e da liberdade contracultural, porém barrada, dimensão constrita como horizonte histórico que voltava a impactar a própria música, o que só aumentava a radicalidade de seu humanismo. O verdadeiro músico muito sofisticado de “Nuvem Cigana”, em que a melodia se desdobra constantemente sobre si mesma de modo livre, surpreendente, como o verdadeiro movimento de um sonho estruturado, meu nome é nuvem, pó poeira, eu danço com você o que você dançar…

De onde vem os traços eruditos, por vezes quase sinfônicos, das estruturas musicais sintéticas de Lô Borges? Qual foi a sua formação? De onde veio este músico tão verdadeiramente rico, real e humano, que com poucas canções impactou a história do cancioneiro moderno brasileiro? Se você deixar o coração bater sem medo deve surgir uma resposta imaginativa para este enigma, do jovem hippie triste brasileiro dos anos 1960/1970 e músico único, de uma imaginação negativa, como preferia o próprio artista… Vida afetiva, procurando plena expressão, mas também sitiada, de forma que expansão e medo andam juntas o tempo todo, na beleza musical extrema de Lô.

O jovem genial, mais um da geração de jovens gênios dos anos 1960 e 1970, e Milton sabia bastante bem disso, que com seu irmão Márcio, com Fernando Brandt e com o próprio Milton fez “Um Girassol Da Cor Do Seu Cabelo”, “Clube da Esquina no. 2”, “Trem de doido”, “Trem Azul”… Um notável conjunto de canções marcadas por algo do rock e do folk internacionais, que novamente, mas em outro diapasão, mais sintético e modernizado, deram o timbre, uma poética de maravilhamento e tristeza, de uma lírica que sabe bem dizer o que dói de real, no amor pela mulher e pela vida, com elementos muito reais das relações humanas talvez nunca ditos de modo assim claro, preciso e direto. Ao mesmo tempo que aquela música envolvia tudo com tristeza.

Assim, na sua construção mais forte, o verso simples, bandeiriano, você ainda quer morar comigo?, articulado ao sentido geral elegíaco e delicado, muito dedicado imaginariamente ao objeto da canção, que toma tudo no sujeito e que se condensa na voz de quem canta sabendo que tudo está perdido – tudo transmitido sem nada ser dito – é capaz de recuperar imaginariamente o que uma história de amor produz, de modo simultâneo à dor de seu fim, de tudo perder. É uma das experiências do amor complexas, na sua face negativa, no extremo da perda de si e do outro, que o verso e a canção transmitem de forma impressiva, em uma voz realista. Lô era o cantor do luto e da melancolia da vida comum de um jovem de Minas Gerais e do mundo de 1970 e a expressava – e lá se vai, mais um dia… – em uma linguagem que ia claramente da concretude do rock, de Lennon e McCartney, ao próprio amigo Milton Nascimento, passando pelo canto modernizado de Caetano Veloso. De fato, “Um Girassol Da Cor Do Seu Cabelo” era a sintética e ainda mais melancólica “For no One” jovem brasileira. Uma beleza.

eixar o coração bater sem medo… A tristeza que marca o “Clube da Esquina”, e a qual se reage com todas as forças do conhecimento da música que aqueles músicos de fato tinham, era o nome de um medo transfigurado, que habitava o todo social, que desejou beleza e vida naquela passagem histórica muito obscura. O país estava sobe o signo do AI5, de uma ditadura extremada, e os cavaleiros marginais, banhados em ribeirão, que conheciam os homens e os seus velórios, que encontravam amigos num hotel no céu, que era o seu próprio Clube, que buscavam não sentir pavor diante dos ratos soltos na casa, cantavam com expressão e contenção a uma pura beleza sem motivo, o desencanto de uma geração linda e livre que se via em recesso, contida na força de alguma ação possível, despedindo-se definitivamente do tempo festivo da contra cultura de ainda ontem, sustentando a beleza suspensa sobre toda a realidade histórica ao redor, um mundo impossível, um verdadeiro campo de medo.

O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé, o que vocês fariam pra sair dessa maré… o que era pedra virou homem… O sonho do hotel da arte, situado no céu, de seu trem azul, do clube da esquina, era um sonho suspenso, elevado, como um dia foi o Claro Enigma de Drummond, sobre a realidade histórica que desabava com força em outro mundo, avesso, de choque, ruído, violência e vulgaridade. No mundo do clube, os homens que ficam calmos, calmos, calmos, calmos, calmos, por causa do gás lacrimogênio a que se acostumaram, são os homens cantados em uma graça e inteligência musical esplendorosa, uma homenagem limite de jovens à sua própria humanidade perdida. Aqueles homens tristes e paralisados mereciam o trabalho extremo e amoroso de um grupo de amigos artistas, para ainda continuarem sendo homens, Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso…

Os pontos de vista melancólicos da obra, como a lindíssima e então instrumental “Clube da Esquina no.2” – que posteriormente ganharia letra e o verso dos homens calmos diante do gás lacrimogênio do tempo, no Via láctea de Lô Borges – eram de fato a presença da beleza, e da percepção da realidade social barrada no plano do lirismo, que desafiava o próprio mundo concreto liquidado ao redor. A fragilidade afirmativa da beleza e do conhecimento confrontava o tempo degradado, exatamente como um dia esta razão da forma poética dialética apareceu, deste modo, em Drummond. A utopia da beleza, que fala de outro lugar – daí as constantes referências aos lugares imaginários enigmáticos e solares de Lô Borges –  e sua torção negativa na própria vida subjetiva das canções, era a forma limite de falar a verdade e confrontar a ordem da história em um único movimento, da música e do espírito. Tão forte quanto tão fraca, tão frágil quanto tão poderosa.

A dialética entre a voz divina que tem contato com o chão da terra, de Milton Nascimento, e sua lírica específica, e a voz da vida, que eleva sua dor real ao céu e até o sol, de Lô Borges, é um dos segredos mágicos do “Clube da Esquina”. O encantamento transcendental de Milton, que também é mundo, se reverte no mundo real de Lô, que, ao fim do próprio movimento, pega um trem direto para o céu aberto e solar. A dialética entre imanência e transcendência alcançou assim um grau único, de quase paroxismo na obra dos jovens músicos mineiros. Podemos evocar, para dar conta deste descompasso que se tornou pura produção, um dos tantos comentários ao advento desse trabalho de arte e do impacto dessa obra em tantos de nós. Podemos lembrar o modo como uma das personagens importantes, fontes dessa história, sujeito maior do processo da modernização da música e da canção brasileira, se posicionou diante dos dois jovens gênios do Clube. Tom Jobim um dia afirmou, sobre Milton Nascimento: “Meu Yauretê, minha onça verdadeira, você é o rei da floresta, o rei da mata brasileira, meu taquaraçu de espinho, meu carioca mineiro, meu amor e meu carinho, uirapuru verdadeiro.”

Tom Jobim, que é uma medida histórica clara para a música popular brasileira, se referia a Milton, em registro de Mário de Andrade e de Guimarães Rosa, como uma força da natureza, advinda da particularidade do Brasil. De fato uma força inventada pelos códigos de acento ideológico de nosso romantismo e modernismo. O próprio Tom, ao longo de sua vida, passou a acentuar mais e mais o aspecto telúrico e encantado de uma natureza brasileira mítica, suspensa no limite da condenação, evitando com a metáfora de fonte real cuidadosamente dar nome ao Brasil moderno que projetara com a sua arte e que se degradava realmente na história catastrófica da modernização conservadora nacional. Ele incluía Milton na própria matéria e força daquilo que lhe era mesmo mais caro: o Brasil, a sua força encantatória de diferença, da tradição inventiva e letrada de nosso modernismo e seu compromisso. Para ele, Milton era simultaneamente uma realização do projeto estético e político que era também o seu e ainda mais, a coisa mesma deste projeto. Carioca mineiro, uirapuru verdadeiro.

E sobre Lô Borges? Tom Jobim se posicionou de outro modo a seu respeito. Ele nunca falou nada sobre o hippie lindo e triste, rei das estradas de Minas até o mundo. Não havia porque falar. No entanto, ele simplesmente retrabalhou, retraduziu e rearranjou ao seu modo cosmopolita e muito elegante “Trem Azul”, e a gravou em seu último disco… Uma versão duplamente maravilhosa, de uma música maravilhosa, que ligava as pontas históricas do processo da música popular brasileira moderna, do gênio musical da bossa nova dos anos de 1950, que recebeu o jazz no samba, ao jovem livre já marcado na carne e na alma pelo rock e pelos Beatles, dos anos de 1970. De fato, não me recordo efetivamente de Tom gravar nenhuma canção de nenhum músico brasileiro posterior à sua própria geração. Com a exceção evidente das suas próprias parcerias com Chico Buarque, um músico moderno que se formou sobre o seu impacto, nenhum músico do processo acelerado de transformação de nossa MPB chamou particularmente a sua atenção. Apenas aquele Trem de Lô interessou de fato à consciência musical e histórica do maestro brasileiro, em um ato claro de crítica de artista, e de amor, que fala demais dos vínculos internos e arcanos, de desejo e de sonho, da história moderna de nossa música. Tom Jobim, Lô Borges… Dito assim, poucos acreditariam haver um canal subterrâneo significativo de experiência musical brasileira ligando artistas aparentemente tão diferentes… No entanto o próprio Tom revelou a existência desta história de continuidades e deslocamentos.

Haveria ainda muito o que falar do disco, em outras chaves de sua performance e aparição. Dos arranjos percussivos, e de sua natureza, por exemplo. Das guitarras acentuadamente estranhas e seu impacto sobre quem ouve. Das camadas sonoras cuidadosamente preparadas para a camada sonora irradiante da voz de Milton. Dos tempos escandidos e subitamente acelerados das melodias de Lô – como aquela nota longa que sustenta o verso mais radical da história da música brasileira, em “Trem de Doido”, um simples “É”, que organiza toda a dinâmica imprevisível da melodia e da canção.


Mas também, temos muito o que não falar deste disco… Os brasileiros sempre tivemos muito cuidado para ouvir e conversar sobre o “Clube da Esquina”. Há um consenso de estarmos diante de uma espécie de limite, de um verdadeiro máximo de dotação de forma para uma experiência e tempo. Um limite que além de genial formalmente transcendia a experiência do ouvinte em um outro campo das coisas humanas. Dos nossos importantes discos de culto, os discos sempre ouvidos em um espaço de encantamento único e com o maior respeito imaginável, como “Transa”, “Jards Macalé” (ambos, aliás, também de 1972) ou o álbum branco de João Gilberto (de 1973), o “Clube da Esquina” sempre deu a impressão, e produziu a prática social desse efeito, de estar ainda em uma outra região das coisas do sentido. Dos grandes discos de experiência de culto da moderna música brasileira, o Clube avançou abertamente sobre o campo do sagrado. Diante dele há uma reverência e um silêncio, que precisam ser mantidos, e que ele impõe com toda justeza. É um fato musical e humano importante que muitos de nós, e eu mesmo, sempre tenhamos evitado ouvir em demasia este disco. O impacto profundo e amplo do disco, fortemente afetivo, que colore o mundo de enigma, tristeza e beleza, em formas musicais únicas e sem referente, de alta consciência do próprio fazer, tinha efeito aprofundado sobre seus ouvintes desde sempre, e os mantinha suspensos a respeito de seu mistério e do mistério da própria vida. Era preferível guardar aquela impressão absolutamente irreprodutível, mantê-la no ponto original do encontro de uma matéria tão especial a respeito da vida que fazia da sua forma a vida mesma.

E esta experiência certamente não era a da repetição. Ela não era afeita à reprodução vazia e infinita, própria da obssessividade industrial tentando sempre preencher com a experiência de baixa intensidade o mundo empobrecido criado pela própria vida sob o regime da indústria. O “Clube da Esquina” nos afetava em profundidade, atravessando inteiramente o sujeito como um verdadeiro sonho desconhecido, e nós, que sabíamos do lixo ocidental, simplesmente éramos aquilo que ouvíamos. Nos éramos o “Clube da Esquina“.

*Tales Ab´Sáber, ensaísta e psicanalista, autor de, entre outros, A música do tempo infinito (Cosac Naify), Lulismo e carisma pop (Hedra) e Ensaio, fragmento (Editora 34).
(Disponível em http://www.radiolaurbana.com.br/um-clube-no-ceu-do-brasil/)