Diretamente da Folha, em 22 de fevereiro de 2001, sem mimimi:
Saudável loucura
Mario Sergio Cortella
É necessário interromper a lógica que entende o trabalho contínuo e incansável como sendo a única fonte de saúde moral e cívica
Todo ano é a mesma coisa: o Carnaval se aproxima, e muitas pessoas começam a reclamar sem parar. Com impulsos rabugentos e veleidades moralistas, murmuram pelos cantos ou em voz alta contra a alegre ociosidade que, nesse período e por estas plagas, seduz a maioria dos humanamente mortais.
Aproveitemos a inspiração dos ambientes das passarelas momescas, quando se reinstala um simulacro da nobreza monárquica, e vamos dar passagem à advertência do marquês Luc de Clapiers Vauvenargues, jovem ensaísta francês do século 18: "Os preguiçosos têm sempre vontade de fazer alguma coisa".
Os que, como feitores renascidos, se outorgam a tarefa de colocar a todos nos eixos, gritam e alardeiam, com ares doutorais, que "o Brasil não tem jeito mesmo! Onde já se viu um país pobre dar-se ao luxo de parar de trabalhar? Já tem muito feriado por aqui, e agora continuam suspendendo tudo de útil por cinco dias apenas para ficar dançando e pulando pelas ruas. O que os estrangeiros, gente séria, vão pensar do nosso povo? Carnaval é perda de tempo! É por isso que uma nação assim não vai para frente...".
Ora, já somos a décima economia capitalista do planeta, sem que a riqueza coletivamente gerada seja adequadamente repartida! Uma nação não vai para a frente quando não prevalecem a justiça cidadã e a paz social, quando não há garantia do direito ao trabalho (e, portanto, ao descanso), quando os privilégios exclusivos são apresentados como conquistas inevitáveis de alguns apaniguados. Uma nação perde tempo quando valoriza o cinismo que acomete fartamente alguns que se preocupam com quantos dias de folga tiram aqueles milhões para os quais sobra muito pouco de vida sã fora do horário de trabalho.
É necessário interromper a lógica que entende o trabalho contínuo e incansável como sendo a única fonte de saúde moral e cívica; é preciso enterrar a estranha racionalidade que entende a capacidade de voltar a trabalhar como sendo o melhor critério de saúde. É comum um adulto internado em um hospital ou adoentado em casa considerar-se sarado apenas quando, após perguntar ao médico se pode voltar ao trabalho, é por ele "liberado"; por que não perguntar "Doutor, já estou bom? Já posso voltar a namorar, bailar, transar, jogar?".
Por isso é claro que não deve ser obrigatório "brincar" ou "pular" o Carnaval; o que pode ser feito por todos e todas é, isso sim, dar-se o direito de suspender um pouco o pragmatismo laboral do dia-a-dia e ganhar tempo, em vez de perdê-lo. Tempo de parar para dançar, orar, descansar, divertir, meditar, estudar; seja qual for a escolha, um tempo para si mesmo ou para si mesma. Ócio não é falta do que fazer, mas possibilidade de, nas condições apresentadas, fazer a escolha lúdica do que se deseja, sem constrangimento ou obrigatoriedade.
Melhor, nesse caso, respeitar os insanamente saudáveis e cotidianamente produtivos, inscrevendo no pavilhão de algum estandarte precursor a assertiva de Mihai Eminescu (patriótico poeta romeno do século 19, mas nem por isso menos futurista): "As pessoas alegres fazem mais loucuras do que as pessoas tristes, porém as loucuras das pessoas tristes são mais graves".
Afinal, louco não é o povo que pára por quase uma semana para brincar; louco, provavelmente, é o povo que nem pensa em parar...
MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês