As capas do livro, a da esquerda de papel e da direita da encadernação |
Na alegre capa amarela que reveste. A encadernação do livro "A cabeça do santo"(2014), da cearense Socorro Acioli, José Eduardo Agualusa diz que o primeiro romance de Acioli "é uma festa". Um livro que nasceu a partir de uma oficina literária ministrada pelo Gabo, que Acioli participou, como conta aqui nesta entrevista deliciosa onde, entre outras coisas, ela revela que muito do "fantástico" narrado no livro realmente acontecia no Ceará. Assim é o realismo fantástico, quando o maravilhoso acontece na realidade. O fato é que o livro é para ele, uma gratidão gostosa de se ver
Gabo, grande nome do chamado realismo maravilhoso latino americano, realmente frequenta as páginas de Acioli, em momentos como a descrição da família matriarcal, onde as matronas sempre sabiam o dia de sua morte, como se vivessem em Macondo, mas que Acioli jura que acontece na família dela!
Agora que terminei a leitura, sou obrigada a concordar com Agualusa: novamente voltamos ao berço da literatura: o conto maravilhoso e as alegrias da narrativa oral, até o clássico Pedro Páramo, de Juan Rulfo é citado na conversa do protagonista com sua mãe no começo do romance. Mas demorei pra concluir como era essa narrativa, e logo no começo da leitura já questionava:
Conforme fui avançando na leitura, tinha sensação que estava lendo um livro juvenil, fantástico mesmo, e fui entendendo e gostando mais. O livro é bem curtinho, pouco mais de 150 páginas, dividido em quatro partes e com 3 breves capítulos, como se fosse mesmo uma história contada de boca a orelha.
Conta a história de Samuel, que sai de Juazeiro do Norte e vai a pé até uma pequena cidade onde sua mãe nasceu, para atender uma promessa que ela fez para ele pagar, que consiste em procurar seu pai e avó na fictícia Candeia e acender 3 velas aos pés das imagens do Padre Cícero em Juazeiro; de Santo Antônio em Candeia e por último de Santo Antônio em Canindé. Reverenciando a "santíssima trindade" da fé popular nordestina.
A ideia do filho pagar promessa que a mãe fez, pelejando e esmolando, me lembrou o Grande Sertão, na passagem em que Riobaldo estava esmolando na passagem do Rio De Janeiro para o São Francisco e encontra um menino nessa travessia simbólica e cheia de significados, como uma passagem pra maturidade.
Voltando ao romance de Acioli, depois de acender a vela para padre Cícero, Samuel que sobrevivia de vender relíquias aos romeiros, mas em santo não acreditava, segue para a fictícia Candeia, onde a trama se desenvolve, e que quando ele chega é quase uma cidade fantasma. O diferencial é que, por algum erro, a estátua de Santo Antonio, padroeiro de lá, foi decapitada e a cabeça oca do santo, descansava ao lado do corpo e é lá que Samuel vai morar enquanto procura por gente de sua família.
Como é forasteiro, logo faz amizade com o adolescente Francisco que conhece todos na cidade e com planeja golpes engraçados e fracassados para sobreviver e, muito ao modo de João Grilo e Chicó de "O auto da compadecida", de Ariano Suassuna, pensam que "iam fazer estrago em Candeia. Riam das desgraças, suas e dos outros. Desgraça é tudo coisa de se rir" (p.51)
Realmente o romance me arrancou gostosas gargalhadas, em momentos cômicos tão brasileiros como quando um pai dá o nome de Madeinusa à sua filha, pois era tão bonita quanto o rádio que comprara "Made in usa" e seu nome veio do estrangeiro, ele só fez "juntar as letras" ( p. 53)
Esse santo sem cabeça e a cabeça oca ficaram representado uma maldição para a cidade e qual não foi a surpresa do descrente Samuel, cuja lei era que "santos são pedras e só pedras" (p.48), começou escutar "a rezalhada das mulheres pedindo ao santo para casa e, falando de homem" p.38, e isso foi se tornando imenso, e "aos poucos aquela cabeça já se tornara um apêndice anômalo do seu corpo, um útero, um gigantesco saco gestacional ligado a ele por aquela absurda capacidade de ouvir orações e música" p.69. Coube ao rapaz tentar aprender a lidar com tais fenômenos.
Mas você pode perguntar onde está o Gabo? Em todo o romance, a ideia, o desenvolvimento, as narrativas cheias de sonho, maldições e premunições, no entanto não tenho como não dizer que se trata de um romance nordestino, do começo ao fim. É como se Gabo fosse escrever em Juazeiro sobre a realidade local, uma delicia de livro!
(Nesse a partir deste parágrafo , pode haver spoiler) Ouvir e escutar são os verbos centrais do livro: ouve-se rezas, falas, cantigas, até de países africanos (na cabeça do santo Samuel ouve uma moça que canta mornas cabo-verdianas), afinal, palavras são cantigas, como já diria o Rosa. Como trilha sonora de leitura, escolhi essa canção, do coração do Brasil, cujo significado é até "explicado" por uma personagem ao Samuel :
"-Esse negócio de força estranha. Você sabe o que é? (...)- Saber eu sei, só não sei explicar.- Adiantou nada.-Assim, eu acho que a gente sabe quando vem, a força estranha chefa e pá!, a gente sente. Quando ela toma conta, a gente faz o que quer fazer por cima de pau e pedra, não tem cão que segure. Acho que vem de Deus."(p.160)
Enfim, trata-se de um romance fantástico propriamente dito, contando a história de um o herói (às vezes anti-herói), de que é de origem humilde, sofre muito com a solidão e privações ou que passa por grandes privações, em determinados momentos, consegue triunfar na comunidade onde vive, lembrando sempre que, não importa quanto ele brigue com essa verdade, mas sempre "o santo estava ouvindo" (p.14)
Adorei mesmo essa passagem divertida pelo delicioso mundo do na narrativa maravilhosa, nesses tempos de quarentena e pandemia, não tem coisa melhor!
Obrigada Gabo, obrigada Acioli
Obrigada Gabo, obrigada Acioli
P.S. Quer ver como as coisas incríveis acontecem MESMO na realidade? No nordeste existe mesmo o santo decapitado, na cidade de Caridade
Cabeça do Santo real, de Caridade https://www.youtube.com/watch?v=XHxl2pfj_ys |